O livro não lido
O livro pronto. Letras tecidas, uma a uma, dor a dor, purgadas, mordidas, coadas. Toda a sua vida ali retratada, nas trezentas e tantas páginas. Todas as imagens do ser e do não-ser, de si e do que vira, do tudo que sentira e tocara. Toda a densidade de sua mente febril e genial finalmente ordenada. Tinha o discernimento de saber tratar-se da sua obra-prima. Porém, a notícia que lhe traziam os vômitos e dores, a cada hora mais frequentes, lhe dizia claramente que não mais sonhasse. Nunca mais futuros, reais ou imaginários. Era agora questão de dias, para o nada esperar de nada.
Pediu à enfermeira que lhe trouxesse os óculos, retirou do velho baú, guardado à chave, seu precioso calhamaço e tocou de leve os dedos por todas as folhas, como a despedir-se das próprias veias e ossos.
- Este não. – decidiu num ímpeto. Aos outros, milhares, de poemas, pensamentos, cartas, manifestos, todos eles rascunhos de mim, que fizessem o que quisessem, ou nada fizessem. – Talvez os publiquem nalgum dia. Talvez não. Que importa? Este, que sou eu, explicitamente eu, morrerá comigo. Não sou mesmo deste tempo.
Enquanto ateava fogo ao livro, agora eternamente inédito, riu o riso tristemente filosófico dos grandes poetas. – Quem havia de me dizer todo o sentido que hoje há nos versos que um de mim metaforicamente escreveu, há tantos anos? Em que circunstância do entre vida-morte eu leria meus próprios versos!: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas: a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus” – Tirou os óculos, e de olhos fechados, um a um convocou, para o definitivo encontro, todos que foi.
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Fantasia em homenagem ao grande Fernando Pessoa, cuja biografia (www.pessoa.art.br) revela que nos seus últimos minutos de vida pediu os óculos e clamou pelos seus heterônimos. A maior parte da sua obra só foi publicada décadas após a sua morte.