A Escolha - 001
“Eu não tinha nenhuma singela noção do quão fundamental seria aquele sorteio de cartas para minha vida. E até certo momento da minha trajetória, eu as ignorei. Como se tivessem sido um mero detalhe sem nexo, sem profundidade.
Hoje tenho em mente, cravada em minha consciência desperta, a sabedoria que trata dos fatos: nada acontece por acaso; não existem coincidências; todo ciclo iniciado uma hora tem um desfecho; cada ser tem seu próprio ritmo na canção do universo.
Foi uma pena que aos treze anos, eu não tive tamanha noção de vida. Caso tivesse. Eu poderia ter iniciado processos evolutivos mais cedo, dado mais atenção a algumas questões e harmonizado bem mais a minha vida para com o universo.
Mas como eu disse: no ciclo da vida, as coisas não ocorrem por acaso e se eu não tivesse seguido o meu próprio ritmo nada teria sido igual. E nada faria tanto sentido hoje nem com mil e uma coincidências espalhadas pelo meu caminho”.
1 – Othila, a Runa da Família e da Tradição
Nasci no dia um de janeiro - razão pela qual meu pai deu-me o nome de Janus, o antigo Deus romano, ao qual o mês é honrado, também conhecido como o Deus das Escolhas e dos Portais. Foi sob os primeiros raios solares daquele ano e ainda a presença de uma bela lua cheia nos céus que dei meu primeiro urro de vida.
Minha mãe discutia com o meu pai mais uma vez. Eram os primeiros anúncios da separação que ocorreria dali a cinco anos. Estavam numa festa de ano novo (data conveniente para vir ao mundo, não?) e a discussão se iniciou ao passo que chegaram à orla de Boa Viagem.
Por vir de uma tradicional família cristã, minha mãe abominava todas aquelas mandingas e sortilégios de passagem de ano novo. Assim como tudo o que fosse contrário às contradições bíblicas. Por ela e meus avós, toda a família estaria na igreja, passando a noite da virada na casa de Deus.
Por ser professor, com mestrado em História, Antropologia e especialização em Mitologia, meu pai conhecia bem algumas crenças pagãs com bases mágicas e as praticava deliberadamente com seu conceito antropológico sobre religião. Às vezes parecia estranho, muito fora do comum e do habitual, mas era parte integrante do meu pai, era quem ele era. Ele sem seus banhos purificadores parecia até “feder” espiritualmente.
Meu pai caminhou até a beira da praia com a garrafa de champanha e um buquê de rosas brancas, deu seus sete saltinhos nas ondas do mar, honrando Iemanjá (Orixá bem conhecida e cultuada pelos praticantes de Umbanda e Candomblé brasileiros), jogou o ramalhete ao mar e fez uma prece por mim, seu primogênito, enquanto derramava as sobras da primeira espumante aberta nas espumas salgadas do mar.
Meus avós, beatos, viram aquilo e como já não aprovavam alguns comportamentos do meu pai, fizeram inferno na cabeça da minha mãe por conta da cena que presenciaram. Ela por sua vez, filha obediente à família, terminou a noite inteira discutindo e pregando trechos bíblicos para o meu pai que era na época ainda mais desaforado.
Resultado? A bolsa estourou, e eu nasci.
***
Como que por conseqüência, e influência dos meus avós, tive uma criação quase inteiramente cristã. Ir à igreja, rezar antes das refeições e dormir, fazer catequese e primeira comunhão, fazer o sinal da cruz ao passar em igrejas foram ritos diários e de passagem já previstos no meu desenvolvimento.
Tinha, é claro, os momentos em que meu pai me contava os grandes mitos das mais diversas culturas pra me fazer dormir, ou junto comigo fazia uma ou outra magia e sortilégio para Afrodite, que ele chamava de Mãe, e eu não entendia na época por que. Achava que era o nome da minha avó paterna que eu nunca conheci.
Ao mesmo tempo em que eu decorava textos bíblicos e os estudava, ou refletia sobre eles, eu recebia do meu pai alguns conhecimentos práticos sobre a minha existência e importância para o mundo. Devo dizer que meu pai soube ensinar bem as magias que praticava sem que interferisse de maneira direta nas crenças cristãs que nunca poderiam ser abaladas, ou seu casamento viria ao fim.
Aos poucos, os ensinamentos foram cessando, eu mesmo sentia que meu tempo com meu pai estava e gradativamente ficava ainda mais curto. Primeiro pelo nascimento dos meus irmãos gêmeos: Cosme e Damiana. Ter um bebê enlouquece uma família, imagine dois e de uma única vez. Depois o aumento da intolerância da minha família acerca das práticas do meu pai. O que causava cadê vez mais brigas, mais momentos tensos, dias sem se falar, a primeira possível traição e enfim a separação. Lembro bem que meu pai dizia que os meus avós foram contra o casamento e foram ainda mais com a separação. Porque segundo eles, “o que Deus uniu, nenhum homem separa”.
***
Aos meus cinco anos completos, beirando para os seis, meus pais se separaram.
Meus irmãos estavam com dois anos de idade, não tinham a mínima noção do que acontecia. Eu já era mais atento, já percebia tudo com uma esperteza e maturidade precoce. Se eu disser que aquele fato em nada me abalou, estarei mentindo. Mesmo com toda a desarmonia e discussões pairando nossos dia-a-dia. Acordar com um beijo da mamãe e dormir com uma das histórias ou rituais do papai eram uma rotina que me engrandecia o mundo. Me ver de uma hora pra outra fora daquele mundo tão completo, foi um baque sem igual.
Eu estava acordado, lendo meu primeiro e secretíssimo livro de tarô, quando ouço os passos fortes da minha mãe e os pés rastejantes do meu pai passarem pelo corredor que dividia meu quarto do quarto das crianças.
Eles cochichavam e mesmo em cochichos conseguiam gritar um com o outro. Levantei-me e fiquei observando pela fresta da porta. Vi minha mãe vindo em minha direção, e corri para a cama. Soquei o livro dentro do travesseiro e me cobri fingindo estar dormindo. Ela entrou no quarto, me conferiu, fechou a porta e voltou para a discussão com meu pai.
Levantei-me novamente e passei a ouvir por trás da porta a ultima discussão deles ainda casados. As palavras ditas àquela noite ficaram amalgamadas na minha lembrança infantil, assim como a interpretação da carta Morte do tarô de Marselha que eu estudava àquela noite.
- Jorge! Você é uma má influência para os meus filhos! Não quero que eles cresçam sabendo que o pai deles cultua o demônio!
- São Deuses! Magda! Por Afrodite! São Deuses! Nem acredito na merda do demônio que você tanto tem medo!
- Um deus de chifres e uma deusa prostituta? São demônios disfarçados por esses mitos fantasiosos!
- Se você ao menos abrisse a mente por um momento, entenderia! Você está se tornando tão fanática quanto seus pais.
- E você está se afundando no inferno a cada dia.
- Sou um bruxo, meu inferno e meu paraíso são onde estou!
- Sou uma cristã ungida, não posso permanecer ao lado de um pecador e herege que não reconhece seus pecados e ainda se orgulha deles.
- Este é o fim?
- Sim.
Foi assim como uma Guerra Santa. Pergunto-me hoje se realmente meus pais se detestavam, ou os seus deuses e todas as suas diferenças não destruíram aquela relação.
***
Uma semana foi o tempo necessário para meu pai juntar todos os seus livros, roupas, objetos e instrumentos mágicos. Foi doloroso vê-lo partir. Passei um tempo cabisbaixo. Sem muita motivação para ir à escola. Tive febre emocional, dores nas mais diversas partes do corpo. Minha avó até disse que meu estado de saúde fora alguma maldição que meu pai me enviara. Levou-se pra igreja para ser benzido e lá eu fiz a primeira e mais inconseqüente traquinagem.
Quando o pastor daquela igreja, que comprava fiéis com promessas de cura para tudo, veio por sua mão sob minha cabeça. Dei-lhe um chute entre as pernas e sai correndo enquanto todos gritavam!
- Segura esse Exu mirim! O garoto está possuído!
Exu coisa nenhuma! Nada contra o Orixá dos desejos e prazeres, o Loki africano. O que eu queria era meu pai e faria qualquer coisa pra tê-lo por perto. E não estaria sujeito aquele charlatanismo de alguém estranho.
***
No processo para as guardas dos filhos, minha mãe ganhou o apoio do juiz. Na verdade foi pura armação. O juiz era amigo do meu avô e acabou concedendo minha guarda à mamãe. Não achei ruim, mas também não achei nada bom ver meu pai umas duas ou três vezes por semana.
Meus avós ainda lutaram na justiça, fizeram o inferno para que ele perdesse todos os direitos sobre mim e meus irmãos. Todavia, foi em vão. Meu pai tinha boa índole, emprego e nunca tivera sua ficha suja com nada que pudesse me afastar deles. Com isso eu vibrei de emoção. A Justiça brasileira poderia ser cega, mas não chegava ao extremo, num caso como este. Que fique claro.
Meu pai passou a morar na Jaqueira, um bairro do Recife, um tanto longe do bairro que eu morava (Boa Viagem), mas que valia a pena visitar por conta das ruas arborizadas e os imensos prédios luxuosos e toda a pompa dos moradores classe média alta que se tornaram vizinhos do meu pai.
Para mim aqueles eram os melhores dias da minha vida. Nós fazíamos de tudo, brincávamos, conversávamos, meu pai puxava minha atenção quanto aos estudos, fazíamos rituais com mais liberdade e ao ar livre.
Sobre esta ultima parte, minha mãe sempre me questionava se eu continuava a fazer “macumbas” com meu pai. Eu negava, mas ela me pegou na mentira – ou não – quando veio me perguntar e eu aborrecido esbravejei:
- Mãe, macumba é coisa de quem é praticante do Candomblé. Meu pai é bruxo, faz magia, feitiço, sortilégio e meditação. Nada de macumbas!
Meu pai não teve muito contato com meus irmãos. O que não gerou uma afinidade como a que havia entre nós. É claro que meu pai amava a nós três, contudo a nossa união era inequiparável. E minha mãe agradecia por não ver nem em Cosme nem em Damiana os traços que me deixavam encantados pelo meu pai. Meus irmãos, ainda pequenos, não faziam questão de visitar nosso pai. Não distinguiam o quão importante aquele homem era. Para eles, ele era um homem comum, que tinham que ver todo fim de semana e chamar de pai.
Eu não! Eu sabia quem era ele. Sabia que ele era o filho de Afrodite, sabia que da boca dele as melhores histórias seriam contadas. Lembrava todas as vezes que ele retificava o “deus castiga” que minha mãe berrava por algo como “usar estilingue para atirar em pássaros é pedir que um coqueiro derrube um coco em nós. Ou às vezes coisas pior. Tudo que é feito aqui, volta pra você três vezes mais intenso.”
Eu sabia que era com ele que eu podia tomar vinho a cada lua cheia para comemorar a plenitude dos nossos seres. Eu perderia anos se tentasse enumerar os momentos mágicos que tive com meu pai. Hoje, sei que ele era um wiccano. Que comigo, mesmo pequeno, ele fazia rituais, feitiços, enfim me iniciava numa arte de magia. E isso causou um grande fascínio por ele.
Não que eu não gostasse da Igreja, do Deus Cristão e a Bíblia, pelo contrário, eu sabia diferir o sagrado do mundano (e o sagrado do sagrado) de maneira que meus avós sempre elogiaram. Fui coroinha por um ano, ajudante na catequese. Era um exemplo de garoto obediente à família e a Deus.
Contudo, odiava o fanatismo. Algo que eu presenciava todos os dias das mais diversas formas. Um fanatismo preconceituoso, amargurado e ignorante no pior e mais primitivo sentido da palavra. Isso me enojava e me fazia contar os segundos para a chegada da sexta para ir para a Casa Azul (como chamávamos o apartamento do meu pai).
Ter aqueles momentos com meu pai me davam uma liberdade familiar, que por ser criança eu ainda não percebia. Seguir a trajetória que todo cristão praticante deveria seguir era confortável para o meu espírito e acalmava muito a tensão que vivíamos em casa. No fim, me via realmente dividido, entre tradições familiares. Queria na época entender runas, como vim a entender mais tarde. Saberia aplicar o poder de Othila na situação.