SÃO JESUS DE ALGARVES (em prosa)

SÃO JESUS DE ALGARVES

(Lenda portuguesa do ciclo sebastianista, recontada por William Lagos, 3/7/11.)

Esta história foi criada em algum ponto entre 1580 e 1640, durante o período mais amargo da história portuguesa, quando a dominação espanhola não somente oprimiu os lusitanos, como perdeu todo o seu império colonial tão durante conquistado. O próprio Brasil quase foi perdido para ingleses, franceses e holandeses. Somente após a Restauração é que os holandeses, derrotados duas vezes em Guararapes, concordaram em abandonar o Nordeste brasileiro, embora conservassem o monopólio da venda do açúcar na Europa e da venda de escravos africanos no Brasil, que eles mesmos haviam introduzido, embora os portugueses sejam injustamente acusados pela escravidão dos afrodescendentes. Por sorte, Mousinho de Albuquerque conseguiu reconquistar Angola e Moçambique e outras pequenas possessões africanas. Mas da Índia só se conservaram os três enclaves de Goa, Diú e Damão, enquanto a Indonésia inteira passou para a posse dos holandeses, com exceção de Timor e de Macau.

A morte de Dom Sebastião no norte da África, em um lugar chamado Alcácer-el-Kebir ou Alcacerquebir, cujo cadáver nunca foi achado, deu origem a um longo ciclo de lendas, poemas e canções, afirmando que El-Rei Dom Sebastião havia de retornar a Portugal em sua hora de maior necessidade. Esta lenda foi transportada para o Brasil e sobreviveu no interior do Nordeste, de Minas, Goiás e mesmo em São Paulo até as primeiras décadas do século vinte. Durante a insurreição de Canudos, no sertão da Bahia, Antonio Maciel, o Conselheiro, condenava a república como pecaminosa e defendia a restauração da monarquia, quando Dom Sebastião havia de retornar para governar o Brasil. E ainda nos tempos do cangaceiro Virgulino, o Lampião, corria a lenda de que iriam restaurar a monarquia e trazer de volta o bom rei dom Sebastião, conforme atesta a literatura de cordel.

Foram, portanto, criadas muitas histórias alternativas, nos multifários mundos paralelos da fantasia, misturando fatos reais com imaginários. Esta é uma delas...

Em uma minúscula aldeia chamada Nazaré, tão pequena que ninguém sabe onde se encontra, salvo que ficava perto de Aljesur, em Algarves (cujo nome, naturalmente, deriva de “Jesus”), nas cercanias do monte Fóia, o mais elevado da serra de Monchique, vivia um casal muito pobre e sem filhos. O marido chamava-se José e era carpinteiro e a esposa era Maria, que fazia rendinhas e bolos para vender na feira. Eles eram judeus, mas muito bons católicos, sofrendo sob o domínio do Califa de Granada, que era o imperador dos maometanos e que então dominava todo o Algarves, localizado no sul de Portugal.

Os seguidores de Maomé respeitavam tanto os cristãos como os judeus, a quem chamavam de “povo do livro”, porque adoravam um só deus, como eles o fazem e escreveram a Bíblia, que os muçulmanos também respeitam, embora considerem que o Alcorão seja sua continuação, inspirada por anjos a seu profeta Maomé. Jesus Cristo é respeitado como um grande profeta e o precursor do grande Mensageiro, o Rassul Mohammad, que veio trazer aos homens a mensagem final de Deus. Portanto, não tinham o costume de obrigar judeus ou cristãos a se converterem e permitiam que continuassem a praticar a sua religião sem obstáculos, desde que não tentassem converter os próprios muçulmanos.

Por outra parte, havia uma série de impostos que os cristãos e judeus deveriam pagar. A hada, a justiça dos mouros da Espanha, determinava que cada súdito que não fosse “um verdadeiro crente” deveria pagar a cada ano um tributo por pessoa, consistindo em um dinar em moeda, quatro alqueires de trigo, quatro de cevada, quatro medidas de mosto (de que se fabricava o vinho), quatro de vinagre, duas de mel e duas de azeite. Por cada escravo que um não-muçulmano possuísse, deveria pagar também a metade dos impostos descritos acima. Estes escravos, naturalmente, eram europeus e não africanos, porque mesmo os mouros, os bérberes do deserto da África do Norte, se haviam convertido ao islamismo e esta religião proíbe escravizar os muçulmanos.

Naturalmente, havia outros impostos eventuais, como o dhimmis, correspondente a dez por cento dos lucros, mais a obrigação de se apresentar para o serviço militar em caso de guerra e outras taxas cobradas por necessidades militares ou outras. Os governantes viviam no luxo e na ociosidade, enquanto os chamados “moçárabes” tinham de labutar incessantemente para manter os privilégios daqueles. Não era de admirar que muitos judeus e cristãos se convertessem à nova religião, tornando-se muwallads, ou muladis, segundo a forma portuguesa do nome.

Por um lado, era uma sorte que José e Maria não tivessem filhos, pois assim teriam de pagar ainda mais por cada criança, mas isto não impedia que eles desejassem ardentemente ter, pelo menos, um menino que continuasse a família. Uma menina, naturalmente, seria bem-vinda, mas ela passaria para a família do marido quando se casasse e ainda teriam de pagar um dote por ocasião do casamento. José fora isentado da obrigação do serviço militar porque, a cada vez que os aguazis do Califa, seus cobradores de impostos, visitavam Nazaré, ele era obrigado a consertar os seus carroções e a fazer outros serviços, sem receber qualquer pagamento em troca.

Um dia, em que Maria estava lavando roupa no pátio e estendendo no varal, enquanto cuidava o forno de lenha, no qual fazia seus bolos para vender, apareceu-lhe um cavaleiro de armadura cintilante, que apeou do cavalo e amarrou-lhe as rédeas na cercazinha da casa alugada... Maria assustou-se, mas o cavaleiro lhe disse que era um emissário do deus Jeová e que vinha lhe trazer uma boa notícia. Deus havia ouvido as suas preces e lhe concederia um filho, que deveria chamar-se Jesus e que ele iria restaurar a religião cristã entre o bom povo português. Maria ajoelhou-se diante do anjo e disse ser a escrava de Jeová e aceitar a Sua vontade. O cavaleiro lhe disse que desse a notícia a seu marido assim que ele voltasse da oficina, que ele ficaria muito satisfeito.

Por um instante, Maria desconfiou e disse timidamente: “Mas como eu saberei que tu és realmente o enviado de Jeová e não o de Satã?” O cavaleiro sorriu, sua armadura desapareceu e ele abriu duas imensas asas brancas. Então desamarrou as rédeas do cavalo e o puxou pela estrada, até que também ele abrisse as asas e os dois seguiram voando em direção ao céu, porque era um cavalo de anjo também!... Logo chegou José e ela lhe deu a notícia. Os dois se ajoelharam e rezaram em agradecimento pela dádiva divina. Longe de pensar em mais impostos ou nas despesas com o filho, o pobre José apenas pediu forças para poder trabalhar mais e sustentar sua família.

Mas um dia, o Califa de Granada começou a desconfiar de que seus aguazis estavam retendo uma parte do dinheiro dos impostos e determinou que se realizasse um recenseamento, uma contagem do povo, para saber com quanto poderia realmente contar a cada ano para seu tesouro. Cada um de seus súditos deveria ir até sua cidade de origem e ali se registrar. Ora, José era natural de Aljesur, mas sua esposa Maria viera de Odeleite, que ficava na outra ponta de Algarves. O menino ainda era muito pequeno e mamava, era uma viagem longa e difícil através das montanhas ou ainda mais longa pela estrada do mar, havia perigo de salteadores e, além disso, durante as semanas que durasse, José não poderia trabalhar e seu dinheiro acabaria.

Os dois conversaram longamente, enquanto Maria lavava as fraldinhas de Jesus e José as levava ao varal para estender ao vento da noite, como diz a velha canção:

Nossa Senhora lavava,

São José estendia...

E o Menino chorava

do frio que então fazia...

Maria lembrou que seus pais estavam morando em Lisboa, a nova capital portuguesa, que havia sido conquistada aos mouros pelos nobres cavaleiros lusitanos e, para evitar os prejuízos e livrar-se de tantos impostos que pesavam sobre eles, decidiram fugir para o norte. José comprou um burrinho e na outra noite juntaram seus trapinhos em dois surrões, que foram pendurados no animal. Maria sentou-se nele com Jesus no colo e José seguiu em frente, puxando a rédea e com um cajado na mão para sondar o caminho à frente e não tropeçar no escuro. Ele levava suas ferramentas de carpinteiro em uma mochila e a serra atravessada nas costas.

Os dois tinham a intenção de atravessar o rio Mira, que sai do lago desse mesmo nome e que, nessa época fazia fronteira entre o Algarves do Califa e o Portugal do Rei. Mas em lá chegando, encontraram uma guarda maometana bastante numerosa, que ocupava todos os vaus do rio, justamente para impedir que algum pobre judeu ou cristão fugisse para fora dos domínios do Califa... Assim, como não tinham mais nada a perder, já que tanto o casebre como a oficina eram alugados, José se decidiu a acatar as ordens e seguir para leste, em direção a Odeleite, em que registraria a mulher e o filho e depois retornariam para Aljesur, onde ele mesmo se recensearia.

Foi uma viagem longa e árdua através das montanhas. José tinha receio de ser detido e interrogado por ter saído de Nazaré durante a noite. Levaram quase duas semanas cruzando a serra de Monchique e o vale seguinte, mas finalmente chegaram a Odeleite. José deixou Maria e Jesus na cavalariça de uma hospedaria, porque não tinha dinheiro suficiente para pagar um quarto e foi registrar a mulher e o filho no escritório do alcaide da cidade. Para sua surpresa e alegria, encontrou Joaquim, o seu sogro, que também viera se registrar. Meio em segredo, perguntou-lhe por que tinha obedecido à ordem, já que ele e Ana, sua esposa, se haviam mudado há mais de cinco anos para Lisboa... O bom Joaquim lhe explicou que tinha ainda uma pequena propriedade em Odeleite e que só agora conseguira vender... Mas que pretendia voltar às escondidas para Portugal naquela mesma noite. “Volto a Lisboa? Por que vocês dois não vêm comigo? Minha mulher vai adorar ver o netinho!..."

José explicou que já tinham tentado cruzar o rio Mira, mas que estava fortemente guardado... Joaquim comentou que o Ribeiro do Vascão, que também fazia fronteira com as terras do rei, era mais fácil de atravessar, por ser bem mais longo que o Mira e a guarda patrulhava ao longo de seu curso, ao invés de se distribuir por toda a sua extensão... Assim, no outro dia, saíram para oeste, como se estivessem voltando para Aljesur, a fim de não chamar a atenção dos aguazis do califa e, assim que escureceu, dobraram para o norte através da serra, conseguindo cruzar o vau sem serem vistos. No outro dia, já estavam em Almodóvar, aos pés do imponente monte Mu... Como Joaquim estivesse bem provido de dinheiro, não tiveram maiores dificuldades em chegar a Lisboa, embora fosse inverno e houvesse muita neve. Maria teve de lavar os cueiros de Jesus com bolas de neve e eles logo foram ficando bem fininhos...

Quando Ana atendeu à porta, não cabia em si de alegria!... A casa era pequena, mas era deles mesmos e logo acomodou a filha e o genro, mal conseguindo largar do colo o seu netinho tão esperado... Joaquim também era um carapina, como chamavam então os carpinteiros, a concorrência era grande, mas sempre havia navios no porto de Lisboa precisando de conserto e Joaquim ensinou José a ser um calafate, como se chamavam os operários que consertavam as tábuas corroídas pela salsugem do mar, retiravam as cracas, os moluscos que haviam aderido ao casco e depois passavam alcatrão ou betume entre as frestas, para deixar o navio completamente calafetado, isto é, tão fechado que a água do mar não conseguisse penetrar. Quando não havia navios, trabalhavam como marceneiros, fabricando e consertando móveis ou novamente como carpinteiros, fazendo portas e janelas e instalando assoalhos e tetos.

Esse ano foi um dos invernos mais rigorosos que haviam encontrado, mas na casa de Joaquim e de Ana havia uma lareira e um fogão a lenha e nunca precisavam comprar carvão ou musgo para iniciar o fogo, porque José e Joaquim sempre traziam do trabalho um surrão cheio de cavacos e maravalha, de modo que, dentro de casa, não passavam frio. Depois, Ana tinha um tear para tecer panos de lã e faziam meias, cobertores e jalecos para a família ou até para vender. José também estava ganhando bastante e de passagem pelo mercado trazia novelos de lã para casa, como diz a velha canção:

Nossa Senhora faz meias,

a linha é feita de luz...

O novelo é a Lua Cheia:

as meias são pra Jesus!...

Por algum motivo, José e Maria não tiveram outros filhos, da mesma forma que Maria tinha sido a filha única de Ana e de Joaquim... Mas o menino cresceu forte e robusto, educado e obediente, aprendeu a ler e a escrever e frequentava a sinagoga aos sábados e a catedral aos domingos, como um bom judeu católico. Aprendeu a profissão e se tornou um marceneiro até melhor que o pai e o avô; a família vivia bastante bem, mesmo que os homens não trabalhassem aos sábados, que era dia santo dos judeus, nem aos domingos, que era o dia santo dos cristãos. Jesus de Algarves aproveitava para frequentar a shul, a escola hebraica, em que estudava a Bíblia e as aulas de catecismo da catedral, para aprender a nossa santa religião.

Mas um dia, na praça do mercado, encontrou três cavaleiros, as armaduras cheias de mossas, os jaezes dos cavalos remendados, os rostos pálidos e com cicatrizes, usando cruzes vermelhas desbotadas sobre as batas brancas aos farrapos, que falavam ao povo sobre o sofrimento dos cristãos sob o domínio do novo Califa de Granada, que havia determinado a sua conversão ao islamismo, ao contrário de seus predecessores, caso contrário, seriam vendidos como escravos. Jesus de Algarves, lembrando de seus compatriotas católicos e judeus, aderiu à Cruzada.

Mas havia um problema: ele não tinha dinheiro para armadura e nem sabia usar qualquer arma. Então, rezou muito ao Altíssimo, o Senhor dos Céus, escolheu a madeira mais forte e fez uma espada de madeira, que depois pintou com tinta prateada e foi apresentar-se aos cavaleiros, vestindo uma túnica branca e uma capa vermelha e com sandálias nos pés. A tropa que eles haviam reunido tampouco tinha uniformes, mas usavam botas e algum tipo de couraça ou cota de malha, além de terem armas e capacetes de metal, enquanto o rapaz usava os cabelos e a barba longos. Mas Jesus de Algarves seguia com tanto entusiasmo, que todos os seus companheiros o respeitaram, sem fazer troça por estar tão mal equipado; eram homens pobres, senão o teriam ajudado a se vestir melhor, mas sentiam mais é pena dele, porque achavam que morreria na primeira batalha.

Dois monges acompanhavam a tropa improvisada e antes do combate, conforme era o costume, Jesus de Algarves foi confessar os seus pecados, não que os tivesse, pobre moço inocente que ele era!... Quando o santo monge lhe deu a absolvição, um raio de luz caiu do céu sobre eles e Jesus de Algarves teve a visão de um escudo com cinco pedras brancas e sete pássaros dourados voando ao redor deles. O monge persignou-se e disse que eram as quinas e fortalezas da bandeira de Portugal e que ele fora chamado para proteger o Reino! Como a espada de madeira pintada tivesse começado a brilhar, o monge lhe disse que fora consagrada e que ele não seria ferido no combate.

De fato, embora o rapaz não evitasse o inimigo e fosse até o lugar onde a luta era mais ferrenha, não só não foi ferido, como ninguém o desafiou. Mas ao ver um de seu companheiros muito malferido, Jesus encostou nele a espada, sem saber bem por que e prontamente a ferida se fechou. O rapaz sacudiu a cabeça, tampouco sem saber o que acontecera e voltou ao combate. Jesus ergueu uma prece ao Pai do Céu e começou a tocar em todos os feridos portugueses. Cada um que ele tocava com a espada consagrada imediatamente se erguia e até mesmo os que pareciam mortos se levantavam. Deste modo, os mouros encontravam sempre novos inimigos aguerridos e acabaram por ser derrotados. Jesus, contudo, chorou ao ver os árabes mortos ou amarrados para serem vendidos como escravos, segundo o costume da época. Decidiu então afastar-se das guerras e procurou uma tranquila abadia bem ao norte do país. E assim, consoante a antiga balada,

Jesus não foi general,

mas incitou bravamente

essa lusitana gente,

com grande vigor marcial.

E resolvido a contento

seu impulso triunfal,

quis afastar-se do mal

e foi morar num convento!...

Morto o rei dessa nação,

ao trono de Portugal

subiu seu filho, afinal,

o nobre Dom Sebastião!

Formou exército aguerrido

para os mouros derrotar.

Jurou Algarves conquistar

e seu voto foi cumprido!...

Dom Sebastião tinha apenas dezoito anos e fizera um voto de que não se casaria até que expulsasse os mouros de todo o Algarves. Mas embora tivesse realmente conquistado todo o velho território português, escutou a voz de seu confessor e decidiu prolongar o voto até conquistar também todo o norte da África, terras que tinham sido cristãs até algumas gerações antes de seu tempo. Assim, armou uma tropa e pediu a ajuda de Jesus, que disse não querer participar de mais lutas, mas que pediria a bênção de Deus sobre os lusitanos. O jovem rei disse que não precisava de bênçãos de ninguém, mas sim de soldados ou de curadores!... Montou em seu cavalo e voltou para Lisboa, cheio de vaidade e de orgulho. Assim, Dom Sebastião preparou uma tropa aguerrida, juntou uns quantos navios e foi desembarcar nas costas do norte da África.

Os soldados amavam muito a seu corajoso rei, mas o nome de Jesus era invocado por todos os soldados portugueses, nesses combates que duraram muitos meses, a cada dia se fazendo mais sagrado... Começaram a chamá-lo de São Jesus de Algarves para distinguir do Jesus de Belém, que todo bom católico sabia ser o Filho de Deus, embora os soldados judeus e os mercenários muçulmanos o considerassem apenas um grande profeta. Porém todos sabiam que Jesus de Algarves tinham uma espada mágica, que curava todos os feridos e, às vezes, se o merecessem, era capaz de levantar até os mortos. Seus menestréis então também cantavam longas baladas sobre a vida de Jesus e a maneira como impusera sobre o povo a cruz!... E era deste modo que entoavam:

"Num humilde vilarejo,

dominado pelos mouros,

nasceu sem quaisquer tesouros,

mas acolhido num beijo,

um menino pobrezinho,

o filho de um carpinteiro,

que em busca de mais dinheiro,

encetou outro caminho..."

"Movido pelo seu medo,

José comprou um burrinho

e Maria e o menininho

levou, com todo o segredo,

às terras de gente boa,

em que pudesse ganhar,

dinheiro e os dois sustentar:

foram morar em Lisboa!..."

E os feridos que sobreviviam e eram transportados de volta para Portugal eram levados até o mosteiro em que Jesus morava, bem ao norte, na província de Trás-os-Montes, num lugarzinho muito humilde, chamado de Villarinho de São Romão, em homenagem ao santo protetor da capelinha. Jesus de Algarves saía de suas orações, tomava a espada, com a permissão do abade, e tocava os feridos, que prometiam voltar à luta contra os mouros e prontamente se curavam. O povo do lugar passou então a lhe levar os doentes e a todos curava, até mesmo alguns que já eram dados por mortos, porque estavam em coma e mal respiravam.

Enquanto isso o rei, tão devoto quanto corajoso, mas cheio de orgulho em seu coração, acabou por ser derrotado em um lugar chamado Alcácer-el-Kebir e os portugueses tiveram de fugir. Levaram consigo o corpo de seu rei, mas para não serem perseguidos, espalharam a lenda de que o cadáver não fora achado... Entrementes, eles o haviam transportado secretamente em um dos barcos que demandavam Portugal, sua tropa muito reduzida pelos combates, muitos haviam morrido e outros sido escravizados pelos mouros. Na triste viagem de volta, um dos soldados pediu para falar com o comandante e contou que tinha sido curado por Jesus e retornara à luta. Quem sabe ele não curava também o rei? Ele ouvira dizer que Jesus era capaz de trazer os mortos de volta à vida... e o corpo do rei adolescente, milagrosamente não se havia deteriorado durante a viagem toda... Assim, movidos por fé, esperança e caridade, ao invés de sepultarem o pobrezinho em Lisboa, eles colocaram o ataúde em um carroção fechado e viajaram a toda a brida para Trás-os-Montes... Conforme cantaram os vates:

Seu corpo foi transportado,

na armadura reluzente...

Foi viagem diferente

da que havia carregado

o jovem Dom Sebastião,

todo cheio de esperança,

que a vitória não alcança,

lanceado no coração!...

Com a morte de seu rei,

que nunca tivera filhos,

pelos domésticos trilhos,

conforme mandava a lei,

quem essa coroa ganha,

extinta a casa de Aviz,

um prêmio que sempre quis,

caberia ao Rei da Espanha!

Trazendo no peito a cruz,

os senhores lusitanos,

vestidos de negros panos,

vão em busca de Jesus...

Que morava no mosteiro,

nas terras de Trás-os-Montes,

com jardim cheio de fontes

e um pomar de limoeiro...

Pediram humildemente a permissão do abade e foram recebidos por Jesus na capela do mosteiro. Jesus indagou aos nobres senhores vestidos tão humildemente e eles lhe responderam que sabiam que ele tinha um dom divino de ressuscitar os mortos e que já trouxera de volta à vida muita gente, tanto pobres como nobres. Jesus disse que não era bem assim, que ele só curava os feridos e os doentes, não tinha o dom de enganar a morte... Eles suplicaram, explicando que o rapaz não tinha filhos e que com ele terminaria a dinastia de Aviz; que o rei da Espanha, filho de uma irmã do antigo rei de Portugal, já se preparava para exigir o trono e que Portugal perderia sua independência, que se tornaria apenas uma província do reino espanhol!...

Jesus contestou que não era bem assim, que o cardeal Dom Henrique, tio-avô do jovem rei, ainda representava a Casa de Aviz e que deveria ser o rei, porque descendia por linha paterna, enquanto o rei da Espanha pertencia à família por linha materna... Os senhores explicaram que amavam e respeitavam o Sr. Cardeal, mas que ele estava muito velho e “cheio de achaques”, além do que, sendo padre, também não tinha herdeiros, portanto era só uma questão de tempo para que a nação desaparecesse... Jesus ainda protestou que não cabia a ele contrariar os desígnios do Altíssimo, mas os senhores mostraram tanta fé que ele pediu que lhe trouxessem o corpo do jovem rei e os orgulhosos condes e marqueses carregaram pessoalmente o ataúde e depositaram o corpo amortalhado em ouro e roxos panos na capela da abadia e então deixaram Jesus a sós com ele.

Afinal de contas, Jesus de Algarves era português... Era judeu e também um bom católico e assim procurou fazer o que lhe pediam. Contemplou longamente o rosto branco e rígido, que não mostrava o menor sinal de corrupção e percebeu que o espírito ainda habitava nele; sentiu que seu coração era puro e cheio de fé na santa religião, mas que fora maculado pelos pecados da vaidade e do orgulho e, por isso, Deus o castigara. Então Jesus lhe falou ao ouvido e perguntou-lhe se achava que outra vida merecia. Os lábios de El-Rei Dom Sebastião se abriram e ele pediu humildemente a sua bênção.

O santo Jesus concordou e então subiu ao altar trabalhado, que ele mesmo esculpira e abriu os braços contra a cruz lisa que ele mesmo fabricara, estendendo-se contra ela, até que cravos mágicos prenderam suas mãos e seus pés. Seu sangue começou a escorrer e pingou sobre o corpo que estava no caixão. O corpo foi sendo lentamente reanimado. É por isso que até hoje os devotos portugueses representam Jesus preso na cruz em vez de usarem uma cruz lisa como o fazem os hereges protestantes. Jesus de Algarves desceu da cruz e foi conversar com o rei, que estava sentado dentro de seu ataúde. Dom Sebastião estava bastante confuso... “Então, eu não morri...?” indagou. “Morreste, sim, como um castigo para teu orgulho, a fim de que aprendesses a ser humilde. Eu te trouxe de volta à vida, mas terás de obedecer sempre à vontade de Deus. Eu te darei um exército de anjos e uma grande tropa formada por judeus. Assim, conquistarás a Espanha inteira sob teu cetro e, depois disso, com um grande exército, retomarás todas as terras cristãs que foram tomadas pelos mouros, até o Egito, a Palestina e a grande Síria e restaurarás o Cristianismo no coração de todos!... E como cantaram os menestréis de antanho:

“E enquanto fores fiel,

terás todo o meu favor.

Mas lembra que sou judeu!

Vou meu povo proteger.

E não te darei quartel,

se olvidares meu amor,

que tanta glória te deu

e te fez enriquecer!..."

Dom Sebastião conquistou,

com sua tropa de arcanjos

e uma tropa de judeus,

a terra inteira dos mouros!

Eram judeus portugueses,

lusitanos os seus anjos,

todos votados a Deus,

sem cobiça de tesouros!...

E com sua tropa aguerrida,

dessa gente portuguesa,

foi conquistar, com firmeza,

toda a Espanha enriquecida,

guiados numa só proa,

em poderosa nação,

sob o cetro de sua mão:

e a capital foi Lisboa!...

Então o Sr. Bispo Dom Antônio de Lisboa organizou uma linda festa em agradecimento por toda a bondade que Deus tinha mostrado para com seu fiel povo português, insistindo com o abade de São Romão para que enviasse Jesus de Algarves para participar das celebrações. José e Maria também foram convidados, embora Joaquim e Ana já tivessem falecido. Então uma linda barca desceu dos céus, tripulada por anjos e arcanjos e por toda a companhia celestial e parou no porto de Lisboa. Jesus, Maria e José, acompanhados por Dom Antônio, embarcaram nela e muitos outros barcos, caravelas, naus e naves seguiram por um grande desfile aquático, enquanto El-Rei Dom Sebastião, com sua corte inteira, subia ao alto da torre de Belém para contemplar o préstito. E o bom povo de Lisboa dançava a mucharinga, uma dança típica de Algarves e cantava:

Vamos, Maria, vamos,

na praia a passear!...

Vamos ver a barca nova

que do céu caiu ao mar!...

Nossa Senhora vem dentro,

os anjinhos a remar...

Santo Antonio é o piloto,

Nosso Senhor, general! General! General!

Mas um grupo de rapazes se juntou e começou a fazer troça da canção, entoando versos muito diferentes:

O qu'é aquilo, o qu'é aquilo, o qu'é aquilo?

É São João, a comer um grilo!...

Ai, não é nada, ai, não é nada, ai, não é nada!

É São João, a comer pescada!...

A guarda lisboeta ia interferir, mesmo que os versos faziam alusão a D. João III, o antigo rei de Portugal, mas Dom Sebastião ordenou que or deixassem divertir-se, porque esse era um dia em que todos deveriam ficar felizes... Mas a rapaziada começou a ficar mais ousada e, mal-agradecidos, mudaram a letra:

O qu'é aquilo, o qu'é aquilo, o qu'é aquilo?

É o Sebastião, a comer um grilo!...

Ai, não é nada, ai, não é nada, ai, não é nada!

É o Sebastião, a comer pescada!...

Ai, isto é munto, ai, isto é munto, ai, isto é munto:

É o Sebastião a comer presunto!...

Ai, não é mol, ai, não é mol, ai, não é mol:

É o Sebastião sentado no urinol!...

E por aí seguia, com outros versos que a decência me proíbe de incluir aqui... Então o rei mandou dispersar os rapazes, não por causa dele, mas porque achou que os padres e burgueses iam se ofender com os outros versinhos mais ofensivos à moral e aos bons costumes, que a rapaziada já começara a cantar às gargalhadas e permitiu ao ansioso Chefe da Guarda Lisboeta que mandasse seus homens dispersar aquele bando de arruaceiros.

E cumpriu Dom Sebastião

suas promessas a Jesus.

Para julgar teve a luz:

protegeu, com compaixão,

os seus judeus portugueses;

e para evitar desdouros,

também protegeu os mouros,

por muitos anos e meses...

Depois disso o rei, com o apoio de Jesus de Algarves, de quem, segundo dizem os menestréis, realmente recebeu uma tropa de anjos e outra de judeus, além de uma tropa de aguerridos lusitanos e outra de ousados espanhóis e até uma formada pelos mouros de Córdoba, de Toledo e de Granada, que eram agora também seus súditos, com todas as bênçãos dos bispos, dos cardeais e do Santo Papa, atravessaram o Mediterrâneo e conquistaram toda a costa da Berbéria, até chegarem ao Egito. Com a espada de Jesus, as tropas permaneciam sempre fortes, porque os feridos sempre se curavam e voltavam ao combate cheios de energia... Embarcaram novamente nas naus e caravelas e desceram em São João d’Acre, conquistando a Palestina e a Síria inteira!... Dom Sebastião entrou triunfante em Jerusalém e foi rezar com Jesus no Santo Sepulcro, os dois ajoelhados lado a lado, Sebastião rezando em altas vozes, enquanto Jesus de Algarves o acompanhava com uma voz de suave silêncio.

Conforme lhe prometera, tratou muito bem os judeus, como todos os seus demais súditos. Encontrou também muitos cristãos nessas terras conquistadas aos muçulmanos, pena que não eram católicos, mas hereges coptas e muçulmanos. Os padres queriam que fossem convertidos, Jesus lhe disse que os deixasse praticar sua religião em paz. Então Dom Sebastião, que era matreiro, sabendo dos impostos que os muçulmanos cobravam dos católicos, impôs uma taxa um pouco menor sobre todos os cristãos que não obedeciam ao Papa, do mesmo modo que a cobrava dos muçulmanos conquistados, embora tenha isentado os judeus, para ficar de bem com Jesus, sob cujo olhar reprovador ele não conseguia sentir-se lá muito à vontade...

Então voltaram para Lisboa, agora a capital de metade do mundo mediterrâneo e o reino entrou em uma fase de muito grande prosperidade, o comércio se desenvolveu em um ambiente de paz e tranquilidade, porque nenhum de seus vizinhos, nem os franceses, nem os berberes do Sahara, nem os árabes da Mesopotâmia ou da Península, nem sequer ou persas do outro lado do Golfo se animavam a atacar um império tão poderoso. Jesus de Algarves, então, recolheu-se humildemente a seu mosteiro, enquanto Dom Sebastião prometia manter toda a proteção aos súditos, consoante lhe prometera. Dentro de pouco tempo, ele se casou com a filha do seu súdito mais poderoso, o rei da Espanha, que era sua prima em segundo grau e logo teve com ela um filho, para dar continuação à Casa de Aviz e à glória lusitana, a quem pôs o nome de João, tradicional entre os reis de sua dinastia.

Mas como tudo passa neste mundo, Dom Sebastião envelheceu e, como Jesus se afastara da faustosa corte, Sua Santidade, o Papa, achou que já era tempo de aumentar a sua influência no maior país da cristandade e enviou vários núncios apostólicos com as suas bulas, um dos quais se tornou o confessor do rei. Tanto murmurou aos ouvidos dele, que Dom Sebastião esqueceu suas promessas... Como narra a velha balada:

E um dia, Dom Sebastião

escutou seu confessor,

por quem nutria temor,

esquecida a compaixão...

E ordenou a conversão

de seus súditos judeus,

os pobres filhos de Deus,

após jurar proteção...

Assim, obedecendo as ordens do Papa, deu três meses aos judeus portugueses e espanhóis para que se convertessem ao catolicismo ou deixassem suas terras. Mas seu império era muito grande e milhares se mudaram para o norte da África ou para a Ásia, que não tinham sido incluídas no edito e nem na bula do Papa, mesmo porque este não queria entrar em conflito com o Imperador de Bizâncio, que apoiava os hereges ortodoxos. Muitos se converteram, para evitar as novas taxas que lhes haviam sido progressivamente impostas. A maioria, porém, ao final dos três meses, nem fora embora e nem se convertera. Mas como a índole portuguesa é mais benevolente do que a espanhola, Dom Sebastião se opôs ao Santo Ofício e mandou que fossem embarcados para o Brasil, para a África ou para outras de suas colônias, sem torturas, prisão ou piores castigos.

Mesmo assim, ele quebrara a sua promessa e sabe-se lá o que o jesuíta seu confessor ainda haveria de cochichar em seu ouvido? Jesus de Algarves, que derramara seu sangue por amor dele, entristeceu-se e retirou-lhe a sua proteção. Numa caçada, o rei caiu do cavalo, quebrou a perna e ainda foi ferido pelos afiados colmilhos do javali que estava perseguindo. O animal foi morto e o rei salvo, mas os ferimentos gangrenaram, como se dizia naquele tempo, ou seja, infeccionaram a um ponto tal que o rei morreu. Uma comitiva levou o corpo até o mosteiro de São Romão, mas os nobres não estavam entre eles, porque tinham ficado ricos, o rei tivera um herdeiro e não se preocupavam mais com a segurança do reino, já que a sua própria estava assegurada. Desta vez, Jesus de Algarves abanou a cabeça e disse que não podia fazer nada. Assim, os escudeiros mais fieis do rei pediram que ele fosse enterrado na cripta do convento, o que foi feito em total segredo, porque os nobres pensavam que ele já tivesse sido sepultado em Lisboa. E como termina a canção:

E morreu Dom Sebastião,

sem ressuscitar de novo,

enterrado pelo povo,

na aldeia de São Romão!...

Enquanto isso, o filho de Dom Sebastião, que nascera na bela cidade de Bragança, tinha sido coroado rei, com o título de D. João IV. Jesus de Algarves, porém, desiludido do povo português, viajou disfarçado até Lisboa, subiu até o alto da Torre de Belém e dela, segundo dizem os pobres saloios que o assistiram, subiu tranquilamente aos céus, tendo percebido como era inútil retornar ao mundo para mudar de uma hora para outra a ambição e a maldade dos homens, fossem eles portugueses ou de qualquer outro povo. Afinal, tudo tem o seu tempo neste mundo e nem mesmo ele conseguiria apressar o Dia da Salvação, que somente do Sr. Deus Pai é conhecido e manifestado pelo poder do Divino Espírito Santo e de Seu Filho Jesus Cristo, Amém!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 09/07/2011
Código do texto: T3084187
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