Triste Relato da Medusa

Meu nome é Medusa e quero lhe contar um pouco da minha vida. Aposto que você me pergunta, surpreso: “Medusa? Da Mitologia grega?” A resposta é: “Sim”. A maioria das pessoas pensa que tudo não passou uma mera lenda mitológica. Algumas histórias não passam de lendas, sim. Mas boa parte delas foi inspirada em fatos reais. E a minha história é uma delas. Imagino que você deve estar pensando algo assim: “Se eu sou a verdadeira Medusa, então devo ter mais de mil anos de vida, não é? Que eu sou imortal?” Bom, infelizmente, sim! Sou imortal, e não há nada no mundo que possa me ajudar a tornar-me uma criatura normal, como você. É um fardo que terei de carregar até o fim do mundo. Sinto-me uma enorme tristeza e inconformo pelos erros do passado. Vou lhe contar minha história.

Há seis mil anos atrás, na região do Oriente Médio, havia um jardim verdejante, de inigualável beleza. As árvores frondosas e exuberantes que lá existiam davam os mais saborosos frutos. Por este jardim passava um caudaloso rio, que nascia no Éden e se dividia em quatros braços. O primeiro deles era o Rio Pison, que contornava toda a região de Evillat, pródiga em ouro e ricas jazidas minerais, como as de quartzo, que, tocado pelo raio de sol, reluzia lindamente . O segundo era o Gneon, cujas margens abrigavam as mais belas papoulas vermelhas, uma paisagem tão linda que parecia uma pintura onírica e multicor. O Rio Tigre era a terceira ramificação; corria pelo Oriente da Assíria. E o quarto, Eufrates, possuía magníficas rochas submersas e abrigava peixes de todas as espécies, que nadavam sempre a favor do curso das águas. No centro do jardim, duas árvores se destacavam, distinguindo-se de todas as outras: a Árvore da Vida e a Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Esta última não podia ser tocada. Deus avisou que seus frutos eram proibidos e ordenou que dela não se fizesse uso.

Quando Deus criou o homem, a partir do barro, soprou em suas narinas, dando-lhe o fôlego da vida e uma alma vivente. Chamou sua criatura de Adão. Observando Adão a percorrer o jardim, saborear suas frutas, banhar-se no rio, conviver pacificamente com os animais, viu que ele estava muito sozinho, que sua vida não progredia. Então, um dia, quando Adão dormia, Deus me criou, a partir do barro e dos excrementos, para ser inferior, submissa e obediente ao homem. E, ao soprar em minhas narinas para me dar uma alma vivente, chamou-me de Lilith. Quando abri os olhos e vi o mundo pela primeira vez, achei tudo exuberante e lindo. Olhei para o meu companheiro. Ele me fitava maravilhado. Neste momento, ouvimos uma voz que vinha do céu, uma voz forte e poderosa como um trovão. Era a voz de Deus a nos dizer que deveríamos consumar nossa união carnal e procriar. Temerosos, obedecemos à Sua vontade. E assim nos unimos, tornamo-nos uma única carne. Adão me mostrou todo o paraíso e os animais, que ele acabara de nomear. Ao chegar perto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, aconselhou-me:

“Come os frutos de todas as árvores do paraíso, mas não comas do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, porque no dia em que comeres dele, morrerás indubitavelmente.”

Perguntei-lhe quem havia lhe dito que o fruto era proibido, e ele me respondeu que fora Deus que ordenara que ninguém comesse daquele fruto. E assim nos mantivemos, sempre afastados da árvore proibida. A vida, para nós dois, foi maravilhosa, por um longo tempo.

Mas, com o passar dos dias, passei a ficar insatisfeita quando Adão fazia amor comigo. Não me conformava de ter que suportar sempre o peso de meu companheiro sobre o meu corpo. Queria mudar a posição, queria amar de outras formas, mas ele se recusava, pois tinha uma ordem a cumprir e não queria contrariar a vontade de Deus. Por vários dias, tentei e tentei, mas meu desejo nunca foi atendido por Adão. E, a partir daquele momento, eu me rebelei. Falei a Adão:

“Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Por que devo ser dominada por ti? Afinal, eu também fui feita de pó, e por isso sou tua igual.”

Tentei convencê-lo de todas as maneiras, mas de nada adiantou. Todo o prazer se findou e eu me afastei, lançando-lhe um olhar de fúria. Briguei com Adão e, em seguida, blasfemei contra Deus, por ter me criado inferior a ele. Estava possessa, inconformada. Adão tentou me acalmar, mas eu o amaldiçoei e fugi para longe dele. Escondi-me no alto de uma árvore, perto do Rio Eufrates. Adão procurava por mim aflito. Chamava meu nome, implorava para que eu voltasse e cumprisse, com ele, a vontade de Deus. Mas eu já não queria fazer qualquer coisa com ele. Não aceitava ser submissa nem inferior. Queria a igualdade. Queria poder fazer minhas próprias escolhas, satisfazer meus desejos. Mas Adão nunca me aceitaria desta maneira.

Caiu a noite e, ainda sentada no alto da árvore, via meu companheiro perambular pela margem do rio, completamente arrasado. Vi quando olhou para o céu estrelado e falou comovido:

“Deus, meu Senhor, em meu leito, pela noite, procurei o amor da minha alma e não encontrei.”

E pôs-se a chorar, desgostoso da vida. Depois de lamuriar-se e reclamar com Deus a falta da companheira, afastou-se do rio, deitou sob a árvore e adormeceu.

Naquela mesma noite, três anjos desceram do céu e vieram ao meu encontro. Tentaram convencer-me a voltar para Adão, mas e eu me recusei. Só que eu estava grávida e não sabia. Um dos anjos alertou-me dizendo que, se eu não voltasse para meu companheiro, perderia para sempre o filho que eu trazia em meu útero; que Deus não haveria de permitir o nascimento de uma criança sem a união do homem com sua mulher. E eu, ainda tomada pela fúria demoníaca que sentia, não só ignorei seu aviso com também zombei deles. Então, um outro anjo lançou uma espada de luz, que atingiu o meu ventre e me derrubou da árvore. Ao cair no chão, com o corpo contorcido, senti um vazio em meu útero. Haviam tirado minha criança, e eu nunca mais voltaria a ter um filho na vida. Fiquei ainda mais revoltada e pus-me a xingar aqueles anjos com toda a minha fúria. Mas eles desapareceram nas alturas, voltando ao seu Criador.

E, quando o sol raiou, ouvi a voz radiante de meu companheiro. Perguntei-me o porquê de tanta alegria, já que ele não teria mais nada de mim. Intrigada, atravessei as matas sorrateiramente e me escondi atrás da Árvore da Ciência do Bem e do Mal para observá-lo. Para meu desgosto, vi uma outra companheira ao lado de Adão. Ouvi-o chamar-lhe de Eva. Era uma mulher muito bonita, muito mais do que eu. Além disso, era bondosa, obediente e não reclamava da maneira com que ele a amava. Ela o aceitava, impor suas vontades, e repetia muitas vezes que o amava muito. E eu, tomada pela fúria do ciúme, recusava-me a admitir que ele tivesse uma outra companheira. Com a mente totalmente dominada por pensamentos negativos e pela loucura, arquitetei um plano para acabar com a felicidade dos dois. Desejava, com todas as forças, expulsá-los daquele paraíso. Queria viver sozinha no meu jardim, somente eu e mais ninguém. De repente, ouvi um silvo que vinha do alto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Era uma serpente de cor verde esmeralda, que parecia ter brilho próprio. Descia por entre os galhos e vinha na minha direção. Sorrindo e olhando fixamente para mim, perguntou-me o que eu desejava. E eu, sem hesitar, respondi que desejava que a felicidade de Adão e de Eva desaparecesse. A serpente afirmou que meu desejo seria realizado em breve. “Atenda ao meu desejo e eu lhe serei eternamente grata”, disse à serpente e voltei para a minha árvore, à beira do rio Eufrates, pensando no grande momento em que veria o fim da felicidade dos dois.

E esse dia chegou. A mulher, Eva, foi atraída para a árvore da Ciência pela serpente, que disse a ela que seu fruto era bom e saboroso. A princípio, Eva hesitou, mas a serpente insistiu tanto que ela acabou caindo em tentação. Ao morder o fruto proibido, Adão apareceu para impedi-la, mas já era tarde demais. Eva lhe disse que o fruto da árvore era uma delícia, que nunca provara outro igual. Adão hesitou, mas Eva, influenciada pela força da serpente, o seduziu com olhares sensuais e voz de veludo. E também ele caiu em tentação. Mordeu a maçã. Depois disso, Adão e Eva passaram a se olhar de um jeito diferente. Pela primeira vez, perceberam que estavam nus. Envergonhados, correram para as matas e pegaram algumas folhas de parreira espalhadas pelo chão para cobrir sua nudez. Eu sorria maliciosamente de tudo aquilo. Aguardei o retorno do Senhor para julgá-los por terem tocado no fruto proibido. Então, o céu escureceu, a terra tremeu e surgiram relâmpagos que assustaram tanto a mim quanto a Adão e Eva. Estática, vi uma imensa bola, nebulosa e branca, descer por meio das nuvens negras, que se clareavam a cada relâmpago.

- Adão, onde estás? – perguntou a voz, tonitruante e poderosa – Por que comeste do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal?

Adão saiu das matas e foi em Sua direção.

- A mulher que me destes como companheira ofereceu-me o fruto proibido e o comi – respondeu Adão.

- Eva, por que fizeste isto?- Deus perguntou, irado.

- Perdoai-me, Senhor. A serpente me enganou - Eva respondeu com lágrimas.

Ao ouvirem-No ordenar que se retirassem daquele jardim, saíram cabisbaixos e amedrontados. Arrependidos e desgostosos, partiram para uma região árida e inóspita, onde foram obrigados a trabalhar com dureza e viver na miséria, tendo a morte como o preço pelo seu pecado. Eu ria triunfantemente. Meu desejo havia se concretizado. Mas toda a minha alegria se foi quando Deus, sob a forma de uma esfera luminosa, se manifestou próximo à Árvore da Ciência e condenou a serpente, lançando sobre ela a sua espada de fogo. As chamas dominaram seu corpo até transformá-la em pó. Temendo que Deus me julgasse por ser cúmplice da serpente, e também me desse um fim, da mesma forma que fizera com a serpente, eu fugi correndo. Mas a bola, imensa e poderosa, parou na minha frente e começou a se transformar em chamas diante dos meus olhos. Amedrontada, caí de joelhos e implorei Seu perdão pelos pecados cometidos.

- Serás amaldiçoada sobre a Terra. Farei de ti uma aberração, como castigo à sua iniqüidade.

- Sim, Senhor. Expulsai-me desta terra e fazei com que todos, homens e animais, venham a me abominar pelo que Vos fiz e me matem. Eu Vos desagradei – dizia, assustada.

- Não será assim. Tu viverás até o final dos tempos, até chegar a hora do meu julgamento final.

E, quando a bola de fogo aumentou sua intensidade, senti uma onda de calor se irradiar. Mas ela não me queimava. Ao invés disso, fez meus cabelos caírem como folhas de árvore que se desprendem no Outono. E serpentes começaram a brotar da minha cabeça, mexendo-se e silvando.

- Eu, o Senhor Deus Todo-Poderoso, Criador de todas as coisas, dei poderes a teus olhos. A partir de agora, quem ousar olhar para ti, será transformado em pedra.

Em seguida, Deus ascendeu aos céus e desapareceu entre as nuvens. Eu me sentia estranha, com aqueles répteis se movimentando pela minha cabeça. Apavorada, caminhei até o Rio Genon, onde havia as lindas papoulas perfumadas, e me vi no reflexo das águas. Havia me transformado em uma aberração da natureza. Berrei e chorei copiosamente, às margens do rio.

E, a partir daquele dia, muitas coisas aconteceram com o passar das décadas. O jardim do Éden fora dizimado pelo fogo enviado por um anjo do Senhor, que decidiu que nenhum humano teria o direito de desfrutar do paraíso, em razão do pecado original. Os animais, que viviam em harmonia, tornaram-se inimigos mortais e foram separados em territórios diferentes. Testemunhei o triste fim de Abel, morto pelo irmão Caim, que também acabou expulso. Isolei-me numa terra distante, após o grande dilúvio, pois Deus não permitiu que eu morresse. Condenou-me a viver até o final dos tempos. Fui tragada pelas águas que me levaram para o Mar Mediterrâneo, na Grécia, onde vivi solitária numa caverna em frente ao mar.

Sempre acompanhada de minha solidão, vaguei pelo mundo afora e pela interminável estrada do tempo. Testemunhei as empreitadas do jovem Alexandre, o Grande para dominar o mundo. Três de seus soldados encontraram-me casualmente. Chamei sua atenção por ser bela e jovem, e pelas minhas vestes gregas. Usava sempre um capuz para cobrir a cabeça, de modo a esconder as serpentes. Os guerreiros, tomados por seus instintos selvagens, tentaram me agarrar. Mas, quando olharam em meus olhos, em questão de minutos, transformaram-se em estátuas de pedra. Mais uma vez, tive de fugir para longe, o mais longe possível.

Séculos se passaram, quando , num final de tarde, percorria as ruas de Jerusalém, vestida com um longo manto negro, e um capuz sempre a cobrir minha cabeça. No meio da multidão, ouvi um homem gritar, causando tumulto na cidade. Devia ter aproximadamente 33 anos. Com um cajado na mão, derrubava as mesas dos vendilhões, espalhando todas as suas mercadorias. Por fim, soltou todas as pombas e disse que Jerusalém era um lugar para orar, e não para se depravar em nome de Deus. Enfurecido com aquela atitude dos homens materialistas, passou por mim agitado e, sem querer, me deu um empurrão. Eu quase caía ao chão, quando um de seus braços agarrou minha mão direita e me equilibrou. Quando ele olhou em meus olhos, assustei-me pensando que seria transformado em pedra, diante dos olhos da multidão. Mas não foi o que aconteceu. Ainda humano e inatingível, continuava a me olhar fixamente, sem qualquer transformação. Ele me reconhecera. E eu, inspirada por alguma força sobrenatural, soube, de imediato, quem era Ele.

– Tu és amaldiçoada por teu passado. Contrariaste a vontade de Deus!

– Se é o que dizeis, Senhor... – respondi.

– Não voltes a contrariar a vontade do Senhor, sê uma alma bondosa – aconselhou-me.

– Eu tentarei! Obrigada, Senhor!

Baixei os olhos, envergonhada de meu passado. Chorei muito, depois, ao assistir à dolorosa crucificação daquele abençoado homem, que morreu injustamente na cruz por ter pregado o amor. O céu escureceu e a Terra tremeu, exatamente como no dia em que Adão e Eva experimentaram do fruto proibido no Jardim do Éden. O nome Dele ficaria inscrito para sempre na minha memória e no meu coração: Jesus Cristo, o maior de todos os profetas.

Se não fosse por aquele iluminado ser, que mudou toda a minha vida, nunca veria o mundo da forma como vejo hoje. A partir de então, passei a percorrer, sempre escondida, várias partes do mundo e da História. No início da Guerra do Vietnã, fui descoberta pelo antigo dono do circo. Eu me banhava no rio, sob luar e ele me contemplava. Teve a sorte de não se transformar em pedra, por me ver apenas de costas. Ao sentir sua presença, avisei-lhe do perigo que corriam todos aqueles que me olhassem nos olhos. Ele agradeceu-me pelo alerta e respondeu que eu não me preocupasse, pois mandaria fazer óculos especiais para mim, desde que eu aceitasse trabalhar para ele. Teria um trailer para morada e viajaria muito. Percorreria as cidades, exibindo em seu circo a minha beleza descomunal em contraste com as serpentes em minha cabeça. Deveria dizer ao público que nasci do ventre de uma serpente exótica. Obviamente, as pessoas não acreditariam nisso e concluiriam que tudo não passava de truques e maquiagens. Melhor mesmo que não suspeitem das minhas origens. Quanto menos se souber a meu respeito, melhor será para todos.

Agora você conhece a minha verdadeira história. Preciso terminar por aqui, porque eu preciso me preparar para ir ao meu show de aberrações. Apareça por lá se quiser me conhecer. Muito obrigada pela sua atenção e te vejo por ai.

Dênis Lenzi
Enviado por Dênis Lenzi em 12/05/2011
Reeditado em 15/05/2011
Código do texto: T2965590
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