Em torno da casa antiga
A C. Fabra
O ano letivo estava acabando. Antes da aposentadoria metem os mais velhos na biblioteca. Ficaria a semana na biblioteca e depois não haveria mais nada.
Final de ano, algumas senhoras e o coral de Elizabete. Ela cantava tão bem, mas quebrou o pé saindo do mar. Tinha decidido ficar em casa. Era missa do galo. Por que José não queria que ela cantasse? O que leva um homem a impedir uma mulher de cantar no coral? O coral rejeitou a idéia de se apresentar sem ela. Bonita, sentada na cadeira com o pé esticado, cantava glórias ao sol de domingo. A história me pareceu bonita, mas como estava farto, guardaria para depois. Na gaveta, lá onde perco tudo.
Fico horas a fio procurando pequenos objetos, selos, escaravelhos, moedas inúteis, tudo extraviado pela casa. O silêncio é medonho. Não há mais ninguém. Sirvo-me dos olhos para observar coisas e elas desaparecem.
Quem está dialogando pela casa? Gritei. Sou eu e o eco no corredor estende-se pela sala. Talvez fosse bom ter um papagaio, gato ou ainda um cão. Cuidar de animais requer zelo. A superaudição que parecem ter lhes garante uma rapidez avestruzeira. Tenho medo de embaraçar os passos nos inconseqüentes saltos, nas súbitas revoadas.
Estou farto. Farto daquilo que não se parece com a vida. Surgem vozes, devaneios. Um aluno se aproxima para dizer apenas que ninguém tem mais idéias sobre o tema. O que se tem é volúpia em fugas sucessivas. Pulos alegres, gozo fácil, mas estamos fartos. Prosseguimos sem saber mudar isto. Pois estava ali para lhes dizer apenas que o real ninguém esperava que acontecesse. E que lhes impingiria zero redondo, feito pela boca de um copo se não ficassem quietos. Se não fizessem os temas. A idéia de ganhar uma nota para aquelas crianças pobres parecia mesmo financeira.
Dei para implicar com os pardais. Aquele é o pássaro de todos os dias. Permanece na calha desde a mudança. Titã não gostava deles. Titã gostava apenas de si mesma. Como alguém pode ver ou sentir repugnância num pássaro?
Tiro manhãs inteiras passeando pela cidade. Uma cidade que vi crescer. Há lugares onde as vozes do passado estão impregnadas.
Procuro o cinema!
O cinema imóvel e em ruínas. A missa dos filmes era tão perfeita que as demais pareciam desoladas. Depois vieram os filmes de quinta categoria, venceram os carros trombados, gente decimada feito formiga. Os filmes perderam os desejos dos sonhos animados. Ausentaram-se do curioso mistério das cartas noturnas. Sumiu o melhor para longe da idealidade matematizada, resultando em tédio produzido, como diria Afonso, não poupando palavras de seu gordo dicionário.
Passo pela casa velha onde nasci e vivi até o primário. Está de pé a laranjeira. O magnífico pessegueiro serrado jazia no gramado. O que leva uma alma a intentar contra um indefeso pessegueiro num jardim isolado? Tivesse um raio lhe partido, seria honroso para o pessegueiro. Pois o que o raio não ousou, a hipoteca consentiu.
Dobro a esquina para lembrar de todos no quintal. Há um cachorro. Seria Calafange? Revejo Mamã na janela. Quando Mamã vinha com o parche untado de ungüento para aplicação era sábado. Doente aos sábados, pedia licença aos amigos, para adoecer neste dia da semana. O pôr-do-sol ganhava um tom indefinido. Tinha que urinar no penico de louça. Tia Clara contou-me uma estranha história surgindo pelo corredor. Certo dia atravessava um homem pela rua Videiras, 77, pelo final da tarde. Parecia cansado como se tivesse nadado muito, era velho e usava um casaco preto. Parecia devastado por um naufrágio. Algo nele parecia afogado pela inquietação do mar. Olhou firme para Tia Clara mostrando-lhe um canário inerte, singelo e perpétuo. Depois desapareceu. Quando deu por si Tia Clara estava sofrendo buzinadas no trânsito.
Como era religiosa, brinquei.
- É verdade que o homem quis mostrar o sexo para a senhora ao contrário do canário?
Menino! Se não fosse a febre vinha o laço e grossas pancadas. Era religiosa, não conhecia homem, tinha medo de chegar perto deles. Fez disto o próprio filme mudo e solitário com o título de “Solidão crucifixada”. Quem prega a existência de Deus não dá muita importância aos sonhos, dizia. Era seca e boa. Coitada de Tia Clara. Do comentário que fiz ao Padre Inácio sobrou um beliscão no ombro, com força de Torquemada. Não me poupou nem com febre de novecentos graus.
Menino acordava com Calafange, o cachorro lambendo meu rosto. Ele usava um talismã, não lembro se grifo ou duende. Distante o tempo acaba misturando lendas.
Maria, Joaquina e Dulciana eram as papa-missas. Horas de chá com torradas em torno de temas tão amenos que o amor-perfeito do vaso corava de vergonha. O Feijó entornava o chá sorrindo com benevolente entusiasmo para tudo. No mesmo horário retornava e iniciava o desengaiolamento dos seus temores fundamentais. Surtia efeito vinte Ave-Marias desengasgadas daquela voz trêmula e piedosa.
No fundo do quintal tinha a trepadeira que alcançava a calha enferrujada. Era ali que residia o gênio da lua. Dava para ver do meu quarto. Ao lado ficava também a pereira graciosa dos doces de todo ano. Doutor Siqueira havia mentido teatralmente sobre gênios, gente na lua, Selênios. Só mais tarde fiquei sabendo que não havia ninguém lá, pelo menos que tivesse insistido em ficar. A febre sim, esta insistia. Mamã trazia afeto e mamão papaia.
- Meu filho está com todos os tipos de febre. A cotidiana, a semi-cotidiana, a terçã e a quartã.
Ficava ao meu lado enxotando bocados de delírios. O quarto tresandava menta, eucalipto, , mel e limão. Zeca, abeirado na cama, dizia para Frederico.
- Ele vai morrer...
- Sim, vai. Respondia Frederico sério, frio, intangível. Segunda-feira não irá à escola. Perderemos o baile na terça-feira gorda.
Retornava Mamã.
- O doutor pediu que fossem correndo até a farmácia trazer antiflogístico.
Surgia outro médico de sotaque alemão examinando minhas costas. Ouvi que era muito rico e que tinha se casado com uma suíça nos Bálcãs. Festa elegante, para poucos. Não tinha sido feliz. Os hábitos da suíça eram excessivamente naturais, segundo ele, um romântico que quis ser clássico, mas foi primitivista como escreveu o poeta. Os seus dedos eram frios. Abriu a janela, gesto acima da medicina normal, para que entrasse ar puro e eclodisse a sinfonia dos pardais. Tudo para libertar a febre daquela estúpida melancolia.
Zeca partiu de casa no dia em que foi lançado o primeiro satélite artificial. Trocamos algumas cartas e depois o correio desapareceu. Sei que durante a guerra havia retornado para a América. Foi só. Nunca se recuperou do meu nascimento. Ele era o atrativo que roubei para sempre. Imperdoável. Passou de conservador a liberal compulsivo. Odiava a mesmice urbana. Opunha-se a tudo o que fosse regular, constante, imutável. Dizia-se um Ser anterior à tradição, livre do tradicional. Pouco recomendável para quem sofria de afecções periódicas.
O dia em que Frank brincou na varanda com o avô octogenário fazia um calor de matar passarinho. Por que o avô estava de meias e chinelos naquele dia? Tão exclusivo na aventura de atenção para si, já que as mulheres abandonam os velhos, em troca de um sentido de espelho.
Frank subiu na cadeira e berrou.
- Vejam estes pés que correram mundo. São na verdade pés “antipoliorcéticos”.
De onde colheu aquela palavra ninguém ficou sabendo, termo militar relativo à defesa das praças. Sim o avô tinha pertencido à batalha de Canudos. Um espinho de mandacaru tirou-lhe da linha de frente em Juazeiro. Voltou para casa sem tiro e sem remorso. Frank colecionava antigualhas e tratava a neurose de guerra de vovô como médico especializado.
- O demônio é azucrim!
Gritava enquanto vovô seguia procurando o inimigo nos armários da memória. Cipriano ficara azumbrado e cego depois do conflito. Era amigo de vovô, viajava até aqui para visitá-lo. Vovô falava o tempo todo nele quando reprisava o conflito, mas em carne e osso, ficavam horas em silêncio.
De repente a grande explosão na sala. Era Frank.
- Balordo miserável, me de aqui este fuzil!
Mamã chegava e dizia calmamente.
- Já é noite vovô... Frank procure distrair a febre do teu irmão... Novamente o vovô:
- Caia fora! Estamos em guerra!
Fecharam à porta e deixaram Frank com ele.
No inverno era possível assistir aos rolos de fumaça na lareira da casa ao lado. A lua rebrilhava na umidade da rua. Nesse dia vieram com a notícia de que Padre Inácio estava gravemente doente. A febre devorava minha vida infantil. Fui o primeiro a descrer que fosse tumor irreversível. Padre Inácio ocupava um lugar de destaque em nossas vidas sem Deus. Foi ele quem começou a intelectualizar a vida pública do lugarejo. O subdiretor do setor de horticultura, e que havia sido demitido por prevaricação, espalhou pela cidade que o câncer era do tamanho de uma abóbora. (Na época padre Inácio era Diretor do setor de horticultura). Entrei em fúria e comecei a espernear feito doido na cama. Padre Inácio com fictício tumor vivera intensamente. Estava ali na varanda da casa vendida. Só que havia um vaso de flores quebrado, que devia ser trocado.
Esperava que a estrela Síria pudesse acalmar minha vida em busca de conjunção com o sol e arrefecesse todo o mal. Os jornais anunciavam a presença de um ciclone. Djanira divulgou que pregaria portas e janelas. O fim do mundo se anunciava. Em casa tínhamos medo dos insignificantes trovões e ventos, bem mais do que as internacionais bombas de urânio. O vento veio e pela função de vento trocou tudo de lugar. Arremessou o peignoir da Mamã em direção a praia. A casa de Calafange perdeu o telhado para o vento. Quando os sinos cessaram de badalar veio o sol e o alívio. Em mim a febre demorava a se abonançar.
Quando chegou a empregada veio dizendo que após a ventania abrolharia uma grande quantidade de perebas em todos e em poucos meses o juízo final. Pediu as contas e foi embora para Jacarepaguá. O mundo não terminaria nesse dia. Casou-se com tal Raimundo que por se sentir feio, e ela bonita, matou-lhe por ciúmes; quando tentou se separar.
- “Estávamos casados e ela me pertencia na dor e no luto”, disse o assassino aos jornais. Longe de entender que o espírito da lei é mais importante que a lei. Raimundo julgado foi absolvido, viajou para Araçatuba e matou a segunda mulher que também era bonita. Matou porque se sentia cansado de seus olhares furtivos para o vizinho leiteiro. Novamente absolvido voltou para Barretos, virou pastor. Solteiro.
A segunda mulher de Raimundo era kardecista e acreditava em fantasmas. A primeira entrava no meu quarto quando estava disposta. Aproveitava sempre a ausência de qualquer vestígio religioso para providenciar a graciosa expedição ao parque diversões do meu corpo. Ela escolhia a boa hora para cuidar da limpeza, depois subia a escada, cantarolando, como se arrematasse para mim uma moeda rara. Esta é a réplica de um “besante”, antiga moeda bizantina. Ela ficava admirada.
- Deixe-me ver.
Aproveitava e Levava as mãos em seu corpo de nuvens claras que ela espremia até chover. Emitia risinhos alados e encantadores. Havia nestes instantes mais luzes que o normal. A mesma luz emitida da proximidade que procuramos sempre, e que desaparece entre multidões de solitários. O encanto criava uma atmosfera de prazer sem maldade, nem condenação, mas totalmente inesquecível. Anos mais tarde fiquei sabendo: tinha um filho chamado Ivan Carlos.
Quando chegaram à lua nos ajeitamos nas cadeiras e ficamos conversando horas a fio sobre o acontecimento. Dona Nhanhá, espantada, ficou sabendo que na lua havia o Mar da Tranqüilidade. Para ela a lua inteira era um mar da tranqüilidade. Aos poucos o homem mudaria o plano lunar. Seria a lua colonizada por um plano de governo com arado lunar. O olho arregalado de gente que acreditava em boitatá, mula sem cabeça era todo espanto. Por mim deviam levar apenas um piano e deixa-lo lá em silêncio. A lua sobre a casa antiga lembrava perfeitamente um piano. Um piano esquecido num satélite distante.