Fatos I
Este não é um conto, é um fato. Os contos mentem, fazem-nos sentir angústia e felicidade: a terrível dualidade. Este não é um conto, é um fato. Ocorreu em 1417, como me recordo. Datas não importam. Quem criou as datas certamente é um entusiasta do cárcere: as datas nos aprisionam. Era 1417 quando ele despertou e viu a grã-estrela cinza, desfocada no Grande Oriente. Acostumado a admirá-la em tons de púrpura, pensou naquele momento ter perdido parte de sua tão louvável visão.
Não perdeu. Tudo em seu quarto estava imerso em cores saturadas. Poeiras invisíveis, que cobriam velhas anotações, agora apresentavam-se como um céu avermelhado e banhado por pontos dourados – a sorrir, a dançar…
Não. Patologia óptica, não! Não era! A rua – e neste momento ele se dirigiu até a janela de seu quarto, no quarto andar do único prédio amarelo-ouro do quarteirão -; a rua, sempre tão singela em sua própria existência; a rua, ah! estava tão indiferente quanto os tons de cinza. O contraste e o brilho alternavam-se de forma abrupta, forçando-o a repensar sua própria mente. Ali, no quarto andar do único prédio amarelo-ouro do quarteirão, banhado pela indiferença do cinza que fluía da grã-estrela e da rua, em 1417; ali pensava ter perdido a sanidade.
Espreitou-se, com mais receio que nunca, na grade marrom-ferrugem de sua janela. Não havia, para lá do marrom-ferrugem, nada além de branco, cinza e preto. Imaginou que seus olhos capturavam imagens do exterior como uma lente objetiva daquela época. “Arre! Enlouqueci!”, gritou para si – dentro de si. Desceu a escadaria em uma decisão impetuosa. Reparou que sua porta vinho era só vinho por dentro! Tudo lá fora permanecia cinza e branco e preto.
Esfregava os olhos como um garotinho sonolento, chorava com dor. Pensou sonhar.
Ouviu passos nos degraus da escadaria e desejou que Cristo tivesse retornado ao seu encontro. E lhe tocaria os ombros. E lhe abraçaria e lhe chamaria de irmão. Talvez assim tudo voltasse a ser como era antes! Não. Quem subia a passos lentos os degraus da escadaria não era Cristo, Maria ou Judas: era aquela moça que nunca falava nem gesticulava, tal qual uma estátua de mármore com algum mecanismo que, certamente, não existia em 1417.
O chapéu destacava-se no alto da abeça. Destacava-se não por ser um chapéu no alto da cabeça de uma estátua de mármore animada por um mecanismo qualquer que certamente não existia em 1417; destacava-se, pois, por sua cor vermelho-escarlate, sangue-sólido, que preenchia de tal forma o mármore… que este parecia ter sido chicoteado com roseiras.
Um chapéu. Uma estátua. Um vermelho-escarlate tão intenso que cegava o já cego. Deslumbrado com tanta vivacidade e lascívia, voltou ao lar das cores. Trancou a porta. Espreitou-se, novamente, no marrom-ferrugem e viu que a grã-estrela já não mais ocupava o seu espaço reservado no Grande Oriente. Não havia Oriente. Havia um chapéu vermelho-escarlate que cobria todo o quarteirão com o seu centro milimetricamente posicionado acima do único prédio amarelo-ouro.
Deitou-se. Não compreendia nada! Compreendia? Não compreendia nada! Talvez as ruas e vielas e o próprio Grande Oriente fossem em tons de cinza e cabia a ele, somente a ele, colori-los. Mas cansou-se de aquarelar o incompreensível, o intangível, e tudo retornou ao seu estado adâmico. Dormiu.
Em seus sonhos o chapéu e a estátua de mármore não apareciam. Via-se como outrem; aquarelou-se a si mesmo (o si-projeto-para-além-dele). Sem sucesso: o vermelho-escarlate que luzia de sua pele não se assemelhava ao tom do chapéu da estátua de mármore que subia, vagarosamente, degrau por degrau da escadaria cinzenta.
Moveu-se, em um experimento ingênuo, como a estátua. Os tons e as luzes tornaram-se verdadeiros rubis. Rubis para a estátua de mármore, que agora repousava fragmentada. Rubis para si mesmo, como a Fortuna da época de 1474: mover-se como estátua de mármore e luzir vermelho até o despertar.
19-4-10, em uma lanchonete (com revisões).