DIVÃ

As sessões de terapia já duravam mais de um ano e nenhum avanço havia sido observado. Semanalmente, ela comparecia ao consultório, deitava-se confortavelmente no divã e calava-se. Sim, ela apenas se matinha calada enquanto o terapeuta imaginava, sem sucessos, meios de fazê-la falar algo que enfim, fosse capaz de dar pistas do que se passava em sua mente misteriosa, indecifrável, indefinível.

E assim ela permanecia. Calada. Silenciosa e serena como a brisa, face delicada como a pétala de uma rosa a desabrochar. Algo em seu olhar, contudo, havia de desafiador, provocando grande contraste em relação a todas as suas outras manifestações de vida e existência. Era esse “quê” de desafio que mantinha o psiquiatra fascinado pela sua presença, inebriado pelo mistério que constituía a alma daquela criatura cuja existência passava despercebida aos olhos de todos, menos dos dele.

Terminado o tempo estabelecido como duração da terapia, ela simplesmente levantava-se, encarava-o serenamente e perguntava-o com voz doce, porém de uma firmeza inexplicável, se podia ir embora. Ele respondia afirmativamente e permanecia paralisado, imaginando o que se passava naquela mente não mais complexa que as demais, mas certamente a mais impenetrável que todas que ele conhecera.

Não sabia nada sobre ela, de onde vinha, para onde ia, o que fazia.

Tudo o que dizia respeito à vida dela era o mais puro mistério, apenas a considerava problemática, impossível de encaixar-se à realidade e, por isso, julgava necessário tentar ajudá-la de alguma forma. Sempre que ela ia embora ele não atendia a mais ninguém naquele dia. Ao vê-la deixar a sala, deitava-se ele mesmo no divã e lá permanecia observando a sala, procurando reproduzir o passear dos olhos dela enquanto ali estava. Nessa busca pelo mistério existente na alma alheia, ele tentava sentir as possíveis sensações que ela poderia ter sentido enquanto estava ali e confortavelmente deitada, corria os olhos pela sala... olhos que pareciam ser a única fagulha de vida presente naquele corpo que, embora belo, parecia invisível. Agia invisível perante o mundo.

Em vão ele tentava ver o mundo pelos olhos dela. Pois se à compreensão de todos nada nela era vivo, ele sabia que os olhos são espelhos da alma e que naqueles olhos havia fagulhas de vida, labaredas de vida quente, forte e de tamanha grandeza que os limites de sua formação não permitiam que ele entendesse, que ele decifrasse. Ironia, o mundo não a enxergava, enquanto ele a enxergava demais... Seria isso? Seria ela louca e as fagulhas de vida que ele enxergava não passavam de indícios de uma insanidade prestes a explodir? Ou loucos seriam todos os que a interpretavam como tal? Ele não sabia mais o que pensar, só sabia que ela era viva, que sentia... não sabia o que, mas sentia! O certo é que os dias continuavam a passar e ele na espera que, em um deles ela resolvesse falar algo, qualquer coisa além do cumprimento na chegada e da permissão para ir embora.

Ele reservava-se exclusivamente a ela naqueles dias, pois ela era suficiente para sugar-lhe todas as energias. Mesmo depois, os dias que se seguiam a sua visita, ele não era o mesmo. Ele se sentia estranho, era como se as vãs tentativas de invadir a subjetividade dela pusessem em risco, a dele. Ela era aquela cuja existência havia tomado sua paz. Ele sabia que aquilo não duraria para sempre. A existência dela impunha mudanças drásticas em sua vida e ele cansara disso. Cansara mas não conseguia livrar-se.

Com sua existência misteriosa, ela consumia seus dias, ela era o que nenhuma outra conseguia ser. Ele a buscava em seus mais profundos devaneios e, somente neles, a encontrava, aproximava-se dela. Mas estava chegando o dia em que aquele pesadelo iria acabar. Ele conseguiria decifrá-la ou ela o dominaria com seu silêncio e mistério. Sua próxima consulta seria, quem sabe, a resolução do dilema.

E veio o dia, e veio ela. Como de costume, ele dispensou os demais e reservou-se à dedicação exclusiva daquela paciente que o dominava. Sua calmaria inebriante, seu silêncio sedutor estava mais sedutor que nunca. Ele queria saber seu nome, sua origem e o porquê de procurá-lo. Diferente dos outros dias em que somente deleitava-se com sua presença, desta vez ele a questionou e ela respondeu. Respondeu a todas as suas perguntas e suas últimas palavras repetiram-se em sua mente até o fim de seus dias como um eco insuportável.

“Venho de dentro de sua você, sou a loucura que você quer tratar em outros, mas não consegue superar em você mesmo. Tenho a imagem que você quiser e seduzo de acordo com os desejos mais profundos de sua alma”. E ouvindo estas últimas palavras que saíram de sua boca, ele acordou assustado com a recepcionista do consultório a observá-lo. Envergonhado, apanhou a garrafa de vinho vazia e jogada ao chão. Saiu falando, sozinho, palavras pouco compreensíveis.