TUDO É CARNAVAL*

Devaneios sugeridos, ao som de uma música, tomando cervejas, mastigando amendoins. A noite solta, ambiente agitado, os olhos ao derredor colhendo, atrevido, cenas a compor um cenário. Detalhes se avolumando nos refolhos da mente, como protagonistas, superlativando miudezas. No sufoco do mormaço, mesa repleta de garrafas, ócio curtido em divagações.

Malícias sensuais nas ancas morenas, roliças, matreiras, das sambistas na malemolência dos passos, ritmados...

Alheio, deserto, perdido, sortido como bala em baleiro colorido. Alternando goles, salivando sementes, as devorando ávido, voraz, insaciável, como se tivesse degustando um manjar dos deuses, absorto em suas elucubrações. Sensação multiforme, distante, inconstante, insana, incendiado e acalmado nos 4% etílico dos 600 ml de cada garrafa.

.Ria-se consigo mesmo de suas conclusões metafóricas, ilhado em sua solidão no meio de toda aquela gente agitada. A mente em rodopios, curtindo de forma diferente aquela situação, como se visitasse a si mesmo em sentimentos. Achava-se, entre um gole e outro, compenetrado e alheio, ou talvez vendo com os olhos da alma. Parecia que todos cobravam sorrisos, como máscaras, carantonhas risonhas tão aceitas no trivial das formalidades, afinal, tudo era festa.

Se não fosse chamar a atenção, e a iluminação ajudasse, pediria um papel para rascunhar suas impressões, os sentidos voam de ambientes em momentos, despertados por sensações e motivos...um cheiro no ar, uma palavra, instantes remontam a outros na memória destravada. Pronto, sentia-se ausente, embora sentado ali, no rebuliço dos foliões, vagando em reminiscências, indiferente à algaravia da paisagem. Inspiração, inoportuna visita, expressando distância a alguém que o olhasse, ensimesmado, em íntimos mergulhos, embrenhado em suas cogitações. Levado de inopino a outras imagens, corpo fixo, a alma sumindo...

O sentir de agora, doía no corpo, magoando a alma. Por onde andará a mente, liberta das contingências, na intimidade de cada um ? Quem garantiria de que muitos não estariam distantes, embora aparentemente presentes naqueles momentos?. Besteira, atalhava consigo mesmo, isso era coisa de maluco como ele, a tentar enxergar tudo por outros prismas, enevoados e enigmáticos. Antes produto de suas retinas atrevidas, enxerido nas vidas de entes semelhantes, sempre buscando algo além da aparência visível a todos. Exercícios feitos da janela , visualizando figuras, descortinando suas reações nas suas lidas cotidianas a ocupá-las. Nas calçadas, passos rápidos, cada qual enfurnado em si, vidas que se encontram, rentes, indiferentes, histórias diversas, sempre perdidos nas pressas. Formigas em formigueiro, viventes no mesmo solo, viajantes no mesmo tempo, solitários nas mesmas companhias, transeuntes de momentos. Em cada cabeça, universos condensados, identidades transcendentes, contemporâneos na jornada, estranhos conhecidos...

Assim, dando asas aos pensamentos, tirava suas conclusões, inescrutáveis a terceiros: " bailamos com nossas imagens, arsenal de disfarces e ritos, assim nos apresentamos. Celebramos as cerimônias, em mesuras programadas, em risos previsíveis. E diante a nós, à sós, maquiagem retirada, cara limpa, lavada, sem fugas, artifícios, ausentes de neons e frenesis artificiais, somente o íntimo...desnudo, implacável, ainda assim podemos fugir, nos anestesiar, rir, dançar, cantar, acreditar na fugaz alegria, e embriagados ressonarmos, como crianças crescidas. Porém, se insistirmos, arriscarmos nas dores das incursões íntimas, nos conheceremos tal como somos, nos apresentaremos a nós mesmos"...

Detida a atenção sobre um casal que tentava uns passos, inapropriados ao clima carnavalesco, pois pareciam dançar um tango... boteco atulhado, freqüentadores já embalados nos teores alcoólicos, volteios na contra dança, um mulato e sua parceira, ensaiando em trejeitos bizarros, o som aumentando, incomodando, casal em performances ousadas, naquela maravilhada plateia, extasiada pelo álcool e a música.

Trôpegos dançarinos, luz amarelada, fosca, ar nauseante de fumaça... na noite deslizante, tépida e tranqüila, a mente acompanha. De repente, descortina-se na imaginação outro inusitado cenário, em amplo salão , orquestra e pares engalanados, suaves adornos em seresta, seleções melodiosas, acordes de fina festa, aromas de jardins em primavera... Peça que nos prega as viagens doidivanas da mente, encanto dissolvido, desentendimentos, paz interrompida. Botequim sufocante, antro oculto na praça, só mesmo mais uma cerveja gelada a compensar o incômodo, nada que perturbasse as averiguações daquela personagem atenta e discreta em seu universo pessoal.

Incendiando as ruas adjacentes um tropel de alegre arruaça, bloco de inveterados foliões, fantasiados e coloridos, desfilando nas suas alegorias, convidando a todos aos frenesis eufóricos das marchinhas...

Na silenciosa análise daquele observador singular, parecendo a tudo assistir interessado, suas observações, se pronunciadas, não fariam sentido àquele deslumbrado público "...o cordão do desespero, enfileram-se atormentados, choram, riem-se de suas desditas. No bloco dos felizes ou ingênuos, navegantes em mares plácidos, crenças cegas e filosofias leves. De entremeio, entre os dois grupos, os anestesiados pela euforia e os dementados pela realidade, oscilante, entre eles, em busca por tênue lucidez, seguem os analíticos, inebriados nas fantasias dos eufóricos e identificados nas angústias dos sofridos"...

Levantava-se, já trôpego, o filósofo solitário, ruminando suas teorias, levando consigo suas impressões, como um cronista da vida, ganhando as calçadas...

* Publicado na antologia de contos: Quem Vai Tirar o Morto?, janeiro de 2016, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ.