Abedula – Os crimes sexuais
* Da série ABEDULA
** Leia outros causos do árabe
Dizem alguns esotéricos que na vida nada acontece por acaso e Abedula era um adepto desse lema antigo. Foi assim que recebeu os amigos que tinham já como um hábito quase religioso visitar a loja do árabe, consagrada como um ponto de encontros de Uruguaiana. Era final de tarde e eles vinham acompanhados de um homem cuja fisionomia era estranha e Abedula ao ser indagado se conhecia o visitante, respondeu à sua melhor maneira, ou seja , com um antigo provérbio árabe :
- “Quem responde com pressa raramente acerta” ...
A resposta mereceu risadas de reconhecimento ao estilo sempre espirituoso do velho árabe. Seu visitante era o Delegado Dadeu, que havia sido deslocado para Uruguaiana junto com uma equipe de investigadores enviados pela Chefia da Polícia Civil a fim de investigar uma série de crimes sexuais que vinham preocupando e se repetindo perigosamente em toda a região da fronteira com a Argentina.
Em verdade já havia se tornado uma espécie de tradição que os amigos de Abedula levassem visitantes para conhecer aquele que havia se transformado numa lenda viva da cidade – um símbolo dos comerciantes – e acima de tudo um ser folclórico. Quem passava por Uruguaiana sem conhecer Abedula, certamente ia embora com um vazio, e não obstante já com a idade avançada o homem ainda continuava a despertar a atenção de seus interlocutores, sempre disparando frases de efeito e emitindo opiniões surpreendentes.
O Delegado Dadeu havia sido escalado como chefe da equipe de policiais – denominada “Força Tarefa” – que tinha como objetivo identificar a ação de um possível “tarado” que vinha atacando as mulheres , sobretudo nos bairros mais isolados da cidade, onde o maníaco anônimo implantara o pavor e o medo.
Diz a lenda que não se salvavam nem mesmo senhoras mais idosas, contudo , os crimes só vieram à tona após uma moça solteira ter efetuado o registro da ocorrência acompanhada de outras duas mulheres que se encorajaram com sua determinação. Depois foram surgindo dezenas de vítimas.
Naquela época havia sido noticiada a ação no lado argentino da fronteira de diversos tarados conhecidos como “Homens Cruzeira” , assim rotulados em referência à cobra Cruzeira – um ofídio peçonhento – cuja periculosidade não reside apenas no poderoso veneno capaz de matar em minutos, mas também pelo fato de que o animal costuma devorar suas próprias crias para saciar a fome .
A referência aos “homens cruzeira” era feita em função dos estupros praticados por pais contra suas próprias filhas . Diziam as más línguas que no lado argentino da fronteira havia uma alta incidência de incestos , ou seja , filhos gerados pelos próprios pais nas filhas estupradas.
Como a lavoura de arroz estava vivendo um apogeu era comum a contratação de trabalhadores diaristas vindos do outro lado da fronteira , de modo que logo começaram a surgir as teorias de que o “tarado” que agia no lado brasileiro poderia ser um desses argentinos.
Se brigas de vizinhos são comuns em todas as gerações, é certo dizer que quando os vizinhos são de nacionalidades diferentes, a coisa sempre ganha ares ainda mais poluídos . . .
Abedula que além do moralismo comum à cultura árabe no que toca às questões sexuais já estava velho e, portanto, com a idade, consolidava ainda mais suas convicções de reprovação aos crimes sexuais, sobretudo quando praticados por pessoas próximas – contaminado que estava pela turba dos boatos acerca dos “hermanos” argentinos.
Depois de receber os amigos e ter apresentada a figura do Delegado Dadeu, já com alguns cálices de licor de gengibre distribuídos entre todos, disparou um outro antigo Provérbio árabe, que resumia seu pensamento sobre os crimes sexuais dos “homens cruzeira” . Disse o árabe:
- "A árvore quando está sendo cortada, observa com tristeza que o cabo do machado é de madeira."
Mas desde os remotos tempos em que Abedula era ainda um jovem imigrante havia se constituído em tradição que , pelo menos um dos participantes da confraria, tinha que “provocar” o árabe para que ele desse seus hilários discursos de intransigente defesa da cultura oriental, o que sempre divertia muito ao grupo e atraía para o contexto citações e episódios inusitados .
A presença do Delegado Dadeu fez com que um outro velho membro da confraria lançasse a frase provocativa:
- “Pois é Abedula, se fosse lá no Oriente Médio, esse bandido já estaria capado ou apedrejado em praça pública” ...
Abedula, como convém, ao temperamento sempre cálido dos árabes reagiu prontamente:
- “ Não é bem assim, seu ‘brovocador’ , no Oriente não existem essas coisas, ‘borque’ lá ‘resbeitam’ as famílias .
Na réplica o provocador , que já era quase um pós-graduado na arte de enfurecer o “turco” disse:
- “ mas que respeito é esse Abedula, se lá permitem que os homens tenham várias mulheres’?!
Mas Abedula não se acorvadou e retrucou:
- “ Nada disso seu “balhaço” , lá “bode” casar se “bode” sustentar mais de uma “esbosa” , mas tudo no “babel bassado”, aqui na América os homens tem uma “esbosa no babel” e duas ou três amantes escondidas ...”
O árabe não se dava por vencido e disparava frases defendendo a moral oriental. O islamismo prescreve o apedrejamento de adúlteros. O casamento e o divórcio são ações extremamente liberadas e fáceis, o que significa dizer que não existe nenhuma desculpa para a traição sexual e todo o sofrimento e a humilhação que ela acarreta. E tem mais, dizia Abedula :
- “ A bunição é idêntica para ambos os sexos” .
Então o Delegado Dadeu ,já mergulhado no ambiente e no debate , encorajou-se e perguntou a Abedula :
- “ Isso quer dizer que um estuprador tem seu pênis extirpado”?
- “Claro, respondeu Abedula” !
Mas logo um outro membro antigo da confraria atravessou a conversa e bradou;
-“ embora nunca tenha ninguém sido capado, só matam a pedradas as mulheres ...”
Evidentemente que nesse ponto Abedula já havia perdido a paciência,dizendo:
– “Seu ignorante nem sabe dizer a palavra certa – não é ‘abedrejamento’ , é labidação (lapidação) – encerrando-se a reunião com muitas gargalhadas.
Pouco tempo depois, e após haver prendido o “tarado”, logrando êxito total na diligência, o Delegado Dadeu retornou à Loja de Abedula para se despedir dizendo que levaria consigo preciosas lições sobre a cultura árabe e a visão oriental sobre os crimes sexuais . Por uma questão de justiça foi logo dizendo que o elemento era brasileiro, de modo a elidir os comentários maldosos sobre os “homens cruzeira” do lado argentino.
Antes de sair recebeu de Abedula um pacote de papel com um “chanclich” enrolado e a recomendação do simpático patrício :
- “é um queijo árabe, ‘bara’ comer com ‘bão’ e óleo de oliva “ ....