O TRIBUNAL 2 - A Fera do Atlas

O TRIBUNAL 2:

A FERA DO ATLAS

Era quente a tarde na cordilheira marroquina. Dois homens, meia-idade, bem armados e vestidos contra a potente luz solar, caminhavam ao sul de Marrakech. O Atlas soprava seus ventos, amenizando as précarias condições dos viajantes. Cobras rastejavam pelo chão desértico e aves de rapina sobrevoavam o local com olhos fixos em suas presas. Mas para a dupla desbravadora o alvo máximo parecia cada vez mais distante.

A água ia se esvaindo dos cantis e as buscas pelo “senhor do monte Atlas” já era um martírio em vão. No entanto, logo que o sol começou a se deitar nos braços do horizonte, um enorme vulto foi avistado entre os arbustos; um dos caçadores engatilhou sua arma e vagarosamente moveu-se na direção da vegetação. Os últimos raios do astro-mor delinearam a silhueta do animal, e a mira já estava pronta para o disparo, enquanto o silêncio perturbador somente se rompia pelas respirações humanas.

Os derradeiros movimentos da fera não atrapalharam o desbravador, que ergueu seu rifle, posicionou-se perfeitamente e atirou duas vezes. Ambos os projéteis atingiram a fronte direita do alvo, que caiu sem esboçar reação ou dor – morria o leão-do-atlas. Os expedicionários correram até o animal abatido e, fitando-o, tiraram seus chapéus em sinal de reverência à sua majestosa imagem. Então, um colossal clarão tomou as montanhas e a dupla caiu por terra, inconsciente. Quando despertaram, viram-se em um imenso e verde vale, rodeado por altíssimas montanhas e banhado por um cristalino rio, que o atravessava por inteiro. Frondosas árvores, que sacudiam-se perante impetuosos ventos, estavam posicionadas de modo a formar um círculo, bem no centro do vale. De repente, dentre as volumosas moitas, um enorme leão saltou em direção aos homens que, ainda atordoados e assentados na relva, gritaram em desespero e impotência. Contudo, no ar, surgiu um longa corda branca, que enrolou-se com violência no pescoço do carnívoro e o fez deitar-se, sem reagir.

Há alguns metros de distância, com a ponta da corda na mão direita, estava um aterrorizante gorila, com os pés descalços, mas vestido com um fraque branco. Instantes depois, apareceu um chimpanzé, de fraque azul-turquesa, um suntuoso manto negro e uma bengala de cor marfim. Espantada, a dupla humana percebeu, além das roupas, que os primatas andavam de modo ereto e elegante.

- Robustus, retire a corda do pescoço do leão e o conduza até à margem do rio. - ordenou o chimpanzé ao gorila.

O magno felino debruçou-se nas águas, deixando-as molhar seu focinho. O pomposo chimpanzé aproximou-se do leão, agachou-se e disse-lhe baixinho, bem próximo ao ouvido:

- Irmão, olhe bem no fundo das águas e deixe que o vento toque o fundo de sua alma.

E assim o ouvinte o fez. Segundos depois, o felino começou a ver nas águas do rio muitas imagens de toda sua vida. Seu nascimento, momentos de alegria e dor, tudo se mesclava diante de seus olhos; até que nada mais viu, a não ser seu reflexo, tenso e perplexo. Ainda ao seu lado, o primata afagou-lhe a juba e trouxe-o junto a ele para o centro do vale. Por um feixe de luz após virar o focinho, a fera avistou a dupla de caçadores e, em outro déjà vu, confrontou-se em sua mente com momentos finais de sua vida, até à morte, antecedida por breves instantes de flagelo. Mesclando pavor e ódio, o leão não moveu-se e, próximo aos seus malfeitores, apenas assentou-se no centro do círculo das árvores.

- Vinde a nós, senhores da justiça! - disse o chimpanzé, em forte brado.

Um imenso estrondo foi ouvido e, simultaneamente, dentre as nuvens, quatro animais descem envolvidos por vento e luz, e assentam-se em rochas, lado a lado, próximos ao chimpanzé; este último, senta-se na maior e mais alta das rochas, encerrando assim a formação de um tribunal.

- Por gentileza, meu forte Robustus, traga os acusados para mais perto de nós. – ordenou, serenamente, o chimpanzé por nome Símio.

O gorila prontamente atendeu ao chamado e, agarrando cada um dos homens com uma de suas mãos, trouxe-os a poucos metros dos cinco jurados.

Com a vítima sentada pouco atrás dos réus, o clima era tenso e o ambiente, silencioso. Sapiente, a águia Aládis iniciou a audiência:

Robustus, qual é a acusação?

Os filhos dos homens são acusados de assassinar o leão das montanhas africanas, cuja espécie não possui outro exemplar. - informou o gorila.

O agravante citado imediatamente perturbou outro jurado. O leão Felinus bramou enfurecido e, em seguida, gritou:

Símio, estes crápulas humanos exterminaram muito mais que uma vida: eles destruíram toda uma nação felina! Nunca mais haverá sombra dessa espécie! Nunca mais!

Em breves gestos e palavras, o chimpanzé pediu serenidade ao companheiro, para que o julgamento prosseguisse. A abelha Augusta preferiu ponderar:

- Senhores, não há julgamento sem defesa. É evidente que devemos ouvir os réus.

- Só posso não ter ouvido direito, companheira! Tu representas os insetos e todo santo dia, milhões, bilhões, trilhões dos seus são mortos pelos caprichos humanos, e tu estás querendo ouvir estes infames? - replicou, grosseiramente, Felinus.

O leão e a abelha entreolharam-se de modo mutuamente raivoso, enquanto Símio os repreendia:

- Senhores da Justiça, é plenamente compreensível a excitação que agora vejo, até porque é para deliberar que estamos aqui. No entanto, advirto que é, invariavelmente, nossa magna responsabilidade encontrar e aplicar uma louvável resolução para o problema que nos é apresentado pelo Altíssimo Criador. Portanto, é essencial que todos nos mantenhamos em serenidade.

A serpente Mamba, a última jurada a opiniar, enfim, rompeu o silêncio, que não lhe é próprio:

- Estive observando, quieta, até agora, o que não costumo fazer, mas após conselhos seus, Símio, resolvi pensar mais antes de agir. Até por tal postura, creio já ter concluído meu veredicto pessoal.

- Então, diga-nos! - antecipou-se o impaciente Felinus.

- Morte! - disse Mamba, altiva e pausadamente.

Os rostos dos humanos empalideceram em semblantes apavorados, enquanto a serpente lhes fitava, apresentando sua bifurcação lingual.

Um sobressalto conjunto atingiu os presentes, desde os réus, passando por Robustus, chegando até o júri, que rompeu o silêncio em burburinho. Abrindo bruscamente suas imponentes asas brancas, Aládis dirigiu-se à cobra:

Morte, Mamba?! Nunca, na história deste Tribunal, uma sentença de morte foi submetida à apreciação, tampouco deferida!

Não me parece prudente, Mamba; afinal, senhores jurados, eles não são os primeiros assassinos que são trazidos a julgamento. - disse Augusta.

Com o apoio da Soberana das Abelhas, a Magna Águia buscou a ajuda do Chimpanzé para repelir a proposta de dupla execução:

Símio, tu não vês a sandice que nossa irmã nos propõe?! Junte-se a nós, pois sei que manténs o equilíbrio em tuas decisões!

O Grande Leão, então, tentou persuadir o último jurado neutro, apresentando sua posição:

Ora, grande Símio, meu irmão de mama... Se é nossa função interferir pontualmente na história da Terra para purificá-la, faça-mos a partir do exemplo do Santo Cordeiro: derramemos sangue! Uma, duas mortes não farão falta à uma espécie que expande seu número com imensa rapidez!

O impasse estava gerado: a águia e a abelha pediam uma audiência detalhada e serena, enquanto o leão e a serpente se recusavam a ouvir os acusados e queriam a pena de morte. Então, envolto pela disputa capital que rachava o júri ao meio, Símio levantou-se e caminhou lentamente até o leão-do-atlas e, lançando seu olhar no fundo dos olhos do felino, perguntou:

E você, irmão, o que nos diz?

Deixando escorrer uma lágrima de seu olho amendoado, ele, trêmulo e acanhado, respondeu:

Bem, senhor, nunca imaginei que existissem seres como os senhores que nos protegem daqui de cima, então tudo o que está acontecendo agora é uma surpresa para mim. Mas, respondendo-lhe, perdoar meus assassinos é algo muito difícil...

Identificando a timidez do leão, Felinus interrompeu-o, tentando, com simpatia, ratificar o parecer da acusação:

Ora, meu irmão das selvas africanas, não se acanhe, por favor, pois sua opinião é essencial à essa audiência! Fale de uma vez, meu caro!

Encorajada, assim, pelo companheiro de espécie, a vítima ergueu a cabeça e desferiu:

Senhores, que estes humanos tenham, culpados, a punição que, sem mácula, sofri!

Que morram! - gritou Mamba, completando a fala anterior.

Fitando as juradas aladas, contrárias à severa pena, o Chimpanzé moveu a cabeça, de cima para baixo, em sinal de apoio ao veredicto. Aládis, mesmo sob as tentativas de Robustus de acalmá-la, se exaltou de imediato, pedindo aos gritos que a decisão fosse anulada. Enquanto o julgamento se encaminhava para o caos, Augusta, ao inverso de seu tamanho, teve uma atitude de enorme sabedoria: a abelha prostrou-se na relva e rogou a Deus por uma solução...

Pedras se partiram, o chão estremeceu e uma intensa luz branca surgiu dentre arbustos e árvores; em seguida, ao mesmo tempo que ela sumiu, surgiu um cachorro. Um pastor alemão, de pelagem amarelada e negra, investido de nobre postura, pôs-se logo a falar:

Justos senhores, venho, sob ordem do Excelso Criador, auxiliá-los a retornar ao caminho da verdade e da vida.

De súbito, Felinus torceu o celeste focinho e rebateu:

Quem és tu, canídeo, para aconselhar este júri?!

Sou o mais fiel dos animais, senhor. Sou, do homem, seu melhor amigo. - disse o cão.

Aládis, atônita, fitou Augusta, que sorria, e compreendeu o êxito no clamor da magna abelha. Antes que o Grande Leão emendasse uma réplica, o cão pastor ergueu seu vozeirão:

Senhores, estamos diante de uma oportunidade única na história dos séculos. Duas forças presentes no universo se confrontam nesse momento e nesse lugar, sem que nenhum presente se dê conta...

Quando ia revelar a tal dicotomia, a vítima, até então cabisbaixa, interrompeu o canino:

A Piedade e a Vingança. E eu as conheço muito bem.

Exatamente, irmão, tu as conheces deveras, pois viste e viveste num mundo onde elas se degladiam. E os senhores, com todo meu respeito, também as deviam saber, já que pelo mesmo flagelo passaram e igual caminho traçaram. - completou o cachorro.

Em fúria, Mamba bradou, substituindo o ausente dedo em riste, pela língua em frenéticos movimentos:

Insolência! Todo este júri foi divinamente selecionado pelo Rei dos Reis! Não somos meros animais mortos, senhor canino!

E como escolhidos celestiais, senhora, vosso primeiro dever é imitar, de modo integral, a personalidade do Salvador! - finalizou o cão.

E um poderoso silêncio invadiu o lugar. Nem um só ruído foi ouvido por minutos a fio. A relativa eternidade sonora foi rompida por Símio, até então calado e pensativo:

Você trouxe de volta a sabedoria a este Tribunal, irmão, eu reconheço; assim como reconheço, por todos os membros, nosso erro em sentenciar por vingança e não por justiça. E, assim, solicito aos meus companheiros uma nova solução para o caso.

Nesse instante, os réus humanos respiraram fundo, vendo a esperança ressurgir, enquanto o leão-do-atlas se punha confuso a entreolhar os jurados. Aládis, então, pediu a palavra, e a teve:

Meus irmãos, depois de horas exaustivas de debate e embate, quero oferecer minha mente como préstimo para o desfecho desta audiência. Se os réus trabalham pela morte, que trabalhem, ao recobrarem a consciência, pela vida.

Constrangidos e contrariados depois de defenderem a pena de morte, Felinus e a Grande Cobra mantinham-se silenciosos, enquanto Augusta sorria em júbilo, antes do Chimpanzé desferir:

Homens, ao retornarem à vossa realidade, deveis salvar vidas, promovendo ações constantes opostas ao assassinato cometido. Quando expirar vosso tempo na terra, enfim, se nossa sentença vós cumprirdes, receberão o galardão eterno. E, por este Tribunal e pelo nome do Deus Todo-Poderoso, digo: que assim seja!

Acordaram, então, os caçadores sobre a gélida relva africana, e sob a noite de céu estrelado. Somente com a ajuda das luzes astrais, a dupla pôs-se a sepultar o último leão-do-atlas, em sinal de admiração e respeito, e para que ninguém pudesse tomá-lo por troféu – nem eles mesmos –, evitando profanar o corpo. Na manhã seguinte, Charles Robinson e George Rendle embarcaram em um avião britânico de volta à Londres. E, já nas minha primeiras semanas, puseram-se a cumprir a ordem do Tribunal Celeste.

Sendo ambos empresários de sucesso em ramos distintos, fundaram a “R&R”, organização de defesa animal com foco especial em espécies africanas. Em pouco mais de um ano, estatísticas comprovaram uma queda vertiginosa nas caças esportivas e comerciais no norte da África. A fundação, como a dupla já esperava, foi tratada como uma afronta aos costumes ingleses, europeus e mundiais da época e, numa tarde fria e chuvosa de inverno, Robinson e Rendle foram assassinados a tiros durante uma emboscada, quando se dirigiam para uma falsa reunião com magnatas industriais. O plano para eliminá-los obteve sucesso também ao ser encoberto pela Scotland Yard, enquanto poderosos empresários da imprensa divulgaram o caso como sendo um acerto de contas entre organizações criminosas, da qual Charles e George fariam parte e utilizariam a causa animal para “lavar dinheiro”, destinado à proteção das espécies. Os herdeiros das vítimas nunca conseguiram justiça pelas mortes e a R&R foi confiscada pelo governo do Conde Stanley Baldwin, sem o conhecimento de Sua Majestade, o Rei Jorge V.

Depois do sacríficio terreno, os ex-caçadores chegaram às portas do Paraíso e lá foram recebidos pelo pastor alemão que advogou no Tribunal:

Bem-vindos à Casa do Pai, vós que obedecestes o preceito de Símio e do Augusto Tribunal!

Cá estamos, senhor! - responderam juntos, em extremo júbilo.

Antes que adentrassem os Dourados Portões da Glória, George quis sanar sua última dúvida:

Como tu te chamas, senhor?

Ora, Sr. Rendle, alguns de nós daqui de cima somos nomeados segundo uma virtude que possuímos e reprensentamos. Eu, enfim, me chamo Leal. - respondeu o doce espírito canino.

E, assim como desejava o Sagrado Coração do Criador, os assassinos do último leão-do-atlas se redimiram e foram perdoados, remidos e glorificados.

FIM

Rafael Otávio Modolo
Enviado por Rafael Otávio Modolo em 15/05/2011
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