O LIVRO MÁGICO (em prosa)
O LIVRO MÁGICO
Conto de Fadas Búlgaro, recontado por William Lagos
Em um castelo da Bulgária, no sul da Europa, moravam três princesas, chamadas Arlinda, Rosalinda e Acqualinda. O rei seu pai era poderoso, possuía vastos territórios e um exército aguerrido. Embora tivesse de enfrentar continuamente inimigos, até então sempre saíra vitorioso em todos os combates e sua única lástima era não ter um filho varão que o sucedesse no trono. Ele amava muito suas três lindas filhas, mas sabia que teria de dá-las em casamento e ainda pagar um rico dote a seus maridos. Por isso, pretendia casá-las com reis para estabelecer alianças ou com um príncipe valoroso que pudesse sucedê-lo no comando do exército e, eventualmente, tornar-se rei em seu lugar.
A família real, cujo sobrenome era Lubomirovitch, mantinha-se há gerações no governo da Bulgária, eram governantes severos, porém justos e o povo os amava e respeitava. O que ninguém sabia fora da família é que possuíam um livro mágico, escrito em folhas de pergaminho e encadernado em chapas de metal, protegido por uma fechadura cuja chave permanecia sempre em poder do rei. A mágica do livro é que ele se escrevia sozinho. Havia páginas referentes a todos os antepassados e a alguns de seus parentes, mas a última página escrita era uma profecia a respeito do próprio rei ou de seus herdeiros diretos. A partir daí, todas as demais páginas se achavam em branco.
O rei se casara depois dos quarenta anos e sua esposa morrera ao dar à luz um menino doente, que só vivera algumas semanas. Mas o rei não se casou novamente, apesar da insistência de seus conselheiros. Deu a melhor educação possível a suas filhas e as tratava com carinho e até devoção quando não estava combatendo em uma de suas guerras.
Após completar sessenta anos, percebeu que suas meninas já estavam em idade de casar. Então mandou chamar as três e lhes revelou o segredo do livro. Era sempre o herdeiro do trono que herdava a chave e o poder, mas como ele não tivera filhos, teria de confiar nelas. Cada uma deveria entrar sozinha na sala fechada a sete chaves em que o livro era guardado sobre uma estante de leitura de carvalho maciço, destravar a fechadura e abrir o livro, o que só podia ser feito uma vez na vida. Poderia ler o que quisesse até encontrar a página referente a seu pai, em que estava escrito: “O Rei Vladislaw III terá um longo e feliz reinado e triunfará sobre todos os seus inimigos”, uma profecia que se cumprira até aquele momento, pois já reinava há mais de trinta anos e nunca fora derrotado. Mas no momento em que fosse virada a página seguinte, surgiria a profecia sobre cada uma delas, que se havia de realizar inevitavelmente.
Arlinda, que tinha cabelos negros e olhos azuis como o ar e estava na época com dezessete anos, foi conduzida pelo pai até a sala, acompanhada pelas irmãs e por sete dos conselheiros do rei, cada um dos quais era o guardião de uma das chaves da porta, também de carvalho e reforçada por chapas de bronze, um direito e dever hereditário de sua família, que passava de pai para filho juntamente com um juramento de fidelidade à família real, em termos tão terríveis que ninguém jamais o ousara quebrantar.
Os sete conselheiros abriram a porta, mas somente Arlinda entrou, com um archote na mão, porque a sala não tinha janelas. Ela então acendeu as sete tochas já meio enegrecidas que havia em torno da sala e, quando a sétima chama se ergueu, a porta se fechou sozinha. Temerosa, Arlinda foi até a estante, que ficava no meio da peça, sobre um pedestal de pórfiro e viu sobre ela um imenso livro encapado em chapas de metal. Tremendo, enfiou a chave e a fechadura estalou e se abriu sem esforço. Ergueu a capa pesada e viu na primeira página: “Livro da Dinastia dos Lubomirovitch, reis da Bulgária.”
Na seguinte página havia uma profecia referente a Lubomir I: “O Conde Lubomir se tornará rei da Bulgária e dará origem a uma longa e poderosa dinastia.” Isso de fato sucedera. Na segunda, as letras em escrita cirílica antiga traziam uma mensagem menos favorável: “O príncipe Djerko vencerá uma grande batalha e perecerá valorosamente em combate.” Ela estudara a história da família e sabia que isto acontecera também. Fora Danilo, o irmão mais moço de Djerko, que sucedera Lubomir I no trono. Dito e feito: lá estava a profecia dizendo exatamente isso.
Foi folheando as páginas, cada uma com uma mensagem correspondente a um dos membros de sua família, uma dinastia que já governava há trezentos anos. Começou a ficar impaciente, mas prosseguiu até chegar à última página impressa que rezava, como lhe dissera o rei seu pai: “O Rei Vladislaw III terá um longo e feliz reinado e triunfará sobre todos os seus inimigos”.
Arlinda respirou fundo e virou a página. A próxima folha de pergaminho estava inteiramente em branco. Seu breve desapontamento desapareceu ao ver que primeiro borrões, depois letras, depois palavras inteiras se formavam no alfabeto cirílico, negras com enfeites vermelhos e dourados, como tinham sido as mensagens em todas as páginas anteriores. E então leu: “A Princesa Arlinda se casará com um rei do Ocidente.” Nada mais. Virou as páginas seguintes, que permaneceram em branco. Bem, era uma ótima notícia, embora não fosse novidade que estava destinada a se casar com um rei.
Subitamente, o livro se fechou sozinho, a fechadura encaixou no lugar, os archotes foram-se apagando um a um, menos o que trazia ainda na mão esquerda, e a porta se abriu às suas costas. Arlinda recuou dois ou três passos, meio assustada e então sentiu a mão de seu pai nas costas. Virou-se e saiu da sala, enquanto os sete conselheiros trancavam cada um a sua respectiva fechadura. O rei lhe recomendou silêncio e ela estava mesmo abalada demais para falar.
Assim que ficaram sós, ela contou ao pai e às irmãs a profecia a seu respeito. Rosalinda e Acqualinda ficaram contentíssimas com a boa sorte que fora revelada a ela, mas o rosto do pai se ensombreceu um pouco. Sua filha primogênita iria para longe, casar-se-ia com um rei estrangeiro e estaria perdida para a sucessão do trono, porque os búlgaros jamais aceitariam que um rei estrangeiro governasse também o seu país.
Passaram-se dois meses e uma rica embaixada chegou a Sófia, a capital da Bulgária, trazendo um pedido de casamento do Rei da Sérvia, que há pouco subira ao trono em lugar de seu pai. Os presentes foram trocados, o rei pagou o dote e o casamento foi celebrado na catedral, segundo o ritual ortodoxo, mas foi o Duque da Lubliana, tio do Rei Miklos da Sérvia, que recebera para isso procuração, quem representou o noivo na cerimônia, porque a viagem era longa e o rei não podia se ausentar do país. Arlinda embarcou numa carruagem, com suas servas e seu enxoval, suas jóias e até sua cachorrinha favorita, depois de se despedir do pai e das irmãs com lágrimas nos olhos e partiu a seguir com a numerosa comitiva, cercada por uma enorme escolta de soldados e cavaleiros.
Fora assinado um tratado com o reino da Sérvia, mas a distância era muito grande e o rei Vladislaw teve de travar suas batalhas sozinho, combatendo os valáquios, os macedônios, os húngaros e principalmente, as tropas do Sultão da Turquia. Quase um ano depois, Rosalinda, que tinha cabelos vermelhos e olhos castanhos, também completou dezessete anos. A cena repetiu-se, tendo o rei grande esperança de que desta vez teria notícia de um príncipe ou nobre valoroso que pudesse casar com sua filha e garantir a sucessão do trono. Rosalinda entrou na sala escondida, abriu o livro em sua página e leu: “A Princesa Rosalinda se casará com um rei do Oriente.”
Não era absolutamente uma má profecia, mas novamente o rei ficou desapontado em suas expectativas. Contudo, dois meses depois, chegou uma poderosa comitiva vinda de Istambul, querendo assinar um tratado de paz com a Bulgária e pedindo a mão da princesa Rosalinda para o novo Sultão Abukir II, que acabara de suceder seu pai no trono da Sublime Porta, como era chamado o palácio. Para Vladislaw, era uma excelente aliança, já que estava velho e não sabia por quanto tempo mais poderia combater os aguerridos turcos. Assim, o vizir do sultão representou-o na cerimônia do casamento, que foi celebrado no palácio, porque o vizir era um bom muçulmano e se recusou a participar de uma cerimônia religiosa em uma igreja cristã.
E lá se foi Rosalinda, numa carruagem luxuosa, com suas servas e seu enxoval, suas jóias e seus dois gatinhos, depois de se despedir do pai e da irmã com lágrimas nos olhos e partiu com a uma comitiva ainda maior do que a do rei da Sérvia, cercada por uma enorme escolta de janízaros e cavaleiros. Mas o rei foi obrigado a pagar um dote ainda maior para não ofender o sultão, cujo reino fazia fronteira com o seu.
Foi boa a aliança. Os valáquios, macedônios e húngaros tiveram medo de enfrentar os búlgaros aliados aos turcos e aos sérvios e o reino teve paz por vários anos. Mas as esperanças de sucessão estavam agora nos ombros de Acqualinda, uma jovem loura como a areia da praia e de olhos verdes como o mar, que tinha então apenas quatorze anos. O reino prosperou, o povo estava satisfeito, mas os nobres murmuravam que não havia um herdeiro para o trono e que Acqualinda deveria se casar em uma das famílias da nobreza, a fim de garantir a sucessão. Mas o rei temia escolher um nobre e revoltar os outros e precisava mesmo conhecer a próxima revelação do livro encantado, de modo que foi adiando o dia em que Acqualinda teria oportunidade de ler sua própria página.
Quando Acqualinda completou dezoito anos, o rei não pode adiar mais a decisão, já se aproximava dos setenta e sentia que estava enfraquecendo. O cortejo se dirigiu à sala fechada, Acqualinda entrou com seu archote depois que os sete conselheiros (dois deles já substituídos por seus filhos) abriram as sete chaves. Acendeu as sete tochas já meio queimadas em seus suportes ao redor da sala, sentiu a porta se fechar atrás dela e inseriu a chave na fechadura do livro.
A pobre moça se sentia extremamente nervosa. Sabia das esperanças do pai e tanta coisa dependia dela. Respirou fundo e abriu o livro na metade, na profecia de sua irmã Arlinda. Virou a página, lá estava a de Rosalinda. E então criou coragem, abrindo a página seguinte, que estava totalmente em branco. Então as palavras começaram a se formar: “A Princesa Acqualinda se casará com um porco do norte.”
Ficou horrorizada, pensou ter lido errado, mas a profecia estava ali. Leu mais duas vezes e então sentiu sua mão ser repelida e o livro se fechou com um estrondo. Tentou abrir outra vez, mas a chave não girava. E as tochas se apagaram uma por uma, enquanto a porta se abria às suas costas.
Acqualinda deu meia volta e se atirou aos prantos nos braços do pai, que não sabia o que fazer. Nada disse, mas os sete conselheiros ficaram consternados pelo seu estado, souberam logo que não fora uma profecia agradável, embora não se atrevessem a perguntar. Ela saiu pelo braço do pai, mas só abanou a cabeça e foi encerrar-se em seu quarto, três dias e três noites, sem comer nem beber e ardendo em febre. Finalmente, o velho rei conseguiu que ela tomasse uns goles de licor de acquavit e depois uma sopa, sem ousar indagar da profecia, porque julgava que indicasse a morte próxima de um dos dois.
Quando Acqualinda finalmente contou, o rei não podia acreditar no que estava escutando. Achou que o livro zombava dele, por ter mandado uma filha atrás da outra buscar conselho. Mas daí a quinze dias, teve notícia de que um grande exército se aproximava de suas fronteiras, vindo da Turíngia, um reino que fazia parte do Império da Alemanha. Mandou um cavaleiro de bandeira branca saber quais as intenções e este voltou com a notícia de que vinham em paz, desde que suas condições fossem aceitas. Amedrontado, ele falou do poderio do exército, de suas armas e canhões, um inimigo mais poderoso do que jamais fora enfrentado pela Bulgária.
O velho rei mandou emissários à Sérvia e à Turquia, mas seu genro, o Sultão Abukir, mandou dizer que estava em guerra com os persas, os curdos e os armênios e não lhe podia fornecer quaisquer tropas. Quanto ao rei da Sérvia, a viagem era muito acidentada, os rios estavam cheios, não havia pontes e de pouca ajuda poderia ser, caso o reino fosse atacado em seguida. E o exército dos turíngios começou a marchar com muita ordem e disciplina Bulgária a dentro, sem atacar ninguém, sem saquear nem extorquir, pedindo somente para se abastecer da água dos rios, já que trouxera suas próprias provisões. A todos os mensageiros davam a mesma resposta, que vinham em paz, desde que respeitassem as suas condições.
Finalmente, um exército tão grande como jamais fora visto nos Bálcãs acampou ao redor das muralhas de Sófia; fosse por serem muito numerosos, fosse para demonstrar que podiam cercar a cidade, se distribuíram por toda a volta, embora não impedissem nem perturbassem de forma alguma os viajantes e camponeses de entrarem e saírem da cidade; os soldados búlgaros, contudo, ocuparam as muralhas, prontos a defender suas casas e suas famílias. Mas no segundo dia, um cavaleiro de aparência nobre pediu permissão para entrar, embora os portões de fato estivessem abertos, já que o rei não queria dar um pretexto para que atacassem a cidade.
Recebido no palácio, apresentou-se como o conde Ludwig von Esche, entregou presentes valiosos ao rei e declarou que tinha como missão pedir a mão de sua filha em casamento para o Príncipe da Turíngia, cuja luxuosa tenda podia ser avistada no meio do acampamento. Vladislaw foi falar com Acqualinda e esta exclamou: “É o porco do norte!...” Só então falou da profecia e ambos ficaram aliviados. A Alemanha ficava ao norte da Bulgária e, por pior que fosse o príncipe, seria um ser humano e não realmente um porco... O rei voltou à sala do trono e disse ao emissário que sua filha consentira e se sentia muito honrado com a proposta e convidava o príncipe, seus nobres e oficiais superiores para um banquete no dia seguinte, a se realizar no salão nobre de seu palácio.
Na hora combinada, uma comitiva ricamente trajada chegou ao palácio, chefiada por um cavaleiro corpulento e de armadura completa, trazendo inclusive um elmo trabalhado, com um lindo penacho no alto, que lhe ocultava completamente a cabeça. Apresentou-se como o Príncipe da Turíngia e foi convidado para sentar-se junto do rei. Os pratos foram servidos e ele não tirava a armadura ou o elmo. Finalmente, o rei protestou e insistiu que ele mostrasse o rosto, pois como poderia comer ou beber desse jeito?... O príncipe retirou o elmo com relutância e santo Deus! tinha orelhas grandes e caídas, olhos miúdos e um nariz que somente poderia ser descrito como um focinho, além de dois dentes enormes, como os colmilhos de um suíno. Além disso, todo o rosto, inclusive a testa, eram coberto por finos pelos amarelos.
Ele tinha realmente cabeça de porco! Então se ergueu diante dos búlgaros estarrecidos e dois escudeiros o ajudaram a tirar a armadura. Sem dúvida, o corpo era de homem, embora os braços fossem um pouco curtos para sua altura. Mas o pescoço, as mãos e a parte visível dos braços também eram cobertos por aqueles pelos curtos e amarelos.
Vladislaw não sabia o que dizer. Acqualinda quase desmaiou, mas depois se recuperou. O príncipe indagou diretamente se lhe causava repugnância, mas ela sacudiu a cabeça em negativa, embora sem conseguir falar. Então ele se dirigiu ao rei e indagou se ainda o aceitaria como genro, que a decisão era sua, embora fosse a única condição que apresentava para manterem a paz. Vladislaw reuniu toda a sua coragem e ia negar, mas Acqualinda falou primeiro e disse que estava disposta a se casar com o príncipe.
O príncipe a encarou com seus olhinhos miúdos, uma expressão de zombaria em seu olhar e declarou que também estava disposto a se casar com ela, mas que tinha pressa. Poderiam celebrar as bodas no dia seguinte? Os búlgaros se sentiram ofendidos e o rei explicou que não era o costume, que era necessário fazer os proclamas durante três domingos na catedral e só depois a cerimônia podia ser celebrada no quarto... Que era necessário preparar o banquete, o enxoval e as festividades... Mas o príncipe declarou que não tinha dúvidas de que a princesa fosse solteira e sabia perfeitamente que nunca estivera noiva de ninguém.
No que se referia a ele, fez um sinal para um sacerdote luterano que o acompanhava e este apresentou um pergaminho lacrado e selado, declarando que o príncipe era solteiro e não tinha qualquer compromisso anterior. Desse modo, podiam considerar o presente banquete como o festim nupcial e desistir de qualquer outra cerimônia. Quanto ao dote, ele era extremamente rico e não precisava dele; com referência ao enxoval, pretendia mesmo ficar residindo no palácio durante algumas semanas, de tal modo que haveria tempo de sobra para preparar tudo depois do casamento.
O bispo ortodoxo foi chamado e, muito embora negasse inicialmente, foi facilmente convencido quando os oficiais se ergueram, fazendo tilintar as armaduras e levando as mãos aos copos das espadas. Declarou, então que, se era a vontade do rei, poderia dispensar os banhos, já que todos sabiam da honra da princesa e ninguém poria dúvidas na honra do príncipe... “Bem,” declarou o príncipe, “então o que estamos esperando? Que sirvam a comida e o vinho de uma vez!”
A conduta deliberadamente ofensiva foi complementada pelos seus modos à mesa, desprezando facas ou talheres e comendo diretamente do prato, como se estivesse num cocho... Bebeu sem parar e comeu o suficiente para cinco ou seis pessoas, esfregando as mãos na roupa e arrotando, para consternação de todos os búlgaros presentes que notaram, entretanto, que os seus generais e oficiais subalternos se portavam de maneira perfeitamente adequada e conveniente.
Após o banquete, o príncipe foi levado a um quarto luxuoso no palácio e seus oficiais alojados da melhor forma possível, enquanto os numerosos soldados eram distribuídos pelas casas dos moradores ou acampavam nas praças da cidade. O povo estava apavorado, mas não houve distúrbios ou provocações de espécie alguma. E mesmo os soldados de mais baixa graduação se portavam de maneira conveniente, dando graças a Deus antes de comer e agradecendo à família após a refeição. Os que se atreveram a indagar o porquê da atitude grosseira do príncipe, apenas recebiam a resposta, entre sorrisos maliciosos, de que ele era um porco, não era verdade? E se portava de acordo, mas era o seu príncipe e o seu comandante e todos o obedeceriam até a morte.
A noite foi gasta na decoração da igreja e na preparação das vestes de Acqualinda. O Rei Vladislaw indagou dela, mais de uma vez, se pretendia mesmo se casar e ela apenas respondia que as profecias do livro nunca haviam falhado e que, portanto, não poderia fugir a seu destino. Além disso, o príncipe poderia ser a solução para o problema dinástico de seu pai ou, pelo menos, poderia ser o pai de seu futuro neto e sucessor. Mas o rei continuava apavorado: e se ao invés de um menino, nascesse um leitão?
Bem ou mal, o casamento foi celebrado com a maior pompa possível, servido novo banquete e o povo foi cantar e dançar nas praças, confraternizando com os soldados e oficiais. Acqualinda foi para a câmara nupcial tremendo de terror pelo que poderia acontecer. O príncipe chegou e foi logo apagando as tochas, deitou-se ao lado dela e a abraçou. Acqualinda estava louca de nojo, mas percebeu que ele não era tão peludo quanto parecia, que tinha braços e pernas normais e, quando ele a beijou, não parecia absolutamente ter um focinho nem colmilhos de porco. Foi muito carinhoso com ela e, depois que adormeceu, ela tateou seu rosto no escuro, perfeitamente normal e com orelhas humanas, o que a deixou muito intrigada.
O príncipe acordou e lhe disse que fora encantado por uma maldição totalmente imerecida, pois nada fizera de mal. Durante a noite voltava a ser totalmente humano, mas se qualquer luz fosse acesa, ele se tornaria novamente um porco, com focinho e colmilhos pontudos, portanto, que ela se contentasse em tocá-lo, para ver como seu nariz e dentes eram normais. Ela indagou se o fato de ter casado com ele não quebraria o encanto, mas ele respondeu que não era o suficiente, porque ela não o amava, somente o aceitara. Somente no dia em que ela ou outra mulher realmente o amasse, em sua figura de porco, ele recobraria completamente seu aspecto anterior.
No dia seguinte, ele se portou à mesa como um perfeito cavalheiro, explicando que apenas agira grosseiramente na véspera para testar sua resolução. E como ela sabia que ele era um homem perfeito no escuro, viveram com amizade, se não com amor, durante várias semanas. A estadia se prolongava e o genro demonstrava interesse pelos negócios do reino, mas Vladislaw não acreditava que ele jamais pudesse ser aceito como rei em seu lugar, mesmo porque, estranhamente, nem ele nem qualquer de seus oficiais e soldados jamais tinham proferido seu nome.
Chegou então notícia de que os valáquios se haviam aliado aos moldavos e haviam invadido o nordeste do país. Prontamente, o príncipe reuniu suas tropas e marchou para o combate, acompanhado pelo contingente búlgaro e os invasores foram expulsos. Mas nos meses que se seguiram houve outras invasões dos macedônios e gregos do sul, dos albaneses e dos montenegrinos do leste e passavam mais em combate do que nas cidades.
Uma noite, Acqualinda reuniu suas servas e sua escolta e foi visitar o pai e o marido em seu acampamento. Já estavam todos adormecidos e ela indagou das sentinelas onde era a tenda do príncipe seu marido. Assim que chegou, na maior das inocências, levantou a lona que servia de porta e a luz dos archotes incidiu sobre o príncipe adormecido, exausto pelos combates, com aspecto não somente humano, mas de grande beleza, sem um único defeito dos pés à cabeça. Acqualinda ficou maravilhada, mas no instante seguinte, o príncipe acordou.
“Que fizeste!” — exclamou. “Eu não te disse que não podia ser visto sob forma humana? Agora a maldição me levará para um lugar distante e não me poderás encontrar de novo, salvo se gastares sete pares de tamancos, usares sete túnicas até que se rasguem e esgarçares sete mantos ao andares pelos caminhos à minha procura...”
Acqualinda protestou que não fizera por mal, mas o príncipe mostrou-lhe um sorriso triste, assumiu de novo seu aspecto porcino e então surgiu um redemoinho que o envolveu e, no instante seguinte, desapareceu diante de seus olhos. Ela ficara tão abalada, que nem sequer pensara em apagar o archote.
De algum modo, todos souberam no mesmo instante o que ocorrera e seu pai e os generais logo entraram na tenda. Ela se lançou nos braços do pai, mas os turíngios repetiram o que ele lhe havia dito. Que o príncipe Wilhelm (deixaram escapar o nome pela primeira vez) fora levado para longe e que somente ela o poderia encontrar novamente, desde que percorresse um caminho muito longo, em que teria de gastar sete pares de tamancos, usar sete túnicas até que se rasgassem e esgarçar sete mantos nos espinhos e pedras dos caminhos enquanto estivesse à sua procura. Que gostariam de protegê-la, mas que nenhum deles a poderia acompanhar, visto que a maldição exigia que permanecessem no país de que ele fora arrebatado.
O sacerdote turíngio explicou que ele fora encantado por uma Brisa que se apaixonara por ele; como recusara seu amor, ela o amaldiçoara; as condições impostas não haviam sido cumpridas e, portanto, ele fora arrastado para a Caverna dos Ventos e era lá que se encontrava agora. Mas nem ele, nem ninguém mais sabia onde se localizava, ela teria de encontrar sozinha, se quisesse recuperar seu marido. E não poderia ser acompanhada por ninguém, fosse soldado ou sérvio, turíngio ou búlgaro. Contudo, fazia parte da profecia que mal algum lhe poderia ocorrer enquanto permanecesse em sua busca; que nem a terra, nem a água, nem o fogo, nem o ar, nem o Sol, nem a Lua, nem o vento, nem a chuva, nem qualquer outra força da natureza, animal, vegetal ou mineral, lhe poderia causar o menor dano, ao contrário, lhe forneceriam alimento e abrigo ao longo do caminho, mas que, caso se desviasse por qualquer motivo, teria de enfrentar terríveis perigos.
Acqualinda mandou preparar uma mochila, calçou um par de tamancos, vestiu uma túnica forte e envolveu-se em um manto grosso; na mochila colocaram seis pares de tamancos, seis túnicas e seis mantos, além de provisões para a longa viagem. Mas antes que partisse, seu pai insistiu que ela comesse um franguinho para adquirir forças para a longa viagem. Ela concordou e, levada por um impulso que não conseguiu explicar, enrolou todos os ossos em um paninho azul e o colocou dentro da mochila. Então ergueu o fardo às costas, que lhe pareceu surpreendentemente leve.
Caminhou por longo tempo, as estradas se curvavam e voltavam atrás, as pedras desgastavam seus tamancos e os espinhos lhe rasgavam a túnica e o manto. Finalmente, chegou a Belgrado, a capital da Sérvia, onde morava sua irmã Arlinda, que casara com o rei Miklos. Apesar de seu aspecto de mendiga, suas feições revelaram sua nobreza e foi levada à presença de sua irmã e esta logo a reconheceu. Tanto o rei como a rainha a trataram muito bem, mas no dia seguinte, o rei não estava mais no castelo.
Ela contou sua história à irmã: “Os ventos levaram o meu amor e não sei onde o puseram. Sabes onde fica a Caverna dos Ventos? Ah, irmã, como és feliz!” Mas Arlinda disse que, ao contrário, era muito infeliz. Ainda não tivera um filho para suceder ao marido no trono e este já se cansara dela; quando não estava combatendo os croatas ou os bósnios, passava em caçadas e raramente o via. Chamou os nobres e os popes, os padres ortodoxos, os mercadores e os camponeses, mas ninguém sabia onde ficava a Caverna dos Ventos, até que uma velhinha declarou que ficava perto do lugar em que nascia o sol. Arlinda pediu à irmã que ficasse com ela para aliviar sua solidão, mas Acqualinda explicou que deveria seguir o seu caminho, senão terríveis perigos a ameaçariam. Trocou os tamancos, a túnica e o manto e já pretendia partir, quando Arlinda insistiu que ao menos comesse um franguinho, a fim de se fortalecer para a viagem. Acqualinda concordou e guardou os ossos da ave no mesmo paninho azul em que estavam os ossos da primeira. zica
Partiu então de volta ao Oriente. Caminhou por montanhas e vales, até que seus tamancos se desgastaram, a túnica rasgou e o manto se esgarçou. Viu então ao longo as muralhas de Istambul, a capital dos turcos, onde morava sua irmã Rosalinda, que se casara com o sultão. Embora parecesse uma mendiga, foi muito bem recebida, porque suas feições traíam sua nobreza e então levada até o palácio, sendo recebida com grande alegria pela irmã, embora o sultão não aparecesse.
Ela contou sua triste história à irmã: “Os ventos levaram o meu amor e não sei onde o puseram. Sabes onde fica a Caverna dos Ventos? Ah, irmã, como és feliz!” Mas Arlinda disse que, ao contrário, era muito infeliz. Ainda não tivera um filho para suceder ao marido no trono e este se cansara dela, porque era muçulmano, tinha dez esposas e quatrocentas concubinas e só raramente a visitava. Quanto à Caverna dos Ventos, não fazia ideia aonde fosse, mas mandou chamar suas servas e as outras mulheres do harém, os ministros e os sacerdotes, os mercadores e os camponeses e ninguém soube informar-lhe, até que apareceu um velhinho encarquilhado que afirmou que a Caverna dos Ventos ficava além da Casa do Sol, no extremo oriente do mundo.
Rosalinda pediu à irmã que ficasse com ela para aliviar sua solidão, mas Acqualinda explicou que deveria seguir o seu caminho, senão terríveis perigos a ameaçariam. Trocou os tamancos, a túnica e o manto e já pretendia partir, quando Rosalinda insistiu que ao menos comesse um franguinho, a fim de se fortalecer para a viagem. Acqualinda concordou e guardou os ossos da ave dentro do mesmo pano em que estavam os outros. Embora não fizesse ideia do que poderia ser, tinha certeza de que isto seria importante.
Acqualinda caminhou por longo tempo em direção ao nascente. Logo o Sol se erguia e marchava em direção oposta. No calor do dia, Acqualinda era forçada a parar e descansar e logo raciocinou que não poderia encontrar o Sol no oriente quando ele estava no ocidente. Voltou atrás, caminhando para o pôr-do-sol, mas quando encontrava o horizonte ou o Sol se punha mais além ou a noite já cobrira todo o céu com o seu manto. Finalmente, voltou atrás de novo, decidindo repetir durante a noite os passos que dera durante o dia, até chegar ao alto de uma montanha. Mas o Sol nasceu na planície mais além.
Cansada, seus tamancos rebentados e atados com tiras de sua túnica rasgada e de seu manto esgarçado, caiu em profundo sono. Quando acordou, percebeu que suas mãos estavam rosadas. Subiu até o ponto mais alto da montanha, justamente quando o Sol nascia ali. De um salto, agarrou-se à soleira da porta da Casa do Sol, firmou os braços, guindou o corpo e se estendeu no assoalho.
Um jovem extremamente belo, de pele muito clara e longos cabelos louros, cujas madeixas se distribuíam ao redor de sua cabeça como os raios do sol, ergueu-a do chão e indagou: “Quem és tu, que conseguiste chegar à Casa do Sol e mesmo assim não te queimas?” Ela respondeu: “Meu nome é Acqualinda e não me queimo porque a tristeza me esfriou o coração. “Os ventos levaram o meu amor e não sei onde o puseram. Sabes onde fica a Caverna dos Ventos? Ah, Sol, como és feliz!”
Mas o Sol lhe respondeu que não era exatamente feliz, porque não tinha descanso; quando pensavam que dormia à noite, estava iluminando os vales que ficavam mais além. Contudo, embora percorresse toda a Terra, não sabia onde ficava a Caverna dos Ventos. Quando Acqualinda lhe contou toda a história, ele respondeu que, se fora à noite, quem deveria saber era sua irmã, a Lua, que morava muito mais ao Oriente. Acqualinda trocou os tamancos, a túnica e o manto e já ia partir quando o belo jovem insistiu que ao menos comesse um franguinho, a fim de se fortalecer para a viagem. Acqualinda concordou e guardou os ossos da ave dentro do mesmo pano em que estavam os outros. Embora não fizesse ideia do que poderia ser, tinha certeza de que isto seria importante.
O Sol a ajudou a descer à Terra e Acqualinda percebeu que não estava mais no pico da montanha, mas em um lugar que percorrera muito antes. O Sol lhe mostrou um sorriso radioso e explicou que sua casa nunca parava, mas se movera enquanto conversavam. Acqualinda agradeceu e recomeçou sua jornada. Caminhou por longo tempo e a Lua sempre estava distante, até que, no final de uma tarde, quando estava no cume de uma montanha, viu a Casa da Lua sobre sua cabeça. De um salto, agarrou-se na soleira da porta, ergueu-se com os braços e se arrastou para o assoalho da Casa da Lua.
Uma mulher muito bela, de pele muito clara e cabelos de um louro platinado ajudou-a a erguer-se do chão. “Quem és tu, que conseguiste chegar à Casa da Lua e mesmo assim não te resfrias?” Ela respondeu: “Meu nome é Acqualinda e não me esfrio porque o amor me aquece o coração. Mas os ventos levaram o meu amor e não sei onde o puseram. Sabes onde fica a Caverna dos Ventos? Ah, Lua, como és feliz!”
Mas a Lua respondeu que sua felicidade era muito relativa, já que era obrigada a iluminar a Terra durante a noite e assistia a todos os desastres e crimes que eram cometidos e que só podia encontrar o irmão que amava tanto quando ele já estava indo embora ou por breves momentos enquanto ele chegava. Mas quanto à Caverna dos Ventos, não sabia onde ficava. Ela teria de perguntar a seu filho, o Orvalho. Acqualinda trocou os tamancos, a túnica e o manto e já ia partir quando a bela jovem insistiu que ao menos comesse um franguinho, a fim de se fortalecer para a viagem. Acqualinda concordou e guardou os ossos da ave dentro do mesmo pano em que estavam os outros. A Lua acenou com a cabeça, sabendo que isso era importante, mas não lhe disse porquê.
Acqualinda marchou para o sul e transpôs os mais áridos desertos e as mais altas montanhas, mas sem encontrar o orvalho. Uma noite, após cruzar um pântano e uma floresta, caiu exausta e adormeceu em um campo de papoulas. Despertou ao sentir umidade a lhe cair sobre o rosto e então mãos invisíveis a ergueram. Foi depositada em um leito macio e adormeceu novamente. Ao acordar, deparou com um jovem muito belo, de pele muito morena e de cabelos muito negros, que lhe indagou: “Quem és tu, que eu trouxe para a Casa do Orvalho e mesmo assim não te molhas?” Ela respondeu: “Meu nome é Acqualinda e não me molho porque a saudade me ressecou o coração. Foram os ventos levaram o meu amor e não sei onde o puseram. Sabes onde fica a Caverna dos Ventos? Ah, Orvalho, como és feliz!”
Orvalho riu-se e disse que sua felicidade era muito relativa, porque assim que descia, ou a terra o sugava ou seu tio, o Sol, fazia com que se evaporasse e se tornasse em nuvens novamente. Lamentava muito, mas não sabia onde ficava a Caverna dos Ventos. Contudo, tinha certeza de que sua irmã, a Geada, saberia dizer-lhe onde era, já que tinha casado com Bóreas, o Vento Norte e por isso sabia onde ele morava.
Mais uma vez, Acqualinda trocou os tamancos gastos, a túnica rasgada e o manto esgarçado e pediu ao jovem que ele a deixasse partir, mas seu hospedeiro insistiu que ao menos comesse um franguinho, a fim de se fortalecer para a viagem. Acqualinda concordou e guardou os ossos da ave dentro do mesmo pano em que estavam os outros. O Orvalho ergueu as sobrancelhas, como se soubesse porque isso era importante, mas não lhe disse a razão, apenas tomou-a em seus braços, depositou-a na terra e disse que deveria cruzar as montanhas do Karakorum em direção ao norte.
A princesa caminhou durante muitos meses, seus tamancos se gastaram, sua túnica se rasgou e o manto ficou tão esgarçado que já não mais a aquecia, porque chegara ao norte do mundo. Uma noite, dormiu exausta, depois de nadar por muitos lagos e encolheu-se toda, como um nenezinho, para se aquecer, até que sentiu o frio caindo do céu e duas mãos que a erguiam. Quando se acordou em uma cama de nuvens negras, uma bela jovem de cabelos avermelhados e pele muito clara a contemplava.
A jovem indagou: “Quem és tu, que eu trouxe para a Casa da Geada e mesmo assim não te congelas?” Ela respondeu: “Meu nome é Acqualinda e não me congelo porque a esperança me arde no coração. Foram os ventos levaram o meu amor e não sei onde o puseram. Sabes onde fica a Caverna dos Ventos? Ah, Geada, como és feliz!”
Geada riu-se, dizendo que sua felicidade era muito relativa, porque, para encontrar seu marido, o Vento Norte, tinha de cair à Terra e só então ele a levantava... Mas sabia muito bem onde ficava a Caverna dos Ventos, só não podia morar lá porque os outros ventos a desmanchariam. Mas explicou-lhe que deveria subir à mais alta montanha dos Pireneus e lá do alto, avistaria a Casa dos Ventos, que diversamente das outras, nunca mudava de lugar.
Acqualinda trocou os tamancos gastos, a túnica rasgada e o manto esgarçado pela sétima vez e pediu à jovem que a deixasse partir, mas sua hospedeira insistiu que ao menos comesse um franguinho, a fim de se fortalecer para a viagem. Acqualinda concordou e guardou os ossos da ave dentro do mesmo pano em que estavam os das outras aves. A Geada acenou a cabeça em aprovação do que fazia, mas não lhe disse porque era importante, apenas tomou-a em seus braços, depositou-a na terra e disse que deveria cruzar as montanhas a Alemanha e a França em direção ao leste, até chegar às montanhas localizadas na fronteira com a Espanha. Quando Acqualinda começou a caminhar, Geada lhe disse que não esquecesse de que a escada somente poderia ser usada uma única vez.
Acqualinda olhou para trás, mas a Geada já subia com o vento. Deu de ombros e reiniciou sua jornada, atravessando pântanos e florestas, montanhas e vales, até avistar à sua frente uma alta cadeia de montanhas, embora bem menor que os Alpes que cruzara e o Urais, Himalaia e Karakorum que tivera antes de atravessar. Subiu ao que lhe parecia ser o maior dos montes, mas havia outro ainda mais alto; galgou o segundo e viu um monte ainda maior à frente. Seus tamancos estavam aos pedaços, a túnica mal a cobria e o manto se esgarçara tanto que o mais brando zéfiro passava através dele.
Os pés de Acqualinda já sangravam, sua pele estava enregelada e sentia arrepios ao longo da espinha, mas estava feliz porque havia gasto sete tamancos, rasgado sete túnicas e esgarçado sete mantos e, além disso, a Geada finalmente lhe indicara o caminho. E dito e feito, ao chegar ao cume da mais alta montanha dos Pireneus, uma caverna de pedra pairava no ar, sem tocar as rochas do pico. Com o maior esforço, subiu ao penhasco mais elevado e a casa estava muito perto, mas impossível de tocar. Em um impulso, Acqualinda abriu o seu paninho azul e dele retirou os ossos dos sete franguinhos que foi colocando, um a um no alto do penhasco.
Para sua maravilha, eles foram formando uma escada, cada ossinho um degrau solto no ar, sem qualquer apoio aparente. Acqualinda respirou fundo e começou a subir. Estava muito magra da viagem, sua mochila ficara vazia e os ossinhos aguentaram perfeitamente seu peso. À medida em que subia, colocava mais ossinhos, até que colocou o último osso do sétimo franguinho e a boca da caverna estava logo acima de sua cabeça. Subiu no último degrau, mas não alcançou, esticou-se na ponta dos pés, mas seus dedos apenas roçavam a entrada...
Acqualinda tentou pular, mas não conseguia impulso naquele pequeno fragmento de osso. Faltava somente um degrau, ela teria perdido um dos ossinhos no caminho? Então, trincou os dentes e com uma faquinha, cortou o dedo mínimo da mão esquerda e colocou no ar acima do último degrau. O dedo vacilou, mas o sangue escorreu até a escada mágica e instantaneamente se congelou, formando um suporte. Acqualinda respirou fundo, tomou impulso, pisou em seu dedinho e se agarrou na entrada da caverna com os outros nove. Mais um impulso e puxou todo o corpo para cima, caindo no chão da caverna. No momento em que puxou as pernas, ouviu um barulho atrás e percebeu que a escada mágica havia desmoronado, inclusive seu próprio dedo...
Dessa vez, ninguém veio em seu auxílio. Ela se ergueu sozinha, ouvindo os sussurros e uivos dos ventos, que arrancaram seu manto, tiraram sua túnica e até mesmo puxaram o resto dos tamancos para fora de seus pés. Sem medo, completamente nua, a princesa seguiu em frente até descobrir um vasto leito, em que dormia um jovem muito belo. Não lhe reconheceu o rosto, mas na hora soube que era o Príncipe Wilhelm da Turíngia, seu marido.
Avançou para tocá-lo, mas uma mulher de cabelos castanhos surgiu e se interpôs. “Quem és tu, que conseguiste chegar à Caverna dos Ventos e queres tocar em meu marido?” Arrepiada de frio, sentindo o vento que saía da boca da mulher, ela respondeu. “Sou Acqualinda, princesa da Bulgária e esse homem aí deitado é o meu marido, não o seu. E tu, quem és, que me impedes de chegar a ele?” A mulher respondeu com altivez: “Eu sou a Brisa e antes que fosse teu marido, ele foi meu, por isso o tomei de volta para mim. Agora, vai-te daqui!...” Mas Acqualinda insistiu: “Eu gastei sete tamancou, rasguei sete túnicas e esgarcei sete mantos para chegar até aqui. Usei os ossos mágicos para construir uma escada que só posso usar uma vez. Para concluir a escada, cortei meu próprio dedo e derramei meu próprio sangue. Não sairei daqui sem o meu marido.”
Brisa tentou empurrá-la, mas de repente, todos os ventos da caverna tomaram forma humana. Um deles, o maior e mais forte de todos, com uma longa barba branca de geada, avançou. “Que queres, Pai Bóreas?” perguntou a Brisa ao Vento Norte. “Este homem é meu marido e não vou abrir mão dele.” “Não,” respondeu o Vento, com uma voz mais poderosa que todos os furacões. “Este homem nunca foi teu marido. Tu o assediaste, mas ele nunca te aceitou como esposa. Então o amaldiçoaste. Tudo isso eu vi e nada fiz, mas agora as condições da maldição se cumpriram e deves abrir mão dele.”
Brisa protestou: “Ele só poderia pertencer a uma mulher que o amasse em sua forma monstruosa. Se ela o tivesse amado realmente, eu não poderia tê-lo trazido até aqui.” Mas o Vento Norte lhe respondeu com o som de mil tufões: “Esta mulher gastou sete tamancos, rasgou sete túnicas e esgarçou sete mantos para chegar aqui. Para construir a escada, cortou seu próprio dedo. Amor maior não há que o de uma mulher que dá sua carne e sangue por amor de alguém. Tua maldição está invalidada e eu te ordeno que obedeças.”
“Tudo bem,” disse Brisa, em seu despeito. “De que me serve um marido que dorme desde que o trouxe para cá? Mas não ficarei aqui para assistir, ela que o desperte, se puder!” A Brisa mordeu os lábios, mas ao invés de sangue, começou a escapar ar e ela foi se esvaziando como um balão e igual que um balão começou a voar sem destino pela caverna, até sair pela porta com um último uivo.
Bóreas fez um sinal para Acqualinda e esta se aproximou do leito e beijou os lábios do homem adormecido. Seus olhos se abriram e de imediato ele a reconheceu, abraçando-a com o maior carinho. Os ventos aplaudiram com silvos e assobios. O Vento Norte ordenou e logo trouxeram ricas roupas, botas e meias bordadas para o dois. Bóreas ordenou a seu irmão Austros, o Vento Sul, que os levasse de volta para a Bulgária. Ambos agradeceram muito ao Vento Norte e desceram para a terra nas asas do Vento Sul.
Austros os desceu dentro das muralhas de Sófia, diante da porta do palácio real. Acqualinda foi logo reconhecida, pois seu aspecto não mudara, embora se tivessem passado sete anos. Ela apresentou o príncipe, que foi saudado com todo o respeito e levada à câmara de seu pai, que estava em seu leito de morte, cercado de médicos e cortesãos, que aguardavam sua decisão sobre qual deles seria escolhido como herdeiro do trono, ainda que todos soubessem que haveriam uma longa guerra civil até que um deles pudesse ser aceito pelos outros como o rei.
Quando Vladislaw a viu, sentou-se na cama para poder abraçar e beijar sua filha e estendeu uma das mãos para Wilhelm, envolvendo-o em seu abraço. “Agora, sim, posso morrer. Esta é minha filha e este é meu herdeiro e deles espero muitos netos para garantir minha descendência.” Os cortesãos não protestaram, mesmo porque entre eles estavam os generais do príncipe, que prontamente o reconheceram e se ajoelharam um a um diante dele em homenagem. Vladislaw falou novamente: “Deus me foi favorável em poder abraçar novamente minha filha e meu herdeiro. Estávamos ameaçados pelo rei dos sérvios e pelo sultão dos turcos, ambos querendo meu reino e sei que vários de meus nobres aqui presentes também o desejavam, mas nenhum seria aceito pelos demais e a guerra civil e as tropas dos sérvios e dos turcos dilacerariam a nação. Agora, posso morrer em paz.”
O rei recebeu os últimos sacramentos e morreu dentro de algumas horas. Todos os nobres, sacerdotes e generais prestaram vassalagem ao príncipe da Turíngia e o casal foi coroado no dia seguinte na Catedral de Sófia. Ao saber da notícia, os inimigos avançaram, mas foram derrotados pelo exército de Wilhelm, que o aguardara fielmente durante todos esses anos e, enquanto isso, confraternizara com os búlgaros, com cujas filhas muitos dos oficiais e soldados já haviam casado.
Para satisfazer os súditos, Wilhelm adotou o nome dinástico de Vladislaw IV Lubomirovitch e reinou por muitas décadas, com justiça e sabedoria, fortalecendo e aumentando as fronteiras do reino e promovendo a prosperidade e a paz entre todos os seus súditos, tanto búlgaros como turíngios. O comércio prosperou, surgiram indústrias e o nível de vida do povo foi melhorando aos poucos, enquanto os nobres esqueciam ou, pelo menos, punham de lado suas antigas inimizades e rivalidades, sob o governo magnânimo, mas firme do rei. Acqualinda e ele tiveram sete filhos e sete filhas e viveram felizes por setenta anos. Mas Acqualinda nunca mais quis saber de comer frango até o fim de sua vida...