CRIADOR & CRIATURA *

Cansado de sua lida, encomendas de fregueses, querendo assim, ou assado... ele sempre obedecendo, construindo com afinco esmerado o que lhe pediam, no intuito de agradar e de sobreviver com seu trabalho.

Contudo, sonhava com uma obra prima, não a simples escultura de imitadas figuras, cópias de célebres estátuas. Enfim, como artista, queria ser imortalizado, reconhecido por seu trabalho, por seus traços únicos, peculiares... “ficou igualzinho ao fulano ou sicrano”, isso não queria mais, parecia uma máquina reprodutora, sem identidade,manuseando com a alma alheia. Quem haveria de dizer: este trabalho foi do Aristeu ? Nunca, pois apenas copiava o que lhe mandavam, precisava sobreviver, ganhar o pão de todo dia.

Ao passar sob uma escultura em um jardim, disse a si mesmo, quero brilhar, se faço réplicas perfeitas por que não fazer uma com a minha imagem ?

Assim, entre uma encomenda e outra, garimpava uma pedra imensa, da altura de sua estatura, haveria de se sobressair com algo de sua própria lavra, com seus traços próprios, envaidecido com seu talento. Que adianta reproduzir célebres esculturas ? Jamais lhe dariam o crédito, seria apenas e eternamente um copiador de talentos alheios

Então passou a dividir o tempo, entre a obrigação dos pedidos e o deleite de criador, na obra que pretendia imortalizá-lo, fazendo uma réplica em pedra sabão de si mesmo.

Acertos aqui, uma aparada ali, da pedra surgia, paulatinamente, o contorno de uma figura humana, em pose encenada, com as mãos abertas, como a receber a ovação do público. Assim se imaginava, ao receber os previstos elogios de admiradores, e, quiçá, da municipalidade, a quem pretendia doar a peça para exposição pública. Além de ser o autor, retratava a si mesmo, numa autoimagem , seria a esperada recompensa, a glória de um artista, enfim reconhecido.

De olhos abertos, sem conseguir pregar os olhos, delirava na imaginação da escultura pronta, nos detalhes que imprimia à pedra que lhe daria a forma, algo perfeito, a recriação de si mesmo.

E levantava no meio da noite, prazeroso, sono desperto, avançando nas madrugadas, polindo, acertando, corrigindo imperfeições, moldando o manequim.

Mantinha a pedra encoberta por um lençol, longe das vistas de terceiros, como se fosse uma encomenda reservada de algum freguês que preferisse o sigilo. E ficava entre a pequena loja e a sua oficina, nos fundos da casa, esperando fechar o estabelecimento para voltar ao ofício que o magnetizava há tempos, roubando horas a fio em seu ofício de escultor.

Aquilo passou a ser uma obsessão, um prazer nunca antes experimentado, embora amasse seu ofício e fosse primoroso em cada encomenda. Aquela escultura era especial, ele próprio sendo imortalizado naquela pedra, projetando-se no futuro, sobrevivendo ao tempo, quando já não mais estivesse vivo.

Com a benevolência dispendida à própria imagem, a construía em traços leves, suaves, feito uma tela na maestria de um pintor com seus pincéis e tonalidades. Avultava um Ser angelical, de expressões sublimes, distanciando-se do modelo, enxergados com os olhos da indulgência de si mesmo, onde não cabiam os sinais das intempéries registradas no corpo, produto de uma jornada sofrida.

A obra tornava-se distinta do autor, de tão perfeita não assemelhava-se como a réplica de si pretendida. Não haviam sequer vestígios dos marcantes sulcos na face, tampouco as mãos estendidas tinham as veias saltadas, antes pareciam aveludadas.

As orelhas miúdas e proporcionais destoavam das vistas no operoso trabalhador, caídas e exuberantes. A cabelereira farta no boneco nada tinha das entradas calvas do escultor. A cada martelada caprichada, nascia um outro Ser, belo e diferente de seu criador.

Por fim, orgulhoso do trabalho de meses, decidia torná-la pública.

A princípio, ficaria exposto no pequeno atelier, depois, de acordo com as impressões dos visitantes, ofertaria à municipalidade, cioso de ter concebido uma peça de esmerada arte ao se projetar nela.

Como tinha a imagem as mãos abertas, assim que o primeiro freguês adentrou a loja, pendurou o guarda- chuva em uma delas, na outra mão colocou o chapéu, julgando ser para tal fim que ali se encontrava... Nenhuma palavra sobre a escultura, embora pacientemente esperasse o artista pelos elogios imaginados. Assim sucedeu com vários outros visitantes, no correr dos dias. Ou confundiam com objeto para recepcionar guardas-chuva e chapéus, ou passavam indiferentes por ele.

Resolveu mudá-la de posição, não mais ficaria logo na entrada, a colocou no centro da loja. Pior, pois caiu em completo esquecimento. Exceto por uma beata que insistiu que tratava-se de um Santo, que não conseguia lembrar-se do nome, martelando com o velho para que dissesse quem seria, citando o extenso rol dos canonizados católicos...

Cada vez que fechava o estabelecimento, olhava com os olhos desalentados para a escultura, como se visse nela um filho ingrato, a desconhecer seu pai. Nenhum olhar sobre sua arte o reconheceu nela, nenhuma manifestação sobre sua obra que o identificasse, naquele esforço aprumado em tantas noites insones.

Sentava em um banco, aos pés da escultura, procurando entender o que dera errado. Com afinco esmerado esculpira a própria imagem, segundo a sua visão. A fizera majestosa, nela se mirando, como a si se admirando. Do simples cascalho da pedra bruta, fizera luzir aos poucos, extraindo da inerte matéria um ente ideal, mas estranho se lhe ficava...

Ele com suas feridas, marcas da vida, era o contraste com a arte esculpida, apenas um imperfeito mortal na concepção idealizada e distante de si mesmo...

*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ, NOVEMBRO DE 2011.