Contos Avulsos – A Pedra do Segredo
* Do Livro - A ESQUINA DOS CONTOS
A história de vida de um sujeito conhecido apenas pelo apelido de “Fuzileiro” pode ser comum a milhares de pessoas espalhadas pela crosta do planeta terra, mas ela foi contada na Esquina dos Contos por um forasteiro que se dizia representante de vendas de cal de empresas de Caçapava do Sul . Ele se orgulhava muito das riquezas minerais desse município do Rio Grande do Sul , sempre destacando a produção de cobre e as minas de cal . Nascido naquela cidade, sublinhava sua condição de “Capital Farroupilha”, numa alusão a ter sido ali instalado o governo durante o período conhecido como a Guerra dos Farrapos.
O forasteiro contou que conheceu o “Fuzileiro” durante a infância compartilhada na zona rural de Caçapava do Sul , sendo ele filho de uma família de classe média, ao passo que seu companheiro de infância era apenas um dos dez filhos de um leiteiro muito pobre, sendo que o “fuzileiro” era um dos mais velhos e, como natural na época, ajudava na criação e sustento dos irmãos mais novos.
No relato narrava que “Fuzileiro” raramente dividia momentos de lazer . Sequer lhe sobrava tempo para as “peladas” e jogos de futebol do campeonato da várzea . Quiçá por isso mesmo, ele sempre ostentava um ar de melancolía . Mas foi num encontro de ambos junto à “Pedra do Segredo” que nasceu a admiração do forasteiro pelo “Fuzileiro”, pois estava passeando à cavalo num fim de tarde quando avistou-o sentado à beira do rochedo, com o pensamento distante.
Desceu do lombo do tordilho, amarrando o animal numa árvore e caminhou em direção ao “Fuzileiro” . Ele havia ganhado esse apelido porque em certa ocasião teria dito que pretendia um dia seguir a carreira de Fuzileiro Naval, pois havia escutado na programação da rádio “Voz do Brasil” que haveria um concurso para jovens que desejassem seguir a carreira militar na Marinha de Guerra. Logo foi indagando sobre o que estava ele fazendo ali, sozinho. Sua resposta foi imediata :
- “Estou me despedindo daqui , pois hoje fui à cidade e me alistei para o serviço militar obrigatório – e nenhum lugar me pareceu tão próprio quanto a Pedra do Segredo para refletir sobre o incerto caminho – é um lugar místico ”.
- “Então vai mesmo correr atrás do sonho de ser fuzileiro naval ?” – indagou-lhe o forasteiro.
- “Seja o que Deus quiser” - foi a resposta e desde esse dia passaram-se muitos anos sem notícias daquele menino pobre . Na vizinhança diziam que todos os meses chegava uma carta com um cheque contendo uma ajuda para a educação dos irmãos , sem nada escrito , até porquê “Fuzileiro” era analfabeto e nunca escondeu a ferida que isso representava para ele .
Ao ingressar num Batalhão de Infantaria do Exército na cidade de Santa Maria “Fuzileiro” foi se destacando perante seus superiores como o mais disciplinado e respeitador soldado . Jamais descumpria ordens e , muito antes pelo contrário, era solícito a todos e a tudo e graças a isso conquistou a admiração de um Capitão nordestino que, de origem pobre como ele , sensibilizou-se ao saber de sua história de vida.
Antes mesmo de completar o primeiro ano dentro do estabelecimento militar o próprio Capitão que comandava sua Companhia obteve para ele uma Matrícula num curso do chamado ‘MOBRAL’ que era uma sigla para um programa do governo implementado naquele tempo : Movimento Brasileiro de Alfabetização.
Ao final do ano “Fuzileiro” não apenas estava alfabetizado como disputava com outros recrutas recortes de revistas e folhas de jornal velhos . Queria ler tudo o que achava pela frente e demonstrava uma verdadeira ânsia de conhecimento. Quando avistava o Capitão apresentava-se voluntariamente com sua “caixa” para dar uma “demão” de graxa em suas botas e passar o feltro para dar brilho, tudo , enquanto proseava e contava as novidades ao superior orgulhoso e sensibilizado .
Não foi surpresa para ninguém no Quartel que “Fuzileiro” constasse na lista dos soldados que permaneceriam “engajados” , isto é , continuariam vinculados ao Exército por um período que poderia chegar até o máximo de sete anos – aparentemente pouco – mas tempo suficiente para que ele pudesse evoluir em seus estudos. E foi isso que ele fez.
Sem vacilar jamais ele perseverou nos estudos e matriculou-se no curso chamado “Supletivo”, conseguindo em tempo recorde o certificado de conclusão do Ensino Fundamental . Nessa época o Capitão nordestino que o ajudara a mudar seu destino já estava em outra unidade do Exército, no Estado do Paraná, mas foi surpreendido quando recebeu um envelope dos correios dentro do qual havia o Xerox de um diploma acompanhado de um bilhete que dizia :
“- Meu Capitão, esse diploma devo em grande parte à sua generosidade e ao glorioso Exército Brasileiro”.
Poucos meses depois o Oficial já ostentando as insígnias de Major recebeu a notícia da aprovação de seu antigo soldado no concurso de admissão da Escola de Sargentos das Armas – ESA – sentindo um misto de orgulho e emoção, afinal era uma testemunha viva da façanha.
Passados muitos anos o Oficial em fim de carreira militar assumiu o comando de uma Divisão , já no posto de General e para sua surpresa encontrou por lá já com as “tiras” de Primeiro Sargento a mesma figura humilde e dedicada do “Fuzileiro” . Passaram a ter uma convivência íntima e nos finais de semana se reuniam para comer churrasco de cordeiro. A relação tornou-se ainda mais fraterna depois da apresentação da esposa do ex-soldado – uma simpática professora de inglês – com quem havia gerado um casal de filhos.
Contou o forasteiro que “Fuzileiro” foi um dos primeiros sargentos do Exército Brasileiro a atingir a condição de Oficial tendo sido “reformado” – que é a denominação militar para aposentadoria civil – e ido para a reserva como Capitão.
Foi durante uma solenidade de lançamento de um projeto turístico na “Pedra do Segredo” que o forasteiro reencontrou a figura do “Fuzileiro” que pouco havia mudado, delatando o tempo apenas num tom branco dos cabelos . . . e ouviu dele todo o emocionante relato de sua história de vida .
Mas o que mais marcou a memória do forasteiro que contou essa história na “Esquina dos Contos” foi a narrativa do ex-menino pobre a seu casal de filhos , que atentamente ouvia a seguinte locução:
“- Meus filhos ! - dizem que este lugar recebeu o nome de “Pedra do Segredo” porque aqui existem três cavernas e muitos curiosos e pesquisadores teriam tentado explorá-las, contudo, jamais conseguiram avançar por dentro da terra, inclusive, porque num determinado ponto qualquer luz se apaga, pouco importando se tochas ou lanternas elétricas – é um mistério !
- E foi nesse cenário místico e exuberante que um dia começou a mudar uma vida e ficou junto com a inércia das rochas o segredo de muitas dores . Ficou no passado a rusga de uma pedra bruta e hoje eu – sendo pedra polida – mostro a vocês essa rocha monumental, moldada pacientemente pelo tempo ... como eu ! - A Pedra do Segredo ...