DESAPARECIDO NO CÉU
L N, assim sarcasticamente apelidada pela vizinhança por seu prenome começar com essas duas letras, isto é, Lúcia Nazaré, o primeiro em homenagem à avó materna e o segundo à paterna, nada mais óbvio, enviuvara cinco anos antes da chegada da família Caminhão Fenemê ao bairro. Aqui cabe um breve parêntesis para situar melhor o leitor e também para que essas figuras não permaneçam deslocadas na estória em andamento. Caminhão Fenemê, naturalmente, se tratava de um grupo familiar à parte no bairro, bastante peculiar para receber apodo da espécie, é fácil imaginar o motivo, a merecer relato específico em outra oportunidade, e o leitor não perde por esperar. Portanto, participa desta narrativa, por ora, apenas à guisa de menção galhofeira esperando um dia se tornar devidamente conhecida quando aprouver ao autor.
Voltando ao fio da meada no tocando a L N, sem dúvida mulher infeliz e amarga, e isso quase aparecia escrito em suas faces com letras maiúsculas, expressava indubitável ausência de beleza, enfeiando-lhe o rosto já tão melancólico um buço nada discreto aa assomar-lhe o lábio como se brotando da enxurrada de testosterona que transforma um adolescente num homem. Rechonchuda à semelhança do barril, esquisita por seu constante olhar distante e esquecido, de comportamento arredio e solitário, sobrevivia graças à pequena pensão deixada pelo marido, um ex-combatente da Segunda Grande Guerra Mundial que falecera agarrado à mão dela aos gemidos, implorando para não morrer. Mãe devota infelizmente sem filhos, porque o seu único misteriosamente desaparecera como por mágica, criava gatos dentro de casa e galinhas no quintal. Para passar o tempo, além de toda essa legião de gatos abandonados recolhidos por ela e tantas galinhas presas no galinheiro, tinha uma pequena bodega que não ameaçava a grandeza do estabelecimento de Chico da bodega, um comerciante de porte médio das redondezas. Servia, na verdade, tão-somente para preencher seu tempo entre os gatos e as atividades domésticas.
A vizinhança costumava comprar ovos de dona LN e constantemente havia alguns em estoque, pois suas galinhas se mostravam muito poedeiras e bastante ativas na companhia do galo do terreiro, com o qual faziam uma incontrolável algazarra. Mas muita gente reclamava do barulho e do fedor dos gatos que ela tanto mimava como se fossem filhos muito amados. Talvez os bichanos fossem uma vã tentativa de substituir o verdadeiro filho misteriosamente desaparecido certo dia.
LN gostava de relatar com frequencia como se deu o desaparecimento de seu filho de oito anos num dos raros dias nublados com que a natureza presenteava a região. Ao falar sobre o polêmico assunto seu rosto enrubescia como nunca e as lágrimas desciam lentamente, grossas, pelas faces sulcadas. Ela fazia o relato do acontecimento e se maravilhava com as próprias palavras espalhando no ar gestos de empolgação, o coração em êxtase como se o súbito e inesperado desaparecimento do seu único filho a tivesse enlouquecido completamente. Para quem a ouvia amiúde ela não aparentava dizer coisa com coisa porque tudo se tornava estranhamente espetacular e inconcebível em suas palavras insustentáveis. A maioria acreditava que a pobre mulher se enchia de fantasias mirabolantes a cada narrativa.
_ "Eu nunca tinha visto um dia tão nublado como aquele quando tudo se fez realizar para meu espanto, e o céu, apresentando uma carranca jamais vista por mim antes, que me meteu muito medo a princípio, olhava lá de cima como se estivesse muito, mas muito zangado mesmo com todo mundo aqui da terra".
O fato mirabolante, segundo ela, se deu pelo entardecer do fatídico dia. O garoto dormira um pouco após o almoço acordando todo sorridente como jamais o fora antes, pedindo repetidas vezes para andar de velocípede na calçada, agindo estranhamente zen e inconcebível à guisa de estar pressagiando algo inusitado. No dia da ocorrência, evidente, L N não tinha essa concepção do fato, refletira assim sobre o caso com o passar dos anos.
_"Como se vê nada mais inocente e tão próprio dele, meu pobre e lindo menino. Eu só não compreendia a insistência em andar no triciclo dele na calçada, não dentro de casa. Eu ponderei depois de tanta lamúria: que havia de mais em ir brincar com o velocípede na calçada? Com certeza nada, não é verdade? Por isso, é claro que permiti como sempre fiz quando entendia não ter nenhum problema. E pode ficar seguro que naquele dia, apesar da sisudez do céu, eu senti a firmeza da decisão em apoiá-lo no que queria".
Como sempre fazia, L N deu banho no filho ao acordar, passou talco e vestiu nele a melhor e mais bonita roupinha do seu guarda-roupa, aquela de marinheiro presenteada pelo pai antes de falecer. Deixava-o tão bonito, garboso, másculo! Pelo menos era isso que a triste mulher pensava em seus delírios.
_"Digo a vocês, parecia como se eu estivesse adivinhando que alguma coisa muito esquisita e ao mesmo tempo maravilhosa estivesse prestes a vir a lume naquele dia que, hoje, me parece tão especial. Sei, perder meu filho daquele jeito não foi nada bom, é claro, mas havia um cenário, um cheiro diferente no dia, um ar de enternecida calma".
Como se teleguiada e obedecendo a uma ordem metafísica da qual ficou realmente impossível fugir, L N levou o brinquedo do filho para a calçada, olhou o panorama circunstante e o acomodou no velocípede com todo cuidado de mãe devotada. Sentia-se feliz, de maneira difusa sim, mas percebendo-se enlevada, sorridente, tocada por alguma coisa incompreensível, talvez sobrenatural, contudo eivada de agradável suavidade.
_"O mais interessante nisso tudo é que Ronaldo não parava de sorrir em nenhum momento, me parece agora como se tivesse sonhado com a felicidade e descoberto o endereço onde poderia encontrá-la naquele exato dia. Depois poderia ser tarde demais...sabe, fico toda arrepiada só de lembrar tudo isso e fazer esse relato que me traz um forte apelo emocional. Foi essa emoção a me passar pelo coração, não tenho qualquer dúvida disso".
Exalando alegria por todos os poros, externando tranquilidade acima do comum, o garoto sentou-se no triciclo e saiu a pedalar pela calçada, de vez em quando olhando para cima à guisa de estar procurando algo indefinido. Como se estivesse se sentindo atraído pela força do infinito. Em nenhum momento balbuciou qualquer palavra, apenas persistia sorrindo, só rindo e deitando o um doce olhar sobre o firmamento.
_"Eu disse a ele: "meu filho tenha cuidado, não saia da nossa calçada, não fale com estranhos nem aceite bombons ou qualquer outro presente de desconhecidos". Mas, é engraçado, percebo agora, ele somente continuava sorrindo e nem parecia me ouvir, como se já não estivesse mais ali naquele plano terreno. É, reconheço e entendo, meu menino não estava me escutando, provavelmente não era mais o mesmo naquele instante sorrindo para vazio, creio, ou na direção de algo que na verdade somente ele enxergava. Arrepio-me toda só de lembrar. Apesar de entusiasmada com o aspecto alegre dele, pois nunca antes o vira expressar tamanha satisfação no rosto, eu temia não sei o quê, só sei que temia. Seus olhos brilhavam de forma diferente, os bracinhos se erguiam na direção de algo que apenas meu lindo garoto podia compreender e vislumbrar. Não, eu não fui mãe o suficiente para tornar meu coração perceptível ao alerta do sexto sentido materno percorrendo minhas veias. Eu deveria, contudo não compreendi, não vi. Era tão perceptível..."
Por instantes, L N manteve uma nada discreta vigilância sobre o filho enquanto ele ia e vinha pedalando seu brinquedo, sorrindo sem parar e voltando o olhar ansioso para o céu. A mãe não se apercebeu devidamente da estranheza daquela atitude com certeza incomum e inesperada. Afinal de contas, não era raro Ronaldo exibir no cotidiano seu ar de criança inventiva que se divertia consigo mesmo em seus momentos lúdicos criando personagens somente compreendidos por ele próprio. Seria o comportamento diferente uma nova e divertida brincadeira maquinada pela mente criativa do seu incomparável menino inteligente?
_"Ele era diferente de todos os meninos da rua, isso sim tenho orgulho de dizer, pois apresentava uma inteligência acima do normal. O meu menino nasceu gênio, pode ter certeza".
Uma rápida ida à cozinha por razões esquecidas ao longo do tempo, por motivos que ficaram desprovidos de sentido depois do acontecido, desviou-lhe a atenção e os cuidados com o filho. O incrível e surreal de tudo isso é que ela se via invadida por uma incompreensível paz ao entrar em casa, onde não permaneceu mais que três ínfimos minutos. Intervalo, porém, deveras suficiente para suscitar ocorrências as mais incríveis. E foi isso que a surpreendeu, quão pouco tempo para o confuso e o inesperado! Ela assomou à porta e vagou o olhar pela calçada procurando-o zelosa, não mais o encontrando. Seu filho simplesmente evaporara, como tendo sido apagado por mãos com esponjas invisíveis. Dirigiu os olhos à direita e à esquerda, lançou em desespero a visão à frente, voltou-se para o interior da casa, então sentiu o forte impacto do coração esmurrando-lhe o peito com ímpeto e explosão. Medo, muito medo assomava-lhe a alma e tomava de conta de todo seu ser. Seu filho não se encontrava mais ali e em lugar algum, sumira qualquer sinal do seu pobre menino! Correu pela calçada arrancando os cabelos da cabeça, no semblante a expressão maior do pavor, e quando deu por si a urina descia por suas pernas nunca depiladas depois da morte do marido.
Então, quase a compreender, mas sem conseguir aceitar porque isso implicaria em perda, lembrou o insistente sorriso do seu garoto e o quanto ele olhava para cima com insistência. Parecia loucura, insanidade, debilidade mental, qualquer coisa dessa estirpe, contudo no íntimo L N sentiu que precisava olhar para cima em busca do céu carrancudo, talvez ele tivesse uma pista ou pudesse responder ao seu olhar indagador. E, surpresa das mais incríveis, lá em cima, no céu, estava Ronaldo pedalando suavemente o velocípede em plena ascensão, dando voltas pelo espaço acima da rua, para frente e para trás, em subida contínua e já se aproximando das nuvens amontoadas pelo dia nublado. L N, sem voz, adrenalina a milhões, uma mão na boca aberta e outra à procura de puxar o filho de volta, olhos desmesurados, esbugalhados, boca seca, desesperava-se, morria de espanto, quedava-se de incredulidade.
_"Ele sobrevoava o espaço na leveza de seu sorriso encantador como se asas houvessem surgido em suas pernas ou no próprio triciclo, nos braços, no corpo, no coração. Um lindo pássaro raro foi o que me lembrou no momento, o meu pássaro amado fugindo para a liberdade de um infinito a ser descoberto por sua inteligência".
Extasiada, perplexa, L N abriu os braços e tentou voar também para ir buscar o seu menino especial que o céu levava sem lhe pedir permissão, sem perguntar sua opinião a respeito. Porém, infeliz que era, não havia asas em seu corpo, nada que a elevasse até o filho, nem mesmo um bruto redemoinho que no momento surgisse para enlaçá-la em seu núcleo carregando-a às nuvens. O silêncio na terra firme, o maravilhoso sorriso dele no céu a pedalar e subir, ninguém em derredor senão para dar-lhe a mão, ao menos para testemunhar o sucedido, nem mesmo mais uma simples viv’alma nalguma janela daquela ruazinha aparvalhada e triste quando pediu socorro. Onde estavam todos, por que a abandonavam, por que não aparecia um rosto amigo para ajudá-la? Nada e ninguém, até o sopro momentâneo da brisa se fora, desaparecera, silenciara. Ela estava completamente só no suplício desvairado que vivia. E lá se ia o menino enquanto a mãe saltava alucinada procurando um meio de, por magia ou por sofrimento, por milagre ou caridade, também alçar vôo para trazer seu pequeno de volta. Em um só repente a criança deitou os olhos sobre a mãe, lá de cima, e sorriu mais e mais vezes acenando a última despedida. Então, paulatinamente, apunhalando-a, maltratando-a, matando-a, ato cruel, impiedoso e frio, foi engolido pelo nevoeiro celeste. Para sempre, sem explicação, não deixando rastro, não restando indícios. Como se jamais tivesse existido.
_"Eu gritei feito louca e, no entanto, não fui ouvida por ninguém... ou então todos os meus vizinhos se negavam a ouvir-me... talvez não quisessem mesmo escutar-me... não, ninguém me socorreu".