A Escolha - Prelúdio
Lá estava eu.
Correndo por toda a extensão do parque, entre os brinquedos, pessoas e monstros numa velocidade incrível. As luzes psicodélicas piscavam nas estruturas dos brinquedos num misto de cores vibrantes que aumentavam a minha adrenalina. Eu olhava para trás e ainda via aquele ser horrível nos perseguir com passadas maiores que as nossas.
Ele era alto, estava com o rosto deformado e em decomposição, o que parecia ser sangue estava por todo seu corpo. Tinha asas negras e grandes olhos amarelados, seu dcorpo era musculoso e ele bufava ao mesmo tempo em que gritava algo incompreensível para nos fazer parar.
Marcela estava agarrada ao meu braço, dificultando nossa fuga. Não sei se era por ter os sentidos aguçados naquele momento, mas eu pude jurar que ouvia seu coração bater, mas talvez fosse o meu. Ela tremia, gritava e eu mandava o monstro parar de nos seguir numa tentativa ineficaz. Eu apenas sentia um medo incompreensível, instintivo, que se transfigurava em uma risada levemente afetada pelo desespero.
No instante eu não pude lembrar, mas agora me lembro bem. Estávamos nos beijando embaixo de um carvalho no centro do parque de diversões, bem ao lado da montanha russa. Tínhamos acabado de descer do brinquedo e nos curtíamos ali. A encostei no tronco e uni nossos corpos, num encaixe quase perfeito.
- Seu safado – ela disse com um sorriso malicioso.
Não respondi nada, apenas beijei-lhe o pescoço de maneira sensual, atiçando sua sensibilidade e foi quando ouvi o seu grito agudo. Ela me empurrou e eu pude olhar na mesma direção que ela. Por pouco eu não havia chocado no monstro que nos observava. Ele parecia um guarda roupa àquele momento e seus olhos amarelados em contraste com a pele negra me fez gritar de pavor. Como reflexo, comecei a correr com minha namorada de um extremo do parque ao outro.
Era uma sexta-feira 13. Uma lua vermelha brilhava num céu nublado, segundo o noticiário era uma estranha noite de eclipse lunar. Olhei para o céu e vi a lua que parecia manchada de sangue.
Foi uma ótima idéia do parque de diversões escolher como tema para esta noite “Monstros e Demônios”. Espalhar atores fantasiados da maneira mais real possível dos maiores temores dos mitos e filmes no parque e mandá-los assustar e perseguir os clientes fora um jogada de marketing genial.
Por mais que todos soubessem que fosse mentira, a adrenalina e um medo infantil que mais parecia um reflexo inconsciente fazia daquela noite uma réplica perfeita de um filme de terror. Estávamos naquela atmosfera, naquele clima, naquela esfera assustadora, onde éramos vitimas fáceis para as criaturas das trevas. Você sentia um misto da fantasia e realidade ao ver Freddy Krueger passar por você, ou Jason, ou Samara do Chamado. Sem falar nos mortos-vivos de “The Walking Dead” ou alguns outros seres das trevas.
Ainda correndo, vi as barracas que vendiam comida e outras bugigangas. Não pensei muito e ao ver uma tenda no fim da curva que nós tomamos, eu adentrei puxando Marcela. A tenda era como se fosse uma daquelas ocas dos índios americanos. Era um cone com cortinas azuis escuras cheias de bordados esotéricos. Dentro da tenda, sentada numa cadeira por trás de uma mesa coberta com um pano preto cheia de cristais e com um baralho de tarot, estava uma senhora com roupas ciganas. Ela tomou um susto quando nos viu entrar em sua tenda e ao ver-nos suados e com uma expressão de terror nos olhos, compreendeu o que havia acontecido.
- Está muito real não é?
Olhei pra trás e a vi com o queixo apoiado em ambas mãos.
- Está brincando? O cara nos seguiu desde a montanha russa!
- Ficar parado é a melhor medida a se tomar. Eles não podem te tocar. Está no contrato. Se você ficar parado - depois do susto, é claro! – eles vão embora.
Marcela e eu ainda olhávamos para fora por um pequeno espaço da cortina pra ver por onde o cara tinha ido.
- Ai amor! Quero ir embora!
- Relaxem, sentem-se e deixem-me ver a sorte do amor de vocês. Eles não podem vir pra esta parte comercial. Assustar aqui é motivo de demissão.
Marcela finalmente recuperou a respiração e a consciência e disse afobada:
- Somos evangélicos, não acreditamos nessa macumba.
A senhora sorriu e se levantou e foi até uma instante que tinha frascos com ervas e acendeu uma vareta de incenso.
- E no que você acredita, senhorita?
- Acredito no Deus Todo Poderoso e no seu filho ungido, Jesus Cristo.
- Hum...Eu também! Mas, você certamente já estudou geografia, sabe que a lua influencia as marés. E sabe que a Lua tem um grande poder magnético sobre as águas, não sabe?
A senhora preparou duas cadeiras e ficou de pé apenas nos mirando por trás da sua mesa. Ela era baixa, tinha roupas em cores brilhantes, cheias de lantejoulas. Seus cabelos eram grisalhos, sua pele enrugada da velhice, seus olhos eram serenos, cinzentos e um pouco desfocados, um sorriso amistoso e pronto! Estávamos na frente de uma charlatã como todas as outras, mas que conversava de maneira estranha
- Sim, claro que sei.
- Também creio que estudou biologia. E sabe que o corpo humano é composto por cerca de 70% de água.
- Sim, quase todas as nossas células são compostas de líquidos.
Marcela já estava confusa, irritada com toda aquela ladainha de conhecimentos do Ensino Fundamental. Eu olhava para a senhora e vez ou outra para a fresta. Não dei muita atenção a conversa, mas ouvia tudo.
- Pense bem, se a lua consegue, com suas mudanças de fase, fazer um copo de 300ml de água transbordar seu conteúdo, apenas com influência magnética. O que será que ela faz conosco que temos 70% de água em nossa composição?
- Já estudei sobre isso também. Ela altera nossos humores, em nós mulheres envolve a menstruação e etc... Mas aonde você quer chegar com isso.
- Em um ponto coeso que você se nega a ver. Se a lua, que não é um planeta nos causa esses feitos. O que dirá dos outros astros e planetas? Este é o fundamento físico da astrologia.. Que você não acredita, mas sabe por base de conhecimentos que existem. E agora lhe pergunto. Se nosso Deus Todo Poderoso nos deixou a Lua e os planetas com esse poder sobre nós e nos deu inspiração de ter um instrumento para perceber esta influencia. Não estaríamos negando uma benção dele, ao apenas fechar os olhos para mais uma vertente da verdade?
Parei pra pensar na lógica da mulher e fazia todo sentido. A astrologia do jornal nunca falhava nas suas previsões. Era algo muito vago que servia para todo mundo, mas ainda assim eu achava aquilo incrível.
- Isso é arte do inimigo! Não venha tentar me convencer a acreditar nessas magias negras. Vamos, Marcos. Como evangélicos, é uma ofensa a Deus permanecer aqui.
Marcela deu um giro que fez seus negros cabelos darem um salto no ar e puxou meu braço para fora da tenda.
- Hey! Fale por si só. – puxei meu braço, tinha me cansado do fanatismo dos evangélicos. A viagem de ônibus inteira de nosso bairro até o parque foi falando de suas paranóias contra as “coisas do mundo” e as ações do Inimigo. Como
– Eu não sou evangélico! Estava só freqüentando sua igreja por sua causa! Sou católico e você sabe disso!
- Deus não aprova isso de toda maneira! E sua igreja também não acredita nessas mandingas!
- Mas como esta senhora nos mostrou, ela sabe que existem.
- E o saber é ainda mais importante que o acreditar – disse a senhora – Sua fé é forte quando você deixa de crer que algo existe para saber que algo existe.
- Cale a boca, sua bruxa! E você! Fique ai e se perca em pecado!
Ela aumentou a voz e saiu em disparada. Eu apenas suspirei e voltei minha atenção para a senhora que me olhava aflita.
- Desculpe... Não quis causar essa discussão.
- Não se preocupe, já estava escrito nas estrelas ou sabe Deus onde. – rimos do comentário - Odeio fanáticos, e ela é uma deles. Desculpe-a também por chamá-la de bruxa.
A senhora me observou por um tempo, em silencio, o que me deixou constrangido.
- Não é uma ofensa pra mim. Mas obrigado pela preocupação. Posso fazer algo por você? Pra compensar o que causei?
- Não, não se preocupe com isso. E muito obrigado assim mesmo.
- Vamos! Eu insisto! Deixe-me tirar sua sorte!
E apontou para uma cadeira vazia. Eu sorri e fiz mais uma piada.
- Se tirar minha sorte, serei um cara azarado!
Ela deu uma gargalhada gostosa e complementou.
- Com este humor e sorriso, nada nem ninguém podem tirá-la de você. O sorriso e o bom humor são as melhores defesas contra qualquer feitiço ou influencia negativa.
Ela pegou o tarot e o embaralhou, dividiu em três, fez um monte único e abriu em leque para mim.
- Retire três cartas.
Relutante, estendi a mão e puxei uma a uma. Entreguei as cartas na outra mão ela que estava estirada para mim. Ela permaneceu de olhos fechados durante todo o processo, de repente os abriu e voltou para a mesa, onde se sentou, colocou o monte que sobrou de um lado e as cartas que eu escolhi numa fileira.
Ela virou a primeira, a segunda e por fim a terceira. Observou por um tempo aquelas imagens que até aquele momento não diziam nada pra mim. Fez uma cara de análise, de dúvida, uma cara estranha, um tanto fechada.
- Você tem O Imperador, O Carro e A Imperatriz. Isso quer dizer que...
Algo estranho começou a acontecer. A mulher a minha frente voltou-se depressa para as cartas e com uma voz e olhar estranho disse-me de uma só vez.
- Há tempos o Masculino e o Feminino se polarizam de lados oposto em você. Chegou a hora de encarar ambas as polaridades, harmonizá-las e escolher a sua verdadeira essência.
Ela voltou a postura normal e disse como se aquilo não tivesse acontecido.
- ... você terá uma escolha importante na sua vida sexual.
Eu estava atônito, assustado e me retrai todo na cadeira. Pra mim aquilo tudo era mais uma peça que o parque programara, ou pior, que a velhinha que eu tanto gostei tinha aplicado em mim.
- Isso não tem graça!
- É o que vejo. Você terá algo a descobrir e experimentar entre sua masculinidade e feminilidade interior até decidir-se.
- Eu falo daquela cena toda, você mesma disse que não se pode assustar os clientes aqui! Espera aí! Você quer dizer que vou virar gay?!
- Não necessariamente. Mas do que você está falando? Que cena?
- Vá para o inferno!
Sai em disparada para fora da tenda e nem sequer olhei para trás.