A Flor e o Lobo
Venham todos, não se acanhem. Tenho uma bela história para lhes contar. Andem, vamos, aproximem-se, pois é uma daquelas histórias que vale a pena ouvir. Vocês vão se encantar. Talvez vocês já tenham ouvido falar na lenda de um jovem estranho conhecido como Fulssir... Não? Então quem sabe na história de uma estranha menina-flor que se chama Lili... Também não? Tudo bem, não se acanhe. Os bardos de hoje em dia não são mais como os de outrora. Para sua sorte aqui está a sua frente uma daquelas pessoas que conhecem muitas histórias à moda antiga e contos de fantasias.
O protagonista dessa história que lhes contarei é Fulssir. Filho do vento. Criatura que alguns dizem já ter visto, muitos desses apenas deliraram com um possível momento de sua falsa presença... Mas existem aqueles que realmente o conheceram pessoalmente (na maioria das vezes sem nem perceberem). O problema é um só: Ninguém faz idéia de como é Fulssir. Tanto sua aparência ou personalidade é totalmente desconhecida. Existem até algumas variações das lendas dele que dizem que suas características físicas podem mudar como vento. Afinal ele é filho de uma entidade.
Ah vocês não sabem? Em que mundo vocês tem vivido meus caros? Fogo, Água, Terra e Ar, os quatro elementos primordiais são oni-criaturas extremamente mais elevadas que nós. Alguns dizem que eles criaram toda a existência como nós conhecemos, outros dizem que eles são filhos de uma entidade ainda maior... Bom, não se pode saber ao certo. Afinal, apenas deuses podem entender deuses, mas é fato que muitos aqui acreditam nos elementos primordiais. E Fulssir é filho do Ar... Dizem que foi um suspiro de vida que o Ar teve ao se apaixonar pela Água.
Existem variações da lenda sobre o nascimento de Fulssir. Muitos dizem que, ao procurar uma forma física na busca de ser “algo vivo”, ele teria tomado o corpo de um humano com quem ele se identificara. Entretanto eu tenho uma informação diferente, informação de confiança, lhe garanto. Enquanto buscava “ser algo” ele observou variadas criaturas e procurou aquela que achasse mais nobre, mais digna de estar viva, ao mesmo tempo que mais graciosa e admirável, coisa assim... Agora, seres humanos cabem nessa descrição? Óbvio que não meus amigos, óbvio que não.
Lobo. A forma que ele tomou para si foi a de um lobo. Nobre ao mesmo tempo que voraz, temido ao mesmo tempo que respeitado, admirável ao mesmo tempo que... Ah, vocês já entenderam. Pois bem, apenas tempos depois ele passou a possuir também uma forma humana. Já ouviram histórias de pessoas que cruzaram caminhos com um lobo solitário que não a atacaram, algumas vezes até sendo uma criatura amigável e noutras até mesmo as protegendo? Se já, esse provavelmente era Fulssir...
Sendo uma criatura tão única e peculiar, uma espécie de semi-deus que apesar de imortal é muito humano e que não possui dom divino algum além de sua imortalidade – de acordo com as lendas, claro – ele é uma criatura solitária. Também dizem tais lendas que no começo de sua existência ele tentou encontrar a si mesmo em algo ou alguém, tentando se identificar, se encontrar. Depois viu que isso era impossível, que ele era sozinho e único, nunca se sentiria plenamente à vontade com nada ou ninguém. Ele tinha descoberto a solidão, mas no fundo sempre esteve desde o primeiro momento de sua existência à procura de uma possível metade sua perdida em algum canto do vasto mundo. Essa era Lili, mas ele não sabia disso.
Lalaenaritzvi, ou apenas Lili, como as lendas dizem que ela mesma prefere – e como prefiro chamá-la, é mais fácil lembrar – dessa lenda eu duvido um pouco que vocês tenham ouvido falar. É uma das mais raras e já esquecidas, também nunca ouvi nenhum relato de que algum mortal teria talvez encontrado ela.
A antiga lenda diz que em um jardim isolado e protegido, onde apenas ninfas podem entrar, existe uma pequena flor, uma espécie de tulipa onde dentro de suas pétalas guardada como um tesouro havia uma pequenina mocinha que ali vivia, mas ela não apenas morava dentro da tulipa. A tulipa fazia parte dela. “Rainha Silvestre” como também era chamada, ela era protegida por ser a personificação viva da natureza e de seus mistérios. Sua vida estava intimamente vinculada a toda a vegetação do mundo, se ela morresse o mundo inteiro se tornaria infértil, se o mundo todo se tornasse infértil ela morreria.
Também estava vinculada da mesma forma à vida das criaturas mágicas das florestas, como as ninfas, faunos e fadas, tendo até mesmo parte delas. Sendo assim uma criatura com aspectos de plantas, intelecto e emoções humanas, mas também alguns dons e características de fadas, ela era definitivamente um ser ainda mais único que Fulssir. Tinha a missão eterna de proteger toda fauna e flora que existia, mas por suas emoções humanas ela queria ser livre, ou pelo menos conhecer mais do mundo que tanto tinha de proteger.
Em certa época bem recente, aproximadamente a cinqüenta anos atrás, uma ninfa muito peculiar, que possuía essência obscura e assustava outros seres da floresta, tinha tanta curiosidade que encontrou e adentrou o jardim isolado e protegido onde vivia Lili apenas pela pura vontade de conhecê-la. Quando lá chegou descobriu quão frágil e solitária aquela suposta “semi-deusa da floresta” era. Não se conteve e cometeu um sacrilégio apenas para ajudá-la, removeu com extremo cuidado maternal as raízes de Lili e colocou-as envolta de seu próprio braço, cravando os espinhos dela em suas próprias veias e a alimentando com seu sangue. Lili agora poderia conhecer um pouco mais do mundo.
Agora lhes pergunto meus amigos, vocês gostariam de viver como parasita de outro ser? Eu sei, eu sei... Toda humanidade é nada menos que uma grande raça de parasitas do próprio mundo, mas essa questão é diferente. Vocês conseguiriam ser felizes com o fato de terem se tornado um parasita que vive apenas pela dependência de outro ser vivo? Pois bem, Lili também não. Ela ainda não estava plenamente livre, sabia disso. Gostava da companhia de sua nova amiga e lhe era muito grata, mas não era realmente aquilo que ela queria.
Foi num dia chuvoso em que Lili e sua protetora caminhavam por um bosque que ambas cruzaram caminhos com um lobo de pelugem escura quase negra, mas num tom levemente azulado. O lobo simplesmente as ignorou continuando seu caminho e elas ficaram surpresas com isso, pois todos os animais sempre se afugentavam ao notar a presença obscura da estranha ninfa. Perceberam rápido que ele não era um lobo normal. Com sua voz aguda Lili chamara pelo lobo, este que se virou para olhá-la e quando seus olhos se cruzaram os dois sentiram uma estranha sensação de familiaridade, e assim eles se encontraram um dentro do olhar do outro.
Aquele era Fulssir, fato, mas nem Lili ou a ninfa sabiam disso. Lili pediu para que a sua guardiã a enraizasse no chão e ela assim o fez. Fulssir apenas se aproximou dela a ponto que ela pudesse abraçar seu focinho e depois ele fechou os olhos sentindo-a. Os dois ficaram assim por longos segundos, sem palavras ou outros gestos.
Numa sensação cada vez mais crescente de se completarem, Lili soltou da terra algumas de suas raízes e estendeu-as à Fulssir, este que respondeu ao gesto oferecendo-lhe uma de suas patas dianteiras. Sem hesitar ela cravou algumas de suas raízes nele e ambos se tornaram um só nesse momento.
Talvez pela mistura da essência divina de Fulssir com a essência mágica de Lili, talvez pelo tamanho amor que existia entre os dois, talvez por uma benção dada por entidades que estavam olhando por eles, talvez por uma mistura de todas essas coisas... O que importa é que houve um clarão e que após esse clarão não haviam mais um lobo nem uma fada-flor. Haviam duas pessoas, um homem não tão alto com longos cabelos espalhados e ondulados, tanto os olhos quanto cabelos possuíam tonalidade azul marinha profunda e intensa. A mulher parecia ser mais jovem, também não muito baixa sendo praticamente da altura dele com cabelos lisos e bem escorridos, tanto os olhos quanto cabelos possuíam tonalidade verde musgo pura e viva.
Eram eles, Lili e Fulssir. A flor e o lobo que tanto se procuraram sem se conhecer e finalmente haviam se encontrado. A partir desse ponto eu não conheço mais a história, apenas faço especulações. Acredito que eles tenham se isolado em algum canto do mundo para passar o resto de suas eternidades juntos e felizes. Pelo menos não seria isso que vocês fariam no lugar deles?
Ah... Talvez agora vocês estejam se perguntando quem sou eu. Como eu posso afirmar com certeza que tudo que lhes contei é real? Será que eu poderia ser um dos protagonistas desse breve relato que apenas tenta espalhar sua própria história de amor? Ou talvez eu seja um filho que possui grande orgulho dos pais que tem? Poderia também ser uma ninfa incomum que presenciou todo o ocorrido... Ou apenas mais um dos loucos do mundo que presenciam coisas que poucos acreditam...
De qualquer forma minha identidade não importa. O que importa é que mesmo não acreditando na veracidade desse breve conto de fadas vocês pelo menos se sentiram envolvidos por esses dois personagens e no mínimo ou os invejaram ou se familiarizaram com ambos...