A Filha da Terra
Vou contar essa historia como ela me foi contada há muito tempo atrás, e quem me contou também a ouviu assim, já que ela vem sendo passada de geração em geração desde tempos onde a memória não mais alcança.
No começo do mundo os homens eram nômades e vagavam pela Terra coletando os frutos que encontravam, caçando as manadas de grandes animais e pescando as criaturas das águas. Era uma vida difícil, porém recompensadora, o mundo era grande e havia alimento para todos.
A raça humana vivia agrupada em várias tribos formadas por uns poucos indivíduos e muito raramente se encontravam. As guerras não eram muito frequentes, se uma tribo descobria-se estar no território de caça de outra ela simplesmente buscava outro território, já que sempre havia fartura em outras terras.
Foi nesse mundo que nasceu uma criança especial. Era uma menina, que nasceu na tribo Ror e recebeu o nome de Nádia, que na língua daquele povo significa “A Filha da Terra”. Ela recebeu esse nome por que os patriarcas do povo receberam em sonho a visão de que ela fora enviada para refazer o elo perdido entre o homem e sua Mãe Terra.
Nádia cresceu em um mundo que começava a mudar, as manadas dos grandes animais estavam definhando, a terra, antes fria e gelada, estava esquentando mais e mais a cada ano, bosques viravam deserto, os frutos, antes numerosos, agora eram raros. E, para piorar, a paz entre os homens estava ameaçada, a fome empurrava uma tribo contra outra, os homens descobriram a guerra. Mas os Ror mantinham-se pacíficos, tentavam preservar o seu modo de vida e para isso se mudavam para terras cada vez mais distantes, isoladas e desertas onde era muito difícil conseguir alimento.
A jovem Nádia, muito diferente das outras crianças da tribo, sempre fez jus a seu nome e estava sempre em comunhão com a terra, observava a natureza, o comportamento de plantas e animais, parava junto aos rios como se conversasse com as águas ouvindo o canto da correnteza. Enquanto os homens vagavam em busca de comida, Nádia observou que muitos animais faziam pequenos estoques para o inverno, planejavam a dispensa para dias difíceis. E as plantas sempre seguiam uma sequência, primeiro davam flores, depois frutos e sementes, Nádia percebeu que muitas dessas sementes produziam novas plantas. Ela aprendia a cada dia.
Nádia levava muitas das sementes que coletava consigo, algumas ela deixava cair pelo caminho, outras ela plantava em pequenos vasos de argila e levava consigo.
Mas Nádia cresceu e tornou-se uma bela jovem, suas observações foram tomadas como brincadeira de criança e ela foi obrigada a se juntar a tribo na luta diária pela sobrevivência. Foi nessas circunstâncias que a guerra finalmente alcançou os Ror. Eles sem saber invadiram o território de caça de uma tribo belicosa, mas não havia mais para onde ir, o alimento estava acabando em todo lugar, era ficar e lutar ou fugir e morrer.
As duas tribos provocaram-se, era certo que iria haver derramamento de sangue dos dois lados, e assim aconteceu, e a tribo de Nádia foi derrotada, muitos jovens guerreiros perderam a vida e os sobreviventes tiveram que se mudar para terras áridas. Com tantos mortos e feridos a jovem Nádia se viu de repente liderando seu povo, ela era a voz mais ativa e mais respeitada, era a líder natural.
Mas a fome apertava, a terra onde viviam agora não ofereceria alimento por muitos meses e qualquer outro lugar ou já estava deserto ou ocupado. Nádia não sabia o que fazer, ela lembrou-se do tempo em que era criança, quando ainda havia alguma fartura e podia ocupar-se despreocupadamente em observar os animais, as plantas e brincar com suas sementes, e foi aí que ela se lembrou das sementes!
Se as sementes brotavam quando lançadas ao chão, por que não plantá-las então? Por que não cultivar a terra ao invés de esperar encontrar seus frutos ao acaso?
E assim ela fez, aproveitando que agora ela era a líder dos Ror ela ensinou a todos os segredos da terra, muitos não acreditaram, preferiam vagar em busca de alimento e enfrentar outras tribos a perder tempo cavando a terra inutilmente. Por isso muitos abandonaram a tribo dos Ror e nunca mais voltaram. Mas os poucos que ficaram não se decepcionaram.
Nádia viu as primeiras sementes brotarem, viu as plantas cresceram, as flores se abrirem e receberem a visita de pássaros e abelhas. E o mais importante aconteceu, pequenos frutos surgiram, em várias estações diferentes, os Ror, que tanto sofreram com a fome, agora tinham sua primeira colheita.
A tribo de Nádia se estabeleceu naquele lugar, e a cada ano plantava e colhia, aprenderam também a domesticar os animais, garantindo a eles pastagens sempre verdes, é claro que nem tudo foram flores, ouve momentos de terríveis secas e pragas, mas tudo era um aprendizado. Aconteceu também de outras tribos serem atraídas pela fartura dos Ror, mas não foram recebidos com guerra, foram convidados a ficar e aprender a cuidar da terra. Assim a paz voltou a reinar entre os homens por muitas gerações.
Nádia provou mesmo ser a filha da terra, ela realmente reaproximou o homem da natureza e recuperou o equilíbrio perdido.
Mas isso foi há muito tempo e foi apagado da memória dos homens, hoje o ser humano mais uma vez rompeu o equilíbrio com a Terra, as guerras voltaram e a fome ronda o mundo novamente. Mas ouvi dizer que outra Filha da Terra habita entre nós, uma nova Nádia dedicada a encontrar uma nova relação com a natureza que não seja a simples predação, dizem que essa nova Nádia vive em algum lugar lá no norte e é a ela a quem dedico essas palavras.