O NASCER DA MENSAGEM *

Lambiam os olhos a paisagem, agrupando elementos para a construção do enredo, solto aos poucos, como se buscados no inconsciente, dando versões ao que presenciava. Plasmado do abstrato, pedindo para existir, invisível, imperceptível. Emoções repentinas, observações sutis, etéreas insinuações.

Uma inspiração no ar, dissoluta, uma essência. Desafio a materializar, reclamando presença, cores e formas, em símbolos que a desenhem, dando lhe contornos visíveis, palpáveis, inteligíveis.

Difícil é transmitir sua pujança, a alma inquieta, suas multifaces em diversos sentidos,. Um respirar profundo, meditativo, viajante, alento em devaneios, a brotar, finalmente, em palavras, como um sopro existindo.

Naqueles momentos tão pessoais, não importava o contexto, suas imagens se construíam, debalde o universo apresentado distasse do que se via, surgiam as letras codificando a mensagem, transcrita em códigos verbais plasmando do etéreo as visões recônditas em seu íntimo. Iniciado seus devaneios, dando consistências ao relato, por fim aparecendo os esboços de sua narrativa introspectiva com suas personagens inusitadas, num consórcio indissociável entre o autor e a criação.

Haveria, nesse processo, quem afirmasse que ali estava, não estando. Tal a distância entre a presença física do alheamento nos sonhos, captando emoções na tentativa de decifrá-la a outros, em palavras e sentidos. Posto que o ato de criação é pessoal, absorvente, não participando a terceiros, numa busca interior não partilhada, apenas o depois, decodificada a mensagem, onde cada qual a decifre como puder entender.

Embate único, onde julgava ser possível retirar as cores, desnundando as ilusões dos dias. Encarando de frente a realidade, sem adereços, requintes, desprovida das alegorias. Sem ornamentos frívolos, purpurinas e neons, na nua realidade crua, arrepiando e amendrontando, carecendo a volta aos disfarces, em caras pintadas, roupas largas, renascendo o palhaço no oculto das lágrimas, sorrindo a todos, lamentando-se no íntimo.

Sendo o que querem que ele seja, como o vêem, amável, cortês, simpático e bom, nem sempre cumprindo tudo bem o que dele se esperava. Às vezes ele mesmo oculto sob escombros, nas sombras, ignoto de seu Ser, ironizando conveniências sociais, sob a armadura de outras máscaras. Mesclando atitudes, ora aceitas, noutras não, panela de pressão, artista em frangalhos nesta barafunda a sua personalidade.

Toda a humanidade de si aflora, dual e magnífico, sobranceiro e tímido, múltiplos em um único ente, fantasioso e cruel, poeta e ordinário, erudito e medíocre, menino às vezes, e adulto em turbilhões de conflitos.

Na confusão de sensações, sua alma inquieta plasma a matéria, habita e apresenta sua lavra, às platéias representa e engole o grito. Nos labirintos de si mesmo, ardente vulcão em ebulição, aflito Ser em busca de si e de seu caminho.

A navalha cortante na pele macia, resvalando e ferindo, macula e geme, espinhos das nostalgias, saudades como urtigas cultivadas em jardins floridos. Aventura a descrever, extraindo de si mesmo a essência descrita em prosa e versos, atirando-se em tantos riscos, na sanidade insana de se revelar desnudo de fantasias. Sempre que atrevia a se desvendar mantendo o equilíbrio na corda bamba, fustigando a si mesmo, em feridas estuporando tumores, amargando desventuras, para enfim trazer em palavras escritas alguma luz.

Na introspecção que incendeia as veias ardendo pela pressão do sangue a se agitar, na ânsia pelas expressões em imagens toscas apreendidas em verdades. Mostrar-se é desafiar, abrir mãos de intimidades, colocar-se um pouco, diluir-se em cada diálogo, imiscuindo-se à guisa de ficção, reconhecendo-se na fragilidade psicológica dos elementos a bailarem no jogo lúdico de cada cenário imaginado. Diáfanos seres, alimentados no hálito do escritor, buscando dar-lhes vida e veracidade, transpondo impressões vitais em suas criações, situando os no plano do concreto e do real.

Depois de acabado o texto, despatriado de si, como algo apartado , lendo e relendo, cada vez mais distante do criador, a gostar ou desprezar, pouco importa, jaz concluído, não lhe pertence mais, produto de suas entranhas, buscando vida própria, independência. Concebido, divulgado ou esquecido, algo estranho, de alheia origem, deserdado, uma vez parido, com dores e estertores, ganha luz própria, interpretação livre. Bastardo filho de suas cogitações, já foi parido, sofrido com as dores do nascedouro, feito a mãe no nascimento acariciando o filho concebido.

Para o autor, feito o parto, resta a busca, inconsciente, por outra empreitada, como um vício a reclamar dedicação, num duelo intrínseco com as ferramentas das palavras, carecendo novas inspirações, embrenhando-se insatisfeito por novas realizações, garimpando na aspereza de rochas brutas a jóia a ser esculpida.

O prazer está na emoção da construção, tijolo a tijolo, adquirindo contornos, delineando-se, até amadurecer e ganhar autonomia, liberdade. Interpretada, livre, em cada imaginação. Mensagem filha da vida, assumida, desligada da origem, já não pertence mais ao seu criador...

* Publicado em livro na antologia Contos Fantásticos - 2015, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ.