Resgate de sangue
Agassi J partiu, pela primeira vez, em busca de ayuaska. Estava ansioso, uma vez que descobriu um mercado promissor e sagrado em São Paulo. Da primeira vez em que foi á Amazônia tinha apenas cinco anos e o pai prometeu a sua mãe nunca mais levá-lo. Não suportava choro de criança e não queria ver o pequeno correr o risco de contrair malária. Na segunda vez em que retornou á Amazônia - com parada obrigatória nos bordéis de Manaus - Agassi J contraiu sífilis e quase se perdeu. Não fosse o chazinho de um índio velho dos arredores da cidade, o menino de quinze anos não passaria pelo que passou ao fim da sua breve vida.
Agassi J viveu, contando com o dia de ontem, vinte e dois anos, três meses e dois dias. Se não fosse por mim os seus dias seriam menos ainda. Fui eu quem disse que ele precisava abandonar suas atividades naquela região, fui eu quem conseguiu um emprego decente e o retirou de lá antes que ele levasse a cabo a sutil ideia de construir uma ermida no meio da mata.
A ideia fixa da ermida surgiu quando afirmou e jurou ter visto um ser de outro planeta dizer que ele tinha uma missão a cumprir naquela região inóspita e recantada. Eu ainda tentei dissuadi-lo de tal loucura alegando que ele estava bêbado, drogado, alucinado e carente. Agassi J não me deu ouvidos, assim como fizera com o pai de certa feita, quando saiu do barraco de madeira à meia noite, atravessou a nado o rio e instalou-se numa margem alagadiça perto dos coqueirais. Encontramo-nos quarenta e oito horas depois e meu amigo parecia estranho, totalmente absorto e cambaleante. Mais tarde quando quis falar, disse que estava em contato com os tais seres incorpóreos reafirmadores de sua missão. Apesar da sujeira de seu corpo pude vislumbrar em sua face uma espécie de brancura que contrastava com seus longos cabelos negros e olhos de melro.
Um dia após esse, Agassi J fazia as malas, e chorando me prometeu nunca mais voltar àquele lugar. Disse que sentiria saudades de mim e de tudo o mais, porém tinha que partir antes que seu sangue se acostumasse com a ideia de que sangue derramado encharcava as terras ao sul de onde estávamos. Relutei em deixá-lo partir e indaguei dele se não seria possível levar umas plantas para oferecer aos despreocupados da grande cidade. Ele respondeu-me com os olhos mais amorosos que meus olhos já puderam ver. Não disse nada, apenas correu ao fundo da tapera e esvaziou a sacola. Em seguida encheu-a toda de folhas, caules e raízes e sem ao menos dizer adeus partiu numa corrida desabalada na direção do porto mais próximo.
Não fiquei triste porque, conhecendo-o como eu o conhecia sabia que voltaria antes da próxima cheia. Dito e feito, seis meses depois Agassi voltava com os bolsos cheios de dinheiro e a cabeça repleta de ilusões. Antes de chegar ao interior disse haver comprado a preço irrisório um grande terreno em Manaus e confidenciou-me que estava preparado para o grande dia que segundo seus cálculos astronômicos se daria lá para o fim de Agosto próximo. Ao abrir a boca e perguntar sobre sua vida particular em Sampa ele me fez calar com a força de seu semblante e disse que estava pronto para o sacrifício final. Depois gritei com ele e pedi para abandonar essa puta ideia de missão, e seres de outros planetas, que ele pudesse pôr a merda da cabeça dele no lugar e admitir ser somente um jovem pequeno-burguês decepcionado com a situação agrária, indígena e social de um país subdesenvolvido da América do Sul. Não pude dizer mais nada por horas, porque Agassi J pulou no meu pescoço e só não me enforcou ali, naquele momento, porque eu trazia um punhal de aço cabo de madeira que encostei ao peito dele e fiz menção de enterrá-lo na sua carne acinzentada.
Depois do incidente, Agassi dirigiu-se para dentro da tapera e pude vê-lo contando os dólares, reais e guaranis que enchiam sua maleta. Boquiaberto eu vi quando separou metade de todo o dinheiro e jogou sobre a minha cama. Não precisou falar nada porque a expressão de seu rosto deixava transparecer que aquele era o seu último dia na terra e nada mais do que fizesse faria sentido, uma vez que de acordo com sua intuição a hora do resgate se aproximava.
Ao divisar ao longe sua triste figura ainda pude gritar em alto e bom som se era pelo sangue derramado ao sul, se eram pelas pessoas mortas nos arredores da grande cidade, ou se era por sua fraqueza e covardia que ele fugia para as brenhas e mato alto. Não pude distinguir ao certo o que gritou, mas o final de uma frase ficou gravado em minha memória. Se ouvi bem, Agassi partia de uma vez e para sempre porque descobriu que seu pai matara há alguns anos um velho índio em um boteco de Manaus.
Meses depois, fiquei sabendo que ele concretizou o seu antigo sonho de se juntar a uma tribo indígena e levar uma vida errante nos confins do estado. Soube também que Agassi desposou uma jovem indígena e que recentemente se tornou papai. Como soube disso? Através do jornal que me chega mensalmente pelo rio.
Foi com um mês de atraso que fiquei sabendo do jovem branco que causou frenesi na grande cidade, ao aparecer por lá com uma enorme placa de metal que reproduzia a luz do sol em mil fragmentos e transmitia uma claridade assustadora quando refletida na superfície da água. Soube também que o mesmo jovem fora espancado, roubado e jogado aos jacarés por aparecer em público cuspindo nas estátuas dos pioneiros locais e falando coisas que feriram aos ouvidos das pessoas que mandavam nos lugares e nos recantos.
Depois disso ofereci meus préstimos. Parti para a grande cidade, fui seu amigo, embriaguei-o, convenci a voltar a São Paulo, a conseguir um emprego e a se mandar ferido, mas vivo. Não sei se fiz o certo, sei apenas que fiz o que pude, pois exatamente um ano depois Agassi voltou. Voltou rico, e cada vez mais louco. Não divisei sanidade nos seus atos, apenas coragem. Após incendiar metade de uma vila ribeirinha e ter dado tiros á revelia, arrastou-me a contragosto atrás de si fazendo-me crer que eu era o único branco digno de testemunhar o acontecimento que principiaria, segundo seus cálculos, à meia-noite dessa terça-feira vindoura.
Suponho que foi devido às raízes que me fez mastigar, ou foi devido ao medo;parece que vejo ainda agora na tela da memória Agassi ajoelhando-se no centro de uma clareira e algum tipo de objeto estranho e indecifrável projetar ao redor de sua cabeça uma espécie de aura. Nos dois segundos seguintes eu vi claramente que aquele facho de luz se tingiu de vermelho. O sangue, os cabelos e lascas de osso de sua cabeça davam ao seu corpo um aspecto mítico. Meu jovem e alucinado amigo estourou os miolos e se tornou uma lenda entre os presentes. Ainda hoje, quando falam do jovem sonhador que esteve entre eles, percebe-se na suas vozes uma espécie de reverência e nos seus atos um princípio de coragem e loucura. Porém, não é raro vê-los tristes toda vez que se deparam com clareiras no centro da mata.