Orpheu PARTE III - O Réquiem de um Anjo
O Réquiem de Um anjo.
Os sons intensos de metal chocando-se ecoavam por todo o lugar. As faíscas plainavam pelo ar gélido da floresta branca, em contraste as gotas cristalinas que despencavam das pontas das folhas das árvores.
Urros ensurdecedores podiam ser ouvidos de muito longe, porém não existia nenhum ser vivo naquele lugar, não mais. Os únicos que tinham vida tentavam loucamente arrancar um do outro o ultimo suspiro.
Duas criaturas lutavam descontroladamente em um local já sem vidas humanas.
--Você conseguiu!— Berrou o anjo que exibia asas tão negras quanto à própria escuridão— Você finalmente conseguiu o que queria!
--Você não é digno do amor deles!—Declarou a outra criatura que se mostrava imponente enquanto esticava o máximo que podia suas elegantes asas brancas que se confundiam com a neve do lugar— Você é corrupto. O único culpado pela morte dela foi você e mais ninguém.
O choque das espadas gerou um estrondo que lançou toda a neve ao redor deles para longe, simulando uma pequena avalanche.
Orpheu sabia exatamente o que seu semelhante dizia. Se ele não violasse as regras a garota ainda estaria viva.
--Por ordem dele estou trazendo sua punição!— Afirmou a criatura, com um semblante que mesclava tristeza e fúria— Porque Orpheu? Porque meu irmão? Por que se apaixonou por aquela humana?
Orpheu perdendo a vontade de lutar foi absorvido pelo desespero. Imagens dos momentos que passara com sua amada preencheram sua cabeça, anestesiando sua dor por um momento.
--Somos seus guardiões! Nada mais do que isso! Não podemos interagir com eles, pois nossa existência subjuga a deles. Isso os faz morrerem e corrompem nossa essência, nos deixa impedidos de voltar. Logo você perderá sua sanidade e destruirá tudo que houver em seu caminho e eu não posso permitir isso!—declarava o anjo chorando de maneira sofrida.
Orpheu entorpecido pelas memórias de sua amante vislumbrou a seu semelhante com um ar conformado.
--Miguel, irmão meu! Por muitos anos, protegi a eles, por muitos anos invejei a eles, por muitos anos desejei ser como eles!—afirmou o anjo corrompido enquanto largava a empunhadura da espada e apalpava seu próprio peito—Eu finalmente pude alcançá-los! Eu não me arrependo de nada exceto de não poder morrer junto a ela, ou de poder encontrá-la em nosso lar.
Miguel olhava perplexo para a face de seu irmão ajoelhado frente a ele.
--Vale mesmo à pena trocar sua morada no céu, sua Imortalidade e sua própria existência em troca destes sentimentos meu irmão?—perguntou o anjo confuso.
Orpheu lhe respondeu apenas com um singelo movimento da cabeça unido a um sorriso modesto na face.
Miguel aproximou-se de seu irmão enquanto se lamentava e mirou a ponta da lâmina em direção ao peito de Orpheu, empalando seu próprio irmão em meio a lágrimas infinitas e o completo desespero estampado em seu rosto.
Ao sentir aquela arma celeste lhe atravessar a carne, os ossos e a alma corrompida, Orpheu teve, por um segundo, um alivio avassalador, que o envolvera de tal forma que o manteve extasiado mesmo em sua morte.
À medida que ia perdendo suas forças, ele pode sentir quentes, finos e delicados braços circulando seu corpo, fazendo sua dor desaparecer, e uma felicidade gigantesca invadir seu corpo ao ver aquele rosto tão familiar de sua amada.
--Sou extremamente sortudo!—afirmou ele em sussurros— Pude vê-la como humana, e agora como um anjo. Como se sente Karen?
A bela jovem agora de asas pareceu perplexa com aquela pergunta.
--Espero que se cuide melhor desta vez, pois não posso lhe dar minha vida outra vez— comentou Orpheu.
--Você fez isso por mim?—perguntou surpresa — Você me prometeu que me encontraria em sua morada, então porque eu que estou aqui.
--Anjos corrompidos, não podem voltar ao céu!—respondeu Miguel a seco.
--Mas, porque você fez isso Orpheu?—perguntava ela em desespero.
-- Você disse que adoraria ser como eu! Então eu concedi esse desejo.
Karen olhou para seu amado que cada vez mais perdia suas forças em silêncio e com lágrimas nos olhos, o beijou uma ultima vez.
--Obrigada!
Miguel assistia seu irmão morrer, impotente.
-- Irmão! Fico contente que tenha sido você tomar minha vida! De agora em diante, cuide dela para mim!
Um som intenso e calmante percorreu os ouvidos de Orpheu, lançando-lhe aos tímpanos uma harmoniosa melodia enquanto o vazio instantâneo preenchia os seus olhos.
--Um Réquiem apropriado!— declarou o anjo corrupto.
Seu corpo tornou-se imóvel enquanto se mantinha repousado sobre o colo de Karen que, assim como Miguel, desmoronava em pranto.
Olhando serenamente para o corpo que aos poucos desaparecia como poeira em meio à alva neve, Miguel ergueu-se rapidamente, lançando um olhar serio para Karen.
--Ele sabia que seu destino era morrer! Ele sabia disso desde o momento em que lhe tocou os lábios pela primeira vez! Ele deu a você a chance de entrar em nosso reino para que você continuasse a viver por ambos e eu tenho que aceitar isso. Só lhe peço para que não desperdice a vida que ele lhe deu!
Com um olhar contrariado, o anjo guerreiro esticou suas asas e com um potente impulso alçou voou para alem das longínquas nuvens brancas.
Karen respirando fundo aquele ar gélido, que já não lhe fazia efeito algum, segurou em meio a suspiros a lâmina que era usada por seu amado, e olhando para o vazio, relembrou de todos os lindos momentos que ela vivera junto a ele, quando ainda era humana. Seguindo o mesmo movimento de Miguel, Karen, ascendeu aos céus rapidamente desaparecendo sem deixar vestígios.
Tudo que se ouvia era nada além do singelo som do vento forte percorrendo floresta adentro.