O OCEANO DE LEITE (em prosa)
O OCEANO DE LEITE
(Conto popular hindu, recontado por William Lagos, 23/6/11)
Em tempos que já lá vão, existiam na Índia duas tribos de gênios, chamados Devas e Asuras. Ambas descendiam de um poderoso gênio chamado Kasyapa, que fora criado pelos deuses da Índia, mas sem que ele mesmo participasse da divindade, embora herdasse grandes poderes; e de sua esposa, a fada Aditi, mas cada uma delas provinha de uma das filhas do casal. Eram primos, portanto e não eram realmente nem espíritos do bem e nem espíritos do mal, porém os Devas podiam ser facilmente convencidos a ajudar os humanos, enquanto muito poucos Asuras se submetiam; de fato, em geral buscavam prejudicar os seres humanos, aos quais detestavam ou desprezavam e, por malícia, fingiam ajudá-los para lhes causar um dano maior. Quando isto acontecia, os Devas se dispunham a interferir para reparar o dano que tinha sido feito e favorecer os humanos.
Por isso, os humanos consideravam os Devas como anjos e os Asuras como demônios. Para alguns, os humanos descendiam dos Devas e por isso eles os favoreciam, mas de fato, os primeiros homens também eram filhos de Kasyapa e de Aditi, portanto primos-irmãos tanto dos Devas como dos Asuras. Por esse motivo, os seres humanos partilham até hoje da natureza tanto dos Devas como dos Asuras, podendo praticar o bem ou semear o mal entre seus irmãos e irmãs, como tantas vezes se tem visto.
Apesar disso, Indra, o rei dos Devas, convencera-se de que descendia diretamente dos deuses da Índia e que, portanto, ele mesmo era um deus. De fato, era um gênio forte e belo, com aparência igual à dos humanos, de elevada estatura e grande inteligência, excelente caçador e guerreiro poderoso, que dominara muitos monstros e outros elementais. Como recompensa de suas proezas, recebera de Shiva e de Vishnu uma série de tesouros, com os quais mantinha seu povo em paz e prosperidade. Mas sobretudo, recebera como esposa Lakshmi, a bela filha do Rei do Mar, que dava poder, força, saúde e prosperidade, além do dom da perpétua juventude enquanto vivessem, uma dádiva conferida não somente a Indra, como a todos os demais Devas.
Os Devas viviam em um grande palácio construído por Vishnu em um planalto de clima agradável e constante. Sua alimentação, conforto e bem-estar eram garantidos pelos tesouros que Indra recebera. Um deles era seu elefante Airavata, que tinha quatro trombas e impedia a entrada a quaisquer inimigos que se aproximassem da mansão dos Devas. Outro era Sura, o deus do vinho, que lhes garantia bebida abundante. As Apsaras, dançarinas do céu, transmitiam-lhe força e vigor com suas danças. Havia ainda a Kaustabha, uma jóia de fulgor resplandecente, cuja visão enchia os gênios de potência e de sabedoria; Chandra, a Lua, que iluminava as noites tão bem, que dentro do palácio estava sempre claro como se fosse dia; Dhanvatari, um médico humano, porém dotado pelos deuses de grandes poderes e longevidade, que curava todas as doenças e restaurava a fé aos mais incrédulos ou deprimidos; Panchasanya, a Concha da Abundância, de que brotavam alimentos suficientes para todos os Devas; e finalmente, Sharanga, um arco mágico, que nunca errava o alvo e cujas flechas sempre retornavam para a aljava.
Recompensado tantas vezes por Shiva, tornou-se Indra sobremodo orgulhoso, ao ponto de desprezar o próprio Vishnu, que tantas vezes o auxiliara, por não se considerar inferior a nenhum deus, senão ao próprio Brahma, pai dos deuses, dos homens e de todas as criaturas, que criava o universo por sua própria respiração. Quando Brahma expirava, surgia o Universo e, depois de alguns milhares de anos, o Deus Supremo aspirava novamente e tudo desaparecia dentro dele... Até que Brahma novamente soltasse a respiração e recriasse o Universo.
Um dia, Indra saíra a passear pelas florestas que cercavam o planalto dos Devas, montado majestosamente em seu elefante Airavati, que oscilava as quatro trombas, farejando o ar em busca de inimigos, buscando frutos sumarentos para seu senhor, reconhecendo o caminho a percorrer e rendendo louvores à Santíssima Trindade, Brahma, Vishnu e Shiva, com o trombetear possante de sua quarta tromba. Mas Indra se recusava a dar louvores, achando que tudo de que gozava era seu de pleno direito e deste modo, pavoneava-se imponente, sentado no dorso de seu elefante.
Ora, aconteceu que dessa feita atravessaram uma parte da floresta em que morava um asceta, um santo homem chamado Durvasa. Naqueles tempos, os homens eram poucos e tinham contato direto com os deuses, por isso recebiam deles dons variados de acordo com seu mérito. Durvasa recebera de Shiva o poder da Palavra Confirmada. Tudo o que dissesse seria realizado, porque Durvasa recebera a missão de dar nome aos animais e às plantas da Terra, tornar a paisagem mais adequada para os seres humanos e modificar qualquer coisa que se demonstrasse em desacordo com a harmonia celeste.
Com todo esse poder, Durvasa era um homem humilde, como convém a um asceta temente aos deuses. Desse modo, quando escutou de longe os passos poderosos de Airavati, logo soube que Indra se aproximava de sua humilde choupana. Tomado de alegria pelo que julgava ser uma grande honra, chamou duas pombas pelo nome e lhes ordenou que lhe trouxessem as mais belas flores e trepadeiras da floresta, com as quais teceu uma guirlanda, que poderia ser pendurada ao pescoço de Indra e usada como um colar ou dobrada em duas e colocada na cabeça como um diadema. Aprontou a guirlanda, a que deu o nome de Santanaka, justamente quando divisou a imensa forma cinzenta que se aproximava, com um tapete e dossel luxuosos no lombo, formando uma espécie de câmara, em que se assentava Indra.
Cheio de júbilo pela visita, Durvasa postou-se no meio do caminho, inclinou-se sete vezes e depositou a guirlanda na senda para que Indra a recebesse. Porém Indra, que não pretendia em absoluto visitá-lo, ofendeu-se, pensando que Durvasa exigia que ele descesse do dorso do elefante para ir pegar a tal guirlanda. E num assomo de vaidade, dirigiu o elefante com o seu ankus, um bastão com ponta de ferro, de forma tal a impedi-lo de se desviar. Airavati, mesmo a contragosto, pisou diretamente sobre a Santanaka, esmagando a guirlanda. E teria esmagado também Durvasa, se não o retirasse do caminho com uma de suas trombas, colocando-o em lugar seguro. A seguir, horrorizado com a quebra de hospitalidade cometida, estacou, ainda que Indra o incitasse a seguir em frente.
Durvasa, humilhado e confuso pelo que sucedera, repreendeu então ao orgulhoso Indra:
"Tua prepotência é preciso que se abata
pois me ofendeste sem a mínima razão!...
Teu orgulho por tua força e tua riqueza
te subiu à cabeça e te domina!...
Tua esposa Lakshmi irá te abandonar;
os Asuras vão os Devas derrotar;
eu te proclamo a mais pesada sina,
pois perderás tua vaidade e tua beleza!..."
Indra horrorizou-se diante daquela maldição e só então caiu em si. Desceu depressa do elefante e curvou-se sete vezes perante Durvata, de mãos postas, suplicando-lhe que revogasse a praga. O que mais o assustava era a parte referente a Lakshmi, pois sabia muito bem que boa parte de sua majestade e glória vinham dos poderes que ela lhe comunicava, já que era uma fada e filha do poderoso Rei do Mar, de cuja potestade ela mesma partilhava. Em parte, fora justamente o fato de saber-se inferior a Lakshmi que o levara a adotar tanta prepotência e a mostrar-se tão orgulhoso, chegando ao ponto de propalar que era um deus e não simplesmente um gênio.
Durvasa comoveu-se com a prova de respeito mostrada por Indra, mas sabia perfeitamente que as palavras que saíam de sua boca sempre se tornavam realidade e não podiam ser revogadas. Sabia igualmente que só proferira a maldição por intenção dos deuses a quem servia, porque possuía a paz interior e surpreendera a si mesmo com o que estava proferindo. Certamente os deuses desejavam dar uma lição a Indra e haviam usado seu próprio dom neste sentido. Assim, ele procurou contrapor uma bênção e um conselho, que também seriam irrevogáveis:
"Eu te perdoo, porém a maldição,
lançada ao orgulho de teu coração,
não posso revogar, após rogada..."
E concluiu, falando dessa maneira indireta que sempre foi associada à linguagem dos videntes e dos profetas:
"Eu te darei uma bênção com o perdão:
que Vishnu te faça feliz! Agora entende
que a bênção e a maldição se contradizem
mas tampouco uma à outra se desdizem.
Quem tem olhos para ver, tudo compreende:
Vai até Vishnu e lhe pede a proteção."
Mas Indra era orgulhoso em demasia e afirmou que não iria pedir a Vishnu que o ajudasse, já que era seu igual. No mesmo instante, escutou um ruído às suas costas e viu que Airavata dera meia-volta e saíra em disparada, abandonando-o no meio do caminho. O elefante se horrorizara com a blasfêmia e correu até o Oceano de Leite, em que se precipitou com grande estrondo, mas Indra só veio a saber disso bem mais tarde. Voltou-se para Durvasa e eis que estava sozinho no meio da trilha. O asceta também desaparecera.
Indra sentiu-se sufocar por uma série de sentimentos contraditórios, que se sucediam rapidamente, surpresa, medo, raiva, humilhação, cólera novamente. Finalmente conseguiu se controlar e se decidiu a consultar seu mestre Brihaspati, que também era humano, mas recebera de Shiva o poder da Palavra de Conselho. Seu relacionamento com ele vinha de longa data, desde que Indra ainda era adolescente e, embora não gostasse de confessar, fora com seu mestre que aprendera quase tudo quanto sabia. Empreendeu então a pé a longa viagem até a caverna em que residia Brihaspati, que também era um saddhu, um asceta e ermitão como Durvasa.
Brihaspati o acolheu com a cordialidade de sempre, sem lhe fazer perguntas ou questionar seu procedimento. Indra pretendia explicar-lhe o que acontecera, mas descobriu que seu mestre já estava a par de tudo. O ermitão lhe disse simplesmente que ele deveria ir em busca de Lakshmi o mais depressa possível, a fim de impedir a sua partida. Indra agradeceu e desceu correndo a montanha, atravessou os vales e subiu até o planalto em que se localizava a morada dos Devas.
Porém já não encontrou Lakshmi. Ninguém soube lhe dizer aonde fora, somente que Durvasa lhe trouxera a guirlanda Santanaka esmagada e a entregara sem dizer palavra. Lakshmi soube imediatamente do ocorrido, montou em seu touro branco e saiu do palácio e do planalto, mas seu destino era desconhecido. Todos esperavam que voltasse em breve, pois como poderiam viver sem ela? Todo o poder, coragem e prosperidade dos Devas eram concedidos e conservados pela presença da fada no meio deles. A única outra coisa que Indra conseguiu descobrir foi que ela colocara a guirlanda esmagada dentro de um saco de couro, que pendurara do arção da sela do touro e que a levara consigo ao partir.
Indra ficou aterrorizado, porque sabia que a maldição de Durvasa já se estava cumprindo, mas nada disse a ninguém, especialmente porque achou que Durvasa havia trapaceado, indo levar a guirlanda esmagada a Lakshmi e desse modo provocando seu horror pelo crime lancinante que ele mesmo cometera. Mas escondeu seus sentimentos e declarou que não havia problema, que Lakshmi devia ter levado a guirlanda para depositar em algum templo e que logo voltaria. Mesmo que não voltasse, os Devas dispunham de muitos outros tesouros, teriam vinho e alimentação à vontade e a dança das Apsaras manteria seu vigor. Embora um dos Devas indagasse onde estava seu elefante, Indra se calou. Por um momento, a cólera já lhe ia subindo à cabeça, mas caiu em si, sabendo que não havia malícia na pergunta, aquele era simplesmente o Deva que alimentava e banhava o elefante depois de cada um de seus passeios. Assim, nada respondeu, fingindo não ter ouvido.
Mas nessa noite, Sura, o deus do vinho, desapareceu sem deixar vestígios. E quando os Devas foram beber, descobriram que todos os jarros, barris e bordalesas estavam completamente vazios. Tiveram de buscar água nos poços, mas toda a água dos baldes era salobra e não os dessedentava como estavam acostumados, porque o vinho de Sura tinha poderes mágicos e os mantinha sempre cheios de energia. Indra ainda encontrou em seus aposentos alguns restos de vinho, mas quando os foi tomar, descobriu que se havia transformado em vinagre e lhe ardeu na garganta.
Diante da perplexidade do povo dos Devas, Indra mandou chamar as Apsaras, as bailarinas do céu, cujas danças sempre enchiam todos de vigor e alegria, porque, ao bailarem, despediam chispas como a luz das estrelas. Mas as Apsaras tampouco foram achadas e os Devas já começavam a mostrar sinais de cansaço e esgotamento. Indra foi buscar a Kaustabha, a jóia mágica e seu brilho restaurou toda a tribo. O rei respirou de alívio e tornou a guardar a jóia em seu cofre. Mas no dia seguinte, quando foi tentar repetir o ritual, ao abrir o cofre, a jóia fulgurou por um instante, deixando-o ofuscado e sem poder ver por alguns momentos e então também desapareceu.
Na noite seguinte, Chandra, a própria lua, também sumiu do céu. Brilhou por um instante e então rapidamente se apagou. Os Devas tiveram de acender as suas lamparinas e almotolias de azeite, mas a luz que lhes davam era muito fraca, em nada comparável à luz mágica de Chandra, que chegava a clarear os aposentos fechados como se fosse dia, bastando que um dos Devas lhe pedisse e deixava entrar a escuridão quando queriam dormir. Sequer se comparavam aos lampejos cristalinos da dança das Apsaras. Os Devas sentiam-se enfraquecer a cada momento, mas ainda não ousavam interrogar seu rei, cujos acessos de ira conheciam muito bem.
O próprio Indra sentia sua imensa energia se esvaindo e mandou chamar Dhanvatari, o médico dos Devas. Dhanvatari também se contava entre os primeiros homens e recebera de Shiva o Dom da Cura. O toque de seus dedos afastava qualquer doença, retirava todo o cansaço e restaurava a fé em si mesmo ou no poder dos deuses. Mas Dhavantari também sumira do palácio durante aquela noite!...
E no terceiro dia, quando os Devas foram buscar alimentos, sua fome aumentada pela falta de energia, descobriram que todas as panelas, tulhas e celeiros continham somente uma massa apodrecida e intragável. Amedrontados, encheram-se de coragem e foram enfrentar seu rei. Indra foi buscar Panchasanya, a Concha da Abundância, a fim de dar de comer ao povo, mas ao abrir a arca em que guardava a concha, nada restava dentro dela. Ao voltar de mãos vazias, os Devas se revoltaram contra ele e finalmente o acusaram. E a multidão gritava:
"Oh, Indra, nosso rei, a culpa é tua!
Algo fizeste para Lakshmi partir!...
Não temos vinho mais para beber,
as Apsaras não nos vêm fortalecer,
Kaustabha não dá mais o seu luzir
e até perdemos, afinal, a luz da Lua!..."
"O nosso médico não vem nos ajudar,
teu elefante não vem nos proteger,
Sumiu a concha que nos alimentava!...
O que mais falta nos acontecer?"
Indra tentou então o último recurso. Disse a seu povo: “Nada temam, porque irei caçar e trarei alimento para todos”. Alimentar os Devas era um de seus deveres como rei. Com um suspiro de alívio, viu que Sharanga, o seu arco mágico que nunca errava o alvo, ainda estava pendurado onde o deixara e do gancho ao lado pendia a aljava com as flechas que sempre retornavam. Passou a correia da aljava pelo pescoço, segurou Sharanga com a mão direita e partiu depressa para os bosques que cercavam o palácio. Mas no momento em que entrou na sombra das árvores, estalou a correia e a aljava se desprendeu, desfazendo-se em pó ao tocar no solo. Indra mal teve tempo de se recobrar do espanto, quando o próprio arco se desmanchou entre suas mãos trêmulas.
Ao contemplar suas mãos vazias, todo o desespero acumulado na alma de Indra veio à tona. Não foi a gota d’água, foram dez, cem, mil gotas de lágrimas que brotaram de seus olhos. Não podia mais alimentar os seus irmãos como sempre fizera. Não tinha mais vinho para lhes dar, somente vinagre ou a água salobra de seus poços. Os Devas se haviam acostumado a uma vida fácil e sem necessidades, iluminados pela lua e pelas chispas despedidas pelas Apsaras, abençoados continuamente por Lakshmi e fortalecidos pela jóia mágica e logo agora, quando se viam fracos e sem energia, o próprio médico também desaparecera! Mas mesmo em seu desespero, seu orgulho ainda persistia: “Ah, Durvasa! Tu vais me pagar por isso!” foi o que pensou, sem lembrar da segunda profecia, que era uma bênção lançada sobre sua cabeça. E por recordar somente sua angústia presente, incapaz de caçar ou de pescar, sentindo-se humilhado e espoliado de seus tesouros, abandonado pela esposa e acusado por todos, foi mais uma vez consultar seu velho mestre Brihaspati.
Mas o conselho que dele recebeu não o agradou nem um pouco. "Só te resta ir a Vishnu. Aceitaste a maldição, agora aceita a bênção de Durvasa.” Desapontado mais uma vez, agradeceu ao mestre de má-vontade, dizendo que só lhe ensinava o que já sabia e se retirou da gruta. Mas este último assomo de orgulho foi logo dissipado pela fome e sede que ele mesmo sentia. Pedindo o favor de Brahma, o deus altíssimo, Indra empreendeu a pé a longa jornada até a mansão do Senhor Vishnu.
Contudo, um dos Asuras estava à espreita e escutou a conversa de Indra com Brihaspati. Não conseguiu entender perfeitamente, devido à distância, mas teve certeza de que os Devas estavam fracos e sem energia, que Indra perdera o seu elefante, o maior defensor dos Devas, que até mesmo seu arco mágico tão temível se partira... e que o próprio Indra saíra em uma longa peregrinação até o lar do Senhor Vishnu... Que melhor oportunidade eles teriam? Foi às pressas para a floresta em que moravam os Asuras, vivendo da caça e da pesca, e lhes contou o sucedido. O rei dos Asuras prontamente tocou sua trompa mágica, que também lhe fora dada por Shiva, e convocou todos os seus súditos. “Vamos à mansão dos Devas. Eles estão enfraquecidos, o elefante de quatro trombas desapareceu, o arco sagrado quebrou-se e o próprio Indra saiu em peregrinação. Vamos à guerra, irmãos, tomaremos seu palácio, nos apossaremos de seus tesouros e Lakshmi abençoará somente a nós!...”
E assim ocorreu. Dependendo da forma que haviam assumido, os Asuras voaram, caminharam, galoparam ou se arrastaram pelo chão da floresta, mas chegaram todos rapidamente ao planalto dos Devas e os encontraram deitados ou sentados, fracos a um ponto tal que se entregaram sem a menor resistência, deixando-se amarrar e prender em uma gruta. Os Asuras invadiram o palácio em busca dos tesouros. Mas nem Lakshmi, nem Chandra, nem as Apsaras... Não havia vinho nos jarrões, barris ou bordalesas e nem sequer alimento nas panelas, tulhas e celeiros, apenas uma massa pegajosa e intragável até mesmo para um Asura.
Interrogaram os prisioneiros e ficaram sabendo de toda a história. Em seu desapontamento, alguns queriam torturar e matar os Devas, mas o rei dos Asuras ponderou que eram seus primos-irmãos e tinham uma ligação profunda com eles. Não tinham achado os tesouros mágicos que davam força e energia e nem Lakshmi estava entre eles. Se os matassem, logo eles mesmos se enfraqueceriam e acabariam por morrer também. Os mais cruéis dentre os Asuras reconheceram que seria assim. Decidiram então expulsar os Devas para a floresta para que aqueles seus primos preguiçosos aprendessem a caçar e a pescar como eles mesmos sempre haviam feito... e ainda teriam de fazer, já que não havia comida no imenso palácio. Mas sempre podiam gozar o seu conforto e a beleza de seus jardins, embora as fontes tivessem secado ou só jorrassem água salobra.
Assim os Devas desceram do palácio em uma longa fila e foram tocados para a outra ponta de floresta, já que os Asuras teriam de continuar a caçar e a pescar e preferiam fazê-lo do lado que ficava mais perto. Depois da longa caminhada, os Devas tiveram a sorte de encontrar algumas frutas e os mais habilidosos fabricaram lanças de bambu e flechas de freixo de tal modo que, bem ou mal, foram vivendo. Os mais velhos ou mais fracos, acostumados à indolência, morreram, os demais emagreceram muito, mas aos poucos desenvolveram seus músculos e assim se fortaleceram sem a ajuda de qualquer rei ou qualquer deus. Mas ansiavam pelo retorno a seu planalto e suplicavam a Brahma pelo retorno de Indra e de Lakshmi, embora alguns dissessem que ambos haviam morrido.
Enquanto isso, Indra empreendera a longa viagem até a montanha em que habitava o Senhor Vishnu, muito mais alta que aquela em que se encontrava a caverna de seu mestre Brihaspati. Em lá chegando, prostrou-se humildemente diante de Vishnu, narrou-lhe sua história e suplicou por sua proteção e ajuda. Vishnu ergueu-se, segurou-o pelas mãos e fez com que também se levantasse. Prometeu que lhes daria todo o auxílio de que precisassem, mas que eles teriam de se esforçar primeiro para provar que eram merecedores.
"Vocês precisam é de beber o Amrita,
que do Oceano de Leite está no fundo.
Mas o Samudra Mathan é muito espesso
e o néctar da vida eterna tem seu preço.
Vocês terão de bater o mar profundo,
que o licor só surgirá quando se agita."
"Eu lhes darei meu auxílio, certamente,
mas terão de se esforçar e merecer.
Terão de transportar o monte Mandara
até o Oceano de Leite e, na água clara,
com corda grossa, fazê-lo retorcer,
e o oceano agitará, qual mingau quente."
"Só uma corda existe e é uma serpente,
Vasuki, o rei das cobras, que resista...
Mas terás de pedir ajuda aos Asuras.
Todos os Devas, com suas forças puras,
por mais valor com que teu peito insista,
não têm vigor para a tarefa suficiente..."
Indra protestou que os Asuras nunca o ajudariam. Mas Vishnu sorriu e falou novamente:
"Meu caro Indra, esse problema é teu...
Os deuses só ajudam a quem obra.
Vai aos Asuras e sua maldade dobra.
Só depois alcançarás o auxílio meu
que todo o orgulho te sair do coração."
Amargurado, mas mesmo assim com um fiapo de esperança, Indra refez o longo caminho, percorreu os vales e subiu uma terceira vez à montanha em que morava seu mestre Brihaspati. Desta vez, foi acolhido com frieza: “Já duas vezes te ajudei; da primeira, não me agradeceste; da segunda, te despediste com palavras amargas. Como podes vir de novo pedir o meu auxílio?” Mas Indra já engolira seu orgulho e falou: “Sim, mestre, ajudaste-me duas vezes e não soube agradecer; mas vê a situação em que me encontro. Ajuda-me uma vez mais, meu mestre, pois a terceira vez é a decisiva.”
Brihaspati percebeu que seu arrependimento desta vez era mesmo sincero e prometeu que o ajudaria, não mais com um conselho, mas que ele mesmo agiria em favor dele e dos Devas, que não tinham tido culpa por seu desmedido orgulho. “Mas lembra,” disse ele, “esta será a terceira vez. Depois disso, não me procures mais. Espera-me aqui. Encontrarás leite de cabra, queijo e azeitonas, come e bebe. Eu voltarei com a resposta.” Indra dispôs-se a esperar pacientemente.
O ancião desceu a montanha, apoiado em seu cajado, cruzou os vales e chegou ao planalto em que se erguia o palácio dos Devas, agora muito mal cuidado, os jardins abandonados, os pátios sujos e os Asuras desmazelados deitados ou sentados por toda parte. O lugar se tornara tão melancólico que até eles tinham perdido a vontade de caçar e de pescar e enlanguesciam como os Devas antes deles, enquanto estes se fortaleciam em sua luta pela sobrevivência na floresta em que antes haviam vivido os Asuras.
Foi levado à presença do rei, que havia perdido toda a sua imponência devido à melancolia e indolência do lugar, curvou-se sete vezes, humildemente, perante ele, de mãos postas e baixando a testa e lhe disse que viera pedir a ajuda dos poderosos Asuras. “Sei quem és,” disse-lhe o rei. “És o mestre de Indra e sempre protegeste os Devas. Por que pedes meu auxílio?” Brihaspati contou-lhe o que Vishnu dissera a Indra e explicou que a força e vigor dos Asuras era muito maior do que possuíam os Devas, somente eles podiam cumprir a missão a contento, mas não sozinhos, porque precisariam da força inferior, mas adicional dos seus primos Devas. Mas se batessem o Samudra Mathan, o Oceano de Leite, de suas profundezas subiria o Amrita, o licor da vida eterna e tanto os Asuras como os Devas se tornariam imortais.
Os Asuras gritaram que eram fortes o bastante para conseguirem o Amrita sozinhos, mas o asceta explicou que Vishnu dissera ser necessário que reunissem suas forças para a tarefa. “E depois,” concluiu, “Lakshmi é filha do rei do mar e está habitando no fundo do Oceano de Leite...” Os olhos do rei brilharam de cobiça e todos os Asuras ficaram entusiasmados, porque seu maior desejo, mais ainda que a vida eterna, era terem Lakshmi só para eles. O rei cochichou com seus conselheiros, estes falaram em murmúrios com os demais e todos concordaram, com sorrisos maliciosos. Pretendiam ficar com o Amrita, Lakshmi e todos os tesouros para si mesmos, sem dar nada aos Devas, mas é claro que nada disseram. O rei prometeu sua ajuda, como um favor muito especial a seus primos Devas e o ancião se retirou, sabendo muito bem o que os Asuras queriam.
Brihaspati retornou à sua caverna e disse a Indra: “Minha obra está feita. Vai até os Devas e os convoca para seu próprio labor. Que se ergam depressa e vão até o monte Mandara, senão os Asuras chegarão primeiro.” Indra queria saber como os seus rivais tinham sido convencidos, mas havia aprendido sua lição, agradeceu efusivamente e sem indagar nada, descendo o monte a correr até a floresta em que os Devas sobreviventes estavam caçando e pescando. Estes ficaram tão felizes em rever a Indra que prontamente se juntaram e o seguiram até a montanha. Os Asuras chegaram logo depois, um pouco desapontados por não serem os primeiros.
Mas Vishnu vigiava e estabeleceu logo cordialidade entre eles. Indra e o rei dos Asuras combinaram as tarefas e começaram todos a escavar ao redor do monte Mandara até encontrar suas raízes. Todos seguraram ao redor e, com tremendo esforço, conseguiram erguer o monte. Mas transportá-lo foi muito mais difícil. Caía de um lado, era erguido e escorregava do outro e muitos Devas e Asuras se feriram e alguns até mesmo morreram esmagados. Mas não desistiram, começaram a empurrar e a puxar, movendo alguns metros de cada vez. Vishnu, que tudo vigiava, apiedou-se deles, montou em seu pássaro Garuda, que segurou a montanha com suas garras poderosas e a levou até o Oceano de Leite, enquanto Vishnu curava os feridos e trazia os mortos de volta à vida.
Os dois bandos de gênios chegaram ao Oceano de Leite e viram o monte Mandara a flutuar magicamente bem no centro das águas. Vishnu disse-lhes que aguardassem pacificamente, enquanto ele mesmo ia buscar Vasuki, o rei das serpentes. Vasuki o recebeu com toda a cortesia, enroscou-se diante dele e prostrou a cabeça sete vezes diante de seus pés, juntando as pontas das asas escamosas, mas ao ouvir seu pedido, respondeu:
"Em tal tarefa eu posso me ferir
e nada ganho para meu agrado."
Porém Vishnu lhe respondeu que faria um pacto de proteção com o povo das cobras. Se Vasuki lhe fosse fiel e cumprisse sua tarefa até o fim, ele as tornaria sagradas e a nenhum gênio, fosse Deva, fosse Asura, seria jamais permitido fazer mal a qualquer de seus súditos ou a destruir seus ovos. O esperto Vasuki indagou sobre os seus rivais humanos e Vishnu mais uma vez lhe garantiu que, caso Vasuki lhe fosse fiel e cumprisse sua tarefa até o fim, ele estabeleceria um tabu para os humanos, que jamais poderiam matar uma serpente, a não ser que fossem primeiro atacados por ela. Vasuki queria mais, porém encarou os olhos de Vishnu e concordou, embora em seu íntimo não pretendesse obedecer até o fim, mas só até o momento em que subisse do oceano uma coisa que ele muito ambicionava. Mas nada falou e disse a Vishnu que o obedeceria pelo amor que sentia pelos deuses e também pela promessa que lhe tinha sido feita.
Vasuki deslocou-se até o Oceano de Leite e viu os Devas agrupados em uma das margens, enquanto os Asuras se distribuíam na outra. Sem grande dificuldade, esticou-se até o monte Mandara, que ainda flutuava sobre as águas por força de algum arcano, enrolou-se, dando várias voltas ao redor para se firmar bem e era tão grande que sua cabeça ficou na margem em que estavam os Asuras, enquanto sua cauda se projetava para o lado em que estavam os Devas. A um aceno de Vishnu, os Asuras puxaram a cabeça, fazendo o monte girar em sua direção; depois os Devas puxaram pela cauda e o monte girou na direção oposta, como uma gigantesca batedeira, que começou de imediato a agitar o leite do oceano.
Assim os Asuras continuaram a puxar de seu lado e, assim que eles paravam, os Devas puxavam do outro. Mas o movimento era mais forte do lado dos Asuras e as ondas começaram a subir praia a dentro, porque os Asuras eram mais numerosos e cheios de vigor que os Devas. Então Vishnu voou até a floresta e despertou todos os Devas que haviam morrido de fome e de fraqueza, enchendo-os de energia e trazendo-os até o Oceano de Leite no dorso de seu pássaro Garuda. Os Devas estavam ocupados demais para abraçar os seus irmãos que haviam considerado mortos e assim somente lhes sorriram e saudaram alegremente. Com o reforço, os Devas começaram a puxar com a mesma força que os Asuras e o leite do oceano começou a girar de forma mais equilibrada.
Porém Vasuki começou a se cansar e reclamou de Vishnu:
"Esses Asuras estão a me ferir
os olhos e o nariz! Vou desistir!...
Seu couro é grosso e não posso nem picar
os grandes brutos que me têm ferido!..."
E sem mais cuidados, começou a afrouxar os anéis e a montanha começou a escorregar para o fundo. Vishnu repreendeu Vasuki, que firmou novamente seus anéis, mas a força da gravidade começou a puxar o monte inteiro para o fundo, por mais que Vasuki apertasse os anéis e os Devas e Asuras puxassem dos dois lados. Foi então que Vishnu assumiu o avatar de Kurma, a Grande Tartaruga Cósmica, mergulhou no Oceano de Leite e trouxe o monte de volta para a superfície. Mas Vasuki protestou de novo que os Asuras eram muito violentos e queria ficar com a cabeça do outro lado. Vishnu, que já recobrara a forma humana até a cintura, aguardou pacientemente enquanto Vasuki se desenroscava e enroscava de novo, ficando agora com a cabeça do lado dos Devas.
Mas assim que estes começaram a puxar, Vasuki, ainda com raiva dos Asuras, começou a picar os Devas, que tinham pele fina como a dos humanos. Indra agarrou-lhe uma das presas e a quebrou, mas muitos ficaram feridos. Por isso, nas procissões, Vasuki é representado com uma única presa pontiaguda. Então Vishnu repreendeu Vasuki uma segunda vez, curou os que tinham sido picados e o batimento do oceano recomeçou. Desta vez, o oceano ficou tão agitado que começou a trazer à superfície os tesouros que os Devas haviam perdido. Como tinham sido emprestados por Shiva aos Devas, foram aparecendo de seu lado.
Primeiro surgiu Sura, muito alegre, com uma barrica embaixo de cada braço e começou a servir vinho aos Devas acalorados. A seguir, subiu Chandra, a Lua e então Vasuki tentou abocanhá-la, o que era sua intenção desde o princípio e por isso inventara a história de estar sendo ferido pelos Asuras, já que suspeitava que os tesouros surgiriam do lado dos Devas e queria engolir a Lua para que seus filhos pudessem andar à vontade durante a noite, sem serem pressentidos pelo reflexo do luar em suas escamas. Vishnu o advertiu pela terceira vez e então o paralisou completamente, para que pudesse cumprir sua função sem inventar qualquer outra estrepulia.
Surgiram então as Apsaras, já dançando e soltando chispas como estrelas, enchendo os Devas de vigor. Depois emergiu a Kaustabha, a jóia mágica e eles se sentiram ainda mais revigorados. A seguir, ergueu-se Airavati, o elefante de quatro trombas, querendo ajudar os Devas, mas Vishnu não o permitiu, pois ia recolhendo os tesouros à medida em que apareciam; veio então o arco mágico Sharanga e finalmente a Concha da Abundância, Panchasanya... Somente o médico Dhanvarati não apareceu.
Mas em seu lugar surgiu Lakshmi, radiosa em sua beleza e em seu poder, sentada em uma planta lótus, com uma guirlanda de lótus ao redor do pescoço e segurando outra flor de lótus em sua mão. Todos ficaram maravilhados, mas ela olhou para Indra com altiveza e foi até Vishnu, em cujo pescoço colocou a guirlanda que substituía a que Indra fizera esmagar. Os Asuras começaram a se mover para capturar Lakshmi, mas Vishnu mandou Airavati para sua margem e eles se aquietaram e continuaram a puxar, alternando-se ritmadamente com os Devas.
Mas Lakshmi mandou seu vigor e sua proteção para os Devas e estes recobraram a juventude perdida e se fortaleceram sobremaneira, agitando o mar a tal ponto que Dhanvarati surgiu das profundezas, carregando em suas mãos o cântaro com o sagrado Amrita, o licor que dava longevidade a quem o bebesse. Não era exatamente a vida eterna, porque tudo é aspirado por Brahma quando ele inspira o mundo, mas quem o bebe dura até o final do ciclo e retorna com aspecto igual quando Brahma expira novamente.
Ao verem o Amrita, os Asuras não mais se contiveram e aqueles que eram capazes de voar alçaram voo e tentaram tomar o cântaro para si. Como resultado, o movimento do oceano se desequilibrou, já que os Devas estavam agora tão poderosos e as águas passaram a produzir o Kalakuta, uma fumaça tão venenosa que somente não afeta os maiores dentre os deuses. Para que o Amrita não fosse contaminado, Vishnu escondeu o cântaro dentro de sua tanga, mas tanto Devas como Asuras começaram a desmaiar, Dhanvarati desfaleceu e a própria Lakshmi começou a sufocar, lançando a Vishnu um olhar desesperado de angústia.
Ora, Vishnu não podia ser afetado pelo veneno, mas também não tinha poder suficiente para combatê-lo e assim montou de novo em Garuda, que estava apenas levemente tonto e foi até a mansão de Shiva, para pedir seu auxílio. Shiva sabia que Kalakuta poderia se espalhar por toda a Terra, matando toda a criatura, gênios, homens, animais e plantas, que tivesse em si o fôlego da vida. Então foi rapidamente até o lugar em que a fumaça se espalhava, já destruindo toda a vegetação ao seu redor e com uma poderosa inspiração, aspirou todo o veneno para seus pulmões. Kalakuta não lhe causou qualquer mal, porém seu pescoço ficou azul com a passagem do veneno. Por isso, passou a ser chamado também de Nilakanta, o Pescoço Azul; e é assim representado nos afrescos e estátuas e sempre exibido com o pescoço azul nas grandes procissões dos festivais da Índia.
Como os Devas tinham sido abençoados por Lakshmi, despertaram primeiro e começaram a tomar o Amrita. Mas os Asuras despertaram a seguir e se revoltaram, dizendo que tinham se esforçado tanto quanto os Devas para que o néctar subisse do mar: “Eles não podem ter o Amrita inteiro só para eles! Também nós devemos ser aquinhoados!” Na verdade, os Asuras queriam o Amrita todo para si e correram todos depressa para a margem oposta do Oceano, travando batalha com os Devas. Foi nesse ponto que Vishnu se transformou em Mohini, o seu único avatar feminino, uma mulher de tanta beleza e sedução que superava a própria Lakshmi e, com uma voz suave, mas extremamente potente, interrompeu a batalha e indagou qual o motivo da disputa. Quando lhe disseram, riu-se da forma mais melodiosa e disse que era uma tolice... Que formassem duas filas, uma de Devas e outra de Asuras, já que não poderiam mesmo ficar juntos e ela mesma serviria o Amrita para todos. Era tão sedutora que todos a obedeceram de imediato e ela começou a verter o néctar do cântaro e a servir uma taça para um Deva e outra para um Asura.
Mas Vishnu se zangara com a imprudência e ambição dos Asuras e, com seus poderes divinos, transformava o Amrita servido a eles em uma forma branda de Kalakuta. Quando acabou a distribuição, os Asuras começaram a desmaiar e a cair pelo chão. Ao mesmo tempo, os Devas se encheram de um vigor extremo, tornaram-se muito maiores e mais altos e se tornaram praticamente imortais, embora a vida eterna pertença exclusivamente aos deuses. Vishnu retornou a seu avatar masculino e impediu os Devas de lhes fazerem mal, mas permitiu que levassem o que havia sobrado do Amrita para quando nascessem outros Devas. Com o movimento, o cântaro começou a transbordar e os Devas distribuíram seu conteúdo por quatro bilhas de barro, que esconderam nos quatro cantos da Índia, locais em que até hoje é celebrado o Festival do Kumbi Mela, lembrando o Samudra Mathan, isto é, o Oceano de Leite, que é a festividade religiosa mais concorrida em todo o mundo.
Porém Indra teve pena dos Asuras, fez com que despertassem e secretamente lhes indicou o lugar em que estava uma das quatro bilhas. Assim os Asuras também se tornaram poderosos e longevos. Mas com o Amrita, muitos deles beberam também a pureza e a bondade, por isso há gênios de aspecto grosseiro e animalesco, que são Asuras, mas que favorecem os seres humanos que lhes suplicam proteção. Contudo, a maioria continuou como antes, apenas maiores e mais fortes; de fato, não são maléficos, antes indiferentes aos seres humanos; mas adoram pregar peças e divertir-se à custa da dor e do sofrimento destes, o que faz com que os Devas precisem constantemente se lhes opor a fim de desfazerem os seus malfeitos.
Quanto a Indra, continuou sendo o rei dos Devas, mas Lakshmi tornou-se esposa de Vishnu e nunca mais retornou para ele, embora mantivesse doravante sua proteção sobre o povo dos Devas. Vishnu tornou-se o dono dos tesouros, mas os empresta aos Devas sempre que estes precisam deles e já houve ocasiões em que permitiu a algum humano partilhar de seus poderes. Indra conservou apenas o seu arco mágico, mas Shiva o transformou no Sol desta era. Assim, ele viaja diariamente pelos céus, sempre montado em Airavati e lançando seus raios de luz e calor como flechas sagradas sobre o mundo inteiro. Para compensar a perda de Lakshmi, Vishnu induziu Chandra, a Lua, a se apaixonar por ele, embora só consigam se encontrar durante algumas horas, logo após a alvorada ou ao entardecer e, mesmo assim, em apenas algumas semanas a cada mês.
Quanto a Vasuki, que três vezes desobedeceu a Vishnu, perdeu o direito à promessa que lhe fora feita e, por isso, muitos de seus súditos são mortos anualmente pelos seres humanos. Contudo, os hindus lembram que durante algum tempo essa promessa lhes fora feita e existem templos de um dos ramos do hinduísmo popular, em que as serpentes são criadas e alimentadas com carinho, vivendo ao redor do altar de Vishnu e de outro em que Vasuki é também venerado sob o nome de Naga.
O monte Mandara, naturalmente, foi levado de volta por Garuda para seu lugar antigo. É um lugar de peregrinação, em que também se celebram festivais, porque os hindus sabem que foi graças a Mandara que se salvaram os Devas, os protetores dos seres humanos. Quanto ao Oceano de Leite, nunca mais foi visto. Alguns dizem que secou e até mostram um grande abismo como sendo seu antigo lugar, enquanto outros afirmam que se encontra em um imenso vale oculto no meio do Himalaia e protegido pela magia dos deuses, de tal modo que nenhum humano o pode encontrar. Mas na verdade, ele foi aspirado por Brahma no final do ciclo e quando o novo ciclo começou, não foi novamente recriado, porque sua missão já havia sido cumprida e não precisava mais participar do Sansara, a roda do eterno retorno.