Cuspindo fogo

Quando eu era jovem, eu gostava de sonhar. Só que, enquanto eu sonhava, cuspia fogo, mantendo todos afastados de mim. Nos raros momentos em que estava desperto, eu perguntava o porquê da minha solidão, mas não encontrava resposta alguma.

Tudo começou quando eu era uma criança, despertando para a vida. Nessa época eu ainda não cuspia fogo enquanto sonhava. Foi nessa época que conhecia a perversa princesa do fogo, que tinha o poder de transformar o coração das pessoas em cinzas. A verdade é que eu me apaixonei por ela, sem saber que ela iria queimar meu coração, e eu nem perceberia isso. Passei algum tempo visitando-a diariamente no reino do fogo. O caminho era longo, e eu tinha que sair escondido para que meus amos não sentissem minha falta. Pegava o trem da Ferrovia do Conde, a qual eu percorria inteira, para chegar ao meu destino.

Com o tempo, a princesa começou a se ausentar com mais frequência, mas eu não me importava com isso. Na minha cabeça, eu tinha certeza que ela vinha ocupando-se de seus deveres reais. Até que um dia ela não quis mais me ver... Passei semanas me martirizando com aquilo, sem saber exatamente o porquê. Um dia, estava eu a caminhar por uma rua escura quando um velho sábio veio puxar assunto. Ele me disse que a princesa queimara meu coração, e que todo o amor e o ódio que eu sentia estavam espalhados junto com as cinzas, e que eu me tornaria um ser apático, até o dia em que sentisse amor e ódio suficientes para que as cinzas voltassem a ser meu coração.

Desde esse dia, comecei a sonhar. Eu tinha sonhos onde eu era um bom rei, amado e respeitado pelos seus súditos, e por todos os reinados vizinhos. Eu sonhava que tocava as mais belas sinfonias em meu piano, e que com isso levava minha vida fazendo concertos ao redor do mundo. Mas a realidade é que eu tinha me tornado um zumbi apático, e que essa apatia me fazia cuspir fogo. Eu não percebia que soltava labaredas pela minha boca, e achava que as pessoas fugiam por que não gostavam de mim, e assim, por muito tempo vivi uma vida solitária. Até meus amos fugiram de mim, e eu não sabia por quê. Eles eram bons amos. Me davam comida, uma boa cama, e não me obrigavam a trabalhar pesado. Quando eles me abandonaram, eu não tinha mais ninguém.

Os anos passaram, e eu fui crescendo. Tornei-me um adulto sozinho, sem muita explicação para as coisas da vida. Mas isso não me importava, já que eu não tinha mais interesse em estar acordado, apenas em sonhar. Nunca ninguém se aproximou de mim, talvez porque eles não tivessem nem vontade de tentar, talvez pelo medo de eu cuspir fogo neles.

Um dia recebi uma carta. Não havia nada escrito nela, apenas o retrato de uma menina. Ela era linda, tinha olhos de céu e cabelos de fogo. No retrato ela parecia perdida num mundo de caos. Não entendi o que era aquela sensação, mas eu percebi que tinha que encontrá-la, ajudá-la a passar por aquele mundo de caos sem se ferir fatalmente. Peguei meus poucos pertences e parti. A viagem era longa, mas eu estava determinado, eu me sentia, enfim, vivo como não me sentia desde que visitei o reino do fogo.

Levei muito tempo para chegar à terra da tal menina. Ao chegar lá, vi que ela já estava me esperando. Passamos alguns dias juntos, e ela me contou que o mundo do caos a perseguia, e às vezes ela era acordava lá sem nenhuma explicação, e levava muito tempo para conseguir voltar pra casa. Ela também me contou que havia perdido muitas coisas na vida, e que todas as vezes que tinha se apaixonado, os pretendentes levavam um pedaço de seu coração, e o substituíam por uma pedra. Ela já achava que a esta altura, seu coração já tinha a maior parte composta por pedras, e que não havia mais tempo pra ela. Eu queria provar que ela estava errada, mas antes que eu pudesse fazê-lo, eu estava de volta em casa. Descobri então que as pessoas haviam jogado um feitiço sobre mim, para que eu não conseguisse me afastar de casa por muito tempo, por medo de que eu causasse incêndios. Essa coleira mágica me puxava pra dentro da minha casa instantaneamente, caso eu passasse mais de uma semana fora dela.

Continuei a visitar a menina, e prometi a ela que iria conseguir descobrir um jeito de quebrar o meu feitiço para poder ficar com ela o tempo todo, e ajudá-la a ficar longe do mundo do caos. Ela me disse que não valia o esforço, que eu deveria encontrar outro alguém e deixá-la a mercê do mundo do caos, até que ela estivesse enfim morta. Mas eu não poderia permitir que isso acontecesse sem fazer tudo que pudesse para deixá-la bem. Foi ai que descobri que ela havia transformado as cinzas em meu peito num coração novamente.

Hoje eu ainda estou enfeitiçado. Não posso me afastar deste velho covil, que uma vez chamei de casa, por muito tempo. Mas eu não desisti da menina de terra longínquas, e por ela eu tento quebrar esse feitiço. Eu ainda sonho, mas agora sonho com ela, e por isso eu não cuspo mais fogo.

Baltho Andarilho
Enviado por Baltho Andarilho em 25/04/2011
Reeditado em 25/04/2011
Código do texto: T2929811