Inácio e Deus
No tempo que passou na terra, Inácio foi um bom homem.
Bem casado, trabalhador, bom pai e um filho preocupado. Na terra dos vivos, tratava todos com dignidade, mas agora estava em visita ao além, e as regras eram diferentes por ali. As coisas que tinha feito lá embaixo não tinham o mesmo valor, o juízo final deveria ter uma balança própria para medir o bem e o mal, o menos e o mais.
Por ter entrado com méritos no céu, Inácio logo ganhou regalias. Papo frente a frente com o Todo-Poderoso, uma junta de anjos pra auxiliar nas respostas, um anjo-advogado para auxiliar na burocracia e um anjo psicólogo pra ajudar a controlar os nervos. No dia do encontro com Deus, Inácio estava tranqüilo aparentemente, sabia que tinha seguido as regras. Mas quem lhe garantia que as regras que lhe ditaram durante a vida eram corretas? Quem garantia que lhe dariam direito a um pedaço da herança eterna? Começou a pensar nisso a caminho da sala maior e aos poucos aquela confiança toda se foi.
E se o todo Poderoso dissesse que não era nada daquilo? E se dissesse que a igreja estava errada, que o pastor não sabe o que fala; que religião é coisa pra fracos. E se dissesse que o pensamento peca mais que a carne? E se dissesse que o certo é duvidoso? Quando abriram a porta da sala, já estava terrorizado.
- Sente aí, meu filho!
A voz era confortável aos ouvidos, quase familiar.
-Está gostando daqui? Como foi a recepção?
Inácio ficou mudo. Esticou o pescoço pra ver o rosto, o homem estava em pé, de costas, e se virou, olhando para ele. Sentou-se sem lhe tirar os olhos. Seu rosto era uma mistura de todas as expressões infantis que Inácio conheceu durante a vida; o som da Sua voz trazia à tona a sensação de liberdade, segurança e compaixão. A imensa sala exalava um cheiro de mato virgem, de praia deserta, mais atentamente lembrava o perfume da professora da segunda série, e agora lembrava o almoço de domingo em casa. Era o odor de todas as coisas agradáveis que Inácio se lembrava.
De pé novamente, o corpo de Deus tinha a bom trato da riqueza e as marcas da simplicidade; a elegância dos gestos femininos e a firmeza de passos decididos, um corpo de luz e ternura. Os olhos falavam, e a boca não mexia. Quando falou, Inácio recordou do tio Euzébio quando contava histórias na fazenda, da professora mais querida o parabenizando por uma nota, do abraço do seu pai quando passou no vestibular.
- Não se importe muito com as impressões que está tendo a meu respeito, meu filho. Eu não tenho forma, então você vai me associar a tudo que de bom já lhe aconteceu, a todas as lembranças agradáveis que teve durante sua passagem. Eu sou o tudo e o nada. Aos poucos você vai se acostumar com minha presença, fez por merecê-la.
- Como devo me referir ao senhor?
- Como quiser.
Inácio já não sabia se ele era um homem, ou se era apenas um ser. Tinha características de homem, de mulher, de coisas, de cheiros, de lugares e de sonhos.
- O que eu devo fazer? – perguntou Inácio, atordoado
- Nada. Escute, você foi muito bem na terra. Não precisa mais ser aprovado ou reprovado, As coisas não funcionam assim. Desde que veio pra cá, vai ficar se quiser. O fato é que, pra pessoas como você, que deram exemplo na terra, eu gosto de fazer um agrado. É um contato que não é permitido a todos. Um contato com o mundo que você viveu, mas só com o tempo que viveu. Será seu último contato com o tempo que conhece. Aqui não temos tempo, temos fases. Você pode permanecer na fase em que se encontra, o que é muito bom, ou pode passar pra uma coisa mais além, um nível mais avançado, se é que se pode dizer assim
- E do que se trata este nível?
- Bem, sabe essas sensações que você tem quando fala comigo, quando olha pra mim, quando eu estou por perto?
- Sim.
- Te apetece?
-Nem posso dizer o quanto. Sua presença me remete a coisas incrivelmente prazerosas. É como se houvesse uma tradução dessa luz em sentimentos humanos.
- Ah sim, isso vai acabar quando você mudar de plano. Por enquanto está preso a este circunspecto humano, mas se quiser mudar de fase - e isto é uma escolha sua - vai passar a sentir essas coisas todas num grau muito mais elevado. Os anjos podem te explicar mais ou menos a sensação. Digo que para humanos obviamente é uma sensação melhor, pois os anjos só tiveram isso e não podem comparar. Você vai ter uma compreensão maior do que é isso tudo, pois viveu prazeres e dores humanas, e viveu a Minha presença.
- Então eu quero.
- Que bom. Assim será. Preciso visitar outras pessoas. Me dá licença?!
Inácio saiu da sala do Todo-Poderoso em estado de graça. Os anjos estavam lá fora à sua espera. O anjo advogado perguntou que proposta foi feita.
- Passar de estágio, me parece.
-Humm, muito bom. Vc aceitou?
- Sim. Devo assinar alguma coisa?
- Não, eu só ajudo com outras coisas. As conversas entre você e Deus tem validade imediata. Não se pode documentar as ordens e desejos divinos. Eles simplesmente acontecem.
- O que vai acontecer agora?
- Você será levado a uma sala de vídeos amanhã pela manhã, e de lá seu destino aqui no céu será traçado.
- E depois não tem mais volta?
- Não terá. E amanha será seu último contato com o tempo humano. O que acontecerá na sala duraria anos no seu tempo, mas você não vai sentir assim.
A noite de sono foi incrível, Inácio não se lembrava de ter se deitado, mas tinha se desligado por muito tempo e seu corpo estava extremamente descansado, com uma sensação de frescor matinal. Quando acordou foi levado pelos anjos até a sala de imagens e logo entrou, quando começou uma espécie de rito. Antes mesmo do início da apresentação de imagens um dos anjos sentou-se ao seu lado e pacientemente explicou o que aconteceria.
- Meu caro Inácio, vamos te apresentar cenas da sua própria vida. A partir de agora você vai adentrar no universo da sua vida sob uma ótica diferente, ou seja, terá o dom da onisciência na terra.
Inácio não entendeu, mas estava bem disposto e até curioso, como se sentisse saudade de sua vida na terra e das pessoas que deixou.
- Mas veja bem Inácio, para passar de estágio aqui no céu, você terá que manter a reações que teve naquelas ocasiões. Se você alterá-las de qualquer modo, elas serão utilizadas para denegrir sua pontuação na passagem de fase.
Inácio estava seguro de si. As primeiras imagens foram de seus pais jovens, discutindo a gravidez de sua mãe.Seu pai aparentemente não estava preparado, disse palavras que fizeram Inácio estremecer, tais como “não sei se quero ter um filho”, “eu não gosto muito de crianças”. Mas Inácio relevou,a final, seu pai era jovem e estava inseguro com a situação.
Logo após, com o nascimento, Inácio passou a se sentir parte das imagens, como se estivesse revivendo, mas sem interferir. Foi emocionante ver a reação de sua mãe ao ver o filho nascendo. As imagens foram passando e Inácio percebeu que foi de fato criado com carinho.
Mais velho, no colégio,se lembrou de seu grande amigo de infância e aproveitou com deleite as brincadeiras que faziam. Igor era uma criança muito dócil e durante a infância eles se tornaram amigos. A amizade durou até a fase adulta e Igor com certeza foi o amigo com quem Inácio mais se divertiu, mantendo uma ralação de grande confiança.
Eu determinados instantes, quando Inácio saia de cena nas imagens, a cena se prolongava, e agora ele continuava vivenciando a situação apenas como espectador. Era a onisciência. Foi numa dessas cenas que Inácio viu quando Igor, logo após terem se despedido, contou para outros rapazes da turma - em tom de deboche - que Inácio estava apaixonado por uma garota. A cena seguinte mostrou os garotos tirando muito sarro de Inácio, e ele se lembrou de como aquilo foi dolorido, pois fora sua primeira paixão, e com certeza lhe deixou marcas ruins. A partir daquele dia passou a ter certa dificuldade para lidar com garotas, ficou muito intimidado pela presença delas e jamais chegou a superar totalmente este pequeno trauma.
Foi realmente difícil ver que o amigo traíra sua confiança, pois Inácio confiava plenamente nele. Na verdade Igor foi o único a quem Inácio contara sobre a paixão pela garota. Novamente Inácio tentou relevar, pois eram apenas adolescentes. O fato é que, inconscientemente, associou este episódio a fatos que aconteceram posteriormente, começando a repensar se deveria ter confiado tanto em Igor, haja vista que se tornaram sócios em uma empresa e compartilhavam assuntos sérios.
Ato contínuo, as cenas o levaram e reviver o momento em que conheceu sua esposa, e novamente lhe veio tremenda emoção. Gisele era linda quando mais nova e formaram um casal apaixonado durante o decorrer de suas vidas. Era uma relação de confiança e respeito, e os filhos foram o fruto de muito amor.
As cenas foram passando e abalaram o emocional de Inácio, sobretudo uma delas em que Gisele falava no telefone aparentemente de forma muito carinhosa com um homem. Inácio ficou confuso e quase se levantou, mas se aquietou quando viu a imagem de si mesmo adentrando no quarto, o que fez com que Gisele ficasse extremamente constrangida. Na época este constrangimento passou despercebido por ele, mas agora estava claro que ela estava escondendo algo naquela situação. Dali em diante, Inácio ficou extremamente abalado e num impulso falou direcionando-se a Gisele, mas ela não reagiu.
- Com quem vc estava falando Gisele? Quem é este homem, Gisele? – Inácio falava alto, em tom indignado
- Ela não pode te ouvir!- uma voz ressoou. - Mas vc tem a opção de reviver o momento que desejar. Não se esqueça que as reações diferentes das originais podem desabonar sua passagem de estágio.
- Tudo bem. Eu não quero! Pensou que aquilo era passado e não valia mais nada.
As cenas continuaram e mostraram uma verdade cruel. Gisele teve um amante durante um determinado período da relação, quando eles já tinham o primeiro filho. Aquilo foi devastador para Inácio.
- Parem com isso. Eu não quero mais participar disso.
Deus entra na sala. Inácio imediatamente perde as sensações que as cenas lhe causaram. Não consegue mais falar.
- Meu filho Inácio. Eu entendo pelo que está passando. A vida na terra é uma fase de dores e alegrias, e por isso mesmo tem tempo certo para acabar. O seu tempo acabou por lá. O que vc está assistindo aconteceu, mas não faz mais parte do que você é. Eu não pretendo te maltratar com isso, mas é extremamente necessário para que se desapegue de tudo o que deixou. Existem cenas muito mais fortes, teus filhos vão te desapontar, teus pais vão te tratar com desdém, e teus amigos vão te humilhar pelas costas. Você só estará pronto a partir do momento que entender que os erros deles não podem nem devem ser julgados por você. Entende isso, meu querido filho?
Inácio se deleitava da luz intensa que saia por todos os lados. Não soube o que dizer. Deus saiu pela porta e no segundo subseqüente Inácio pensou que seria de se relevar tudo o que aconteceu na terra para poder passar de estágio, ter aquele maravilhoso contato com Deus, aquele prazer absoluto, encantamento sem fim.
No entanto, essa sensação ia passando à medida que pensava no que acabara de reviver, e novamente Inácio fraquejou. Desejou o mal de amigos, quis tirar satisfações com a esposa, penalizar os filhos e se arrependeu de gastar tanto dinheiro no cuidado com os pais na velhice.
As sessões continuaram por longo período e Inácio se cansou daquilo tudo. Em determinado momento pediu para reviver uma das cenas, com a esposa. Ele queria dar um flagrante nela com o amante e agora poderia.
- Eu quero participar desta cena. Podem me colocar lá?!
Nesse instante, começou a passar uma nova seqüência de cenas que prendeu a atenção de Inácio. Eram cenas de prazer intenso, desde a primeira amamentação, os primeiros e longos sonos profundos quando ainda bebê, as vitórias pessoais e dos seus entes amados, comemorando com os amigos a vitória do seu time, o primeiro carro, todas as noites de prazer com mulheres, o nascimento dos filhos, enfim, um mar de alegria. Inácio foi invadido por uma sensação de prazer intenso e constante, e aquele sentimento parecia não ter fim. Uma voz novamente ressoou e por um segundo as cenas pararam.
- Inácio, você tem a opção de reviver estes momentos, mas esta escolha não tem volta. Uma vez que opte pelo prazer terreno, terá feito sua escolha.
As cenas continuaram, Inácio entrou novamente em deleite profundo, e só pensava em ter novamente aquelas sensações. As imagens se confundiam, e Inácio começou a pensar que seria bom reviver aquilo tudo. Que sua vida tinha sido boa e que deveria se dar outra chance.
- Eu quero voltar!
- Este é seu desejo derradeiro?
- Eu quero voltar! Quero voltar!
Embevecido pelos prazeres terrenos, Inácio novamente fraquejou. As luzes se acenderam e Inácio foi encaminhado à mesma entrada por onde passou momentos atrás. Ali ele viu um humano recém chegado da terra, cercado de anjos e sendo levado à presença de Deus, possivelmente para receber a mesma proposta à qual ele acabara de recusar. Inácio se arrependeu e chamou pelo nome de Deus. Os anjos olharam para Deus. Suas palavras foram amenas, imediatas e definitivas:
- Inácio não está pronto para o céu.
Uma lágrima grossa e reluzente escorreu pelo canto dos olhos de Inácio, que ouviu quando os portões se fecharam .