A Lenda das Montanhas da névoa

Há muito tempo, um dragão da espécie Negra foi exilado por possuir características opostas ao da sua espécie. Ela nascera branco, sem qualquer pigmento; nem nas unhas, nem nos olhos. O Dragão Albino¹ foi considerado uma humilhação para todos os outros dragões negros, e aos poucos foi sendo excluído, até ser banido na maturidade para longe daquelas terras onde a espécie habitava.

Sem rumo, o dragão voou por quilômetros, até encontrar uma cadeia de montanhas cobertas por uma névoa quase constante. Ali, camuflado na paisagem branca, o dragão decidiu morar sozinho em uma caverna no alto da principal montanha da cadeia.

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¹ É notável o fato de que os filhotes de dragões quando nascem, na maioria das espécies, possuem uma tonalidade branca em sua pele e unhas, o que levou este dragão da história a crescer entre os outros até atingir a maturidade, quando finalmente surge a pigmentação definitiva das espécies.

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Numa terra onde a principal atividade era a agricultura, uma família pobre passava por muitas dificuldades. O pai decidiu então sair numa jornada em busca da esperança de mudar de vida, indo rumo a um lugar onde juravam que mineradores haviam descoberto muito ouro. Ele prometeu voltar, deixando para trás sua esposa e sua única filha morando em um minúsculo casebre. Os meses se passaram e o pai não voltou. A mãe acabou ficando doente e sem dinheiro para se tratar, morre. A pequena menina sem saber o que fazer e sem ter para onde ir, acabou largada pelas ruas.

Sem ajuda de ninguém, ela resolveu ir sozinha em busca de comida, adentrando uma densa floresta.

Por muitas horas ela caminhou sem rumo, em meio a uma sutil névoa que se impregnava há alguns centímetros do chão naquela época do ano. Então uma tempestade começou e a menina rapidamente se refugiou em uma caverna no pico da montanha. Morrendo de fome e com fortes dores pelo corpo, ela acabou desmaiando de exaustão.

A menina foi acordando lentamente. Sentiu seu corpo aquecido e notou que havia uma fogueira bem vívida cujo os galhos estalavam sob a ação do fogo. Ela se levantou e foi mais próxima da fogueira, quando de repente uma sombra gigantesca se projetou sobre ela. Assustada, a garotinha gritou e correu em direção a uma parede oposta mais iluminada da caverna, onde se encolheu.

Ela espremeu os olhos na direção do escuro, tentando enxergar algo, e percebeu que um vulto se aproximava.

— Quem é você? — perguntou a menina, quase aos berros.

— Eu sou quem pergunto. Quem é você? — indagou uma voz grave, mas que demonstrava nervosismo.

— Eu sou só... Helena — disse com cautela.. — E você, qual seu nome?

— Eu não tenho nome.

Nesse instante Helena notou que seu interlocutor era uma figura muito grande.

— Nunca vi pessoa tão grande... — disse Helena.

— Pessoa? — indagou a voz.

E então o vulto se projetou para frente e sob a luz da chama, se revelou um grande e imponente dragão branco como a névoa que ela vira lá fora.

— Vo-vo-vo-vo-você é um dragão?! E fala!

— Mas é claro que eu falo. Por que eu não falaria?

— Nunca soube que dragões falassem...

— Ora, vocês humanos são muito desinformados...

O dragão foi interrompido por um estranho ruído.

— O que foi isso?

A menina tocou sua barriga e disse:

— É minha barriga. Eu tô com fome. Não como nada há muito tempo. Você tem algo para comer aí?

O dragão apontou para o canto da caverna onde havia uma pilha de cadáveres de raposas.

— Eca. Não como isso.

— Come o que então? — perguntou o dragão de forma sisuda.

— Você não teria frutas ou legumes ao menos?

Sem hesitar, o dragão se levantou e saiu velozmente da caverna rumo à escuridão. Não demorou para que ele voltasse trazendo uma pequena macieira, arrancada pela raiz e com algumas belas maçãs.

— Isso serve?

Espantada e faminta demais, a menina nem respondeu. Foi correndo pegar as maçãs e as abocanhou como se fosse um delicioso pedaço de carne de texugo.

Por vários minutos o dragão assistiu a menina saciar sua fome. Estranhamente a criatura se sentiu feliz em ajudar a menina, apesar de conhecer o perigo de se relacionar com humanos.

Depois de satisfeita, a menina perguntou de onde ele viera e o dragão, mesmo relutante, revelou sua história. Sem que ele pedisse, a menina também começou a contar a sua história e ao final, ambos se olharam como iguais, pois as duas histórias de vida pareciam convergir para um lugar comum: ambos estavam sozinhos no mundo, excluídos e afastados da sociedade. Eles só tinham um ao outro.

— Vou ficar com você — disse Helena repentinamente, abraçando o dragão que ficou sem reação. — Névoa.

— O que disse?

— Névoa. Você é branco como a névoa. Te chamarei assim.

—Névoa... — sussurrou o dragão, percebendo que pela primeira vez em sua existência, possuía um nome.

Os dois permaneceram juntos por muitos meses, vivendo naquele pedaço de terra intocado pelo homem, onde a natureza florescia com mais vida além da névoa, em belos vales e planícies onde nasciam rios de água pura e onde cresciam os mais variados tipos de vegetação.

O dragão ensinou à garota muitas coisas sobre a espécie dele e sua forte ligação com a natureza. E a menina ensinou o dragão a apreciar o lado mais doce e afável do ser humano. Helena aprendeu a ser mais corajosa e determinada, e Névoa aprendeu a ser mais dócil e educado. Ambos pareciam se completar, transpor os limites impostos pelas duas espécies.

Certo dia, enquanto Helena descansava na caverna, Névoa saiu em busca de lírios brancos que a menina dizia adorar; o intuito era fazer uma surpresa, pois naquele dia fazia um ano que os dois estavam juntos. Quando Névoa retornou à toca, encontrou Helena febril, se contorcendo de dor no chão da caverna.

— O que houve? — indagou o dragão assustado.

— Eu fui picada por um bicho... — disse ela apontando para um grande inseto esmagado próximo dali.

— Porcaria! É uma serpente da névoa²

— Tá doendo muito! — gritou a menina, mostrando sua perna com uma enorme ferida.

— Eu não sei o que fazer! — disse Névoa desesperado. — Normalmente quando os animais são picados por esse inseto eles...

— Morrem?

O dragão ficou em silêncio.

Por alguns instantes ele fechou os olhos e ficou pensando, tentando encontrar alguma solução...

Então ele abriu os olhos. Numa atitude inesperada, agarrou a menina com suas garras e saiu da caverna, levantando voo rapidamente.

— O que está fazendo? — indagou a menina, às lágrimas.

— Vou descer até o vilarejo. Lá eles devem saber o que fazer.

— Não pode fazer isso... Eles podem te ferir!

— É um risco que devo correr.

Helena até tentou insistir para que ele não fizesse isso, mas não demorou para que o veneno se espalhasse ainda mais e ela desmaiasse.

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² O Datiptéro, mais conhecido como “Serpente da Névoa”, é uma espécie muito rara de inseto, que se assemelha muito a uma lacraia e que vive em regiões úmidas, escuras e frias. Seu veneno se impregna no sistema nervoso central e causa febre, dores intensas no corpo todo e perda de consciência em estágios mais avançados. Se não tratado com rapidez, o veneno pode levar à morte.

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Naquele dia ocorria a festa anual da colheita no vilarejo, e milhares de pessoas prestigiavam o evento, quando o dragão surgiu nos céus. A população entrou em pânico, achando se tratar de um ataque.

O exército presente na cidade começou a atacá-lo com flechas e assustado, Névoa deixou a menina e partiu de volta para seu ninho. Helena foi socorrida e levada a uma casa de curas, onde foi tratada por velhos curandeiros.

A menina só acordou na noite seguinte, ainda meio zonza.

— Quê lugar é esse? — indagou a menina.

— A casa de curas, minha querida — disse uma velha senhora, de sorriso encantador.

— E o Névoa? — perguntou.

— Névoa?

— Sim, o dragão!

— Ah, não se preocupe querida! — exclamou a mulher, abrindo ainda mais o seu sorriso. — Nosso exército já foi atrás daquela besta para matá-lo! Ele jamais vai por as garras sujas dele em você novamente!

A menina pulou da cama onde estava e saiu pra fora. Olhou para a região das montanhas e notou que a névoa quase nem existia naquela noite. Viu vários pontinhos brilhantes que eram tochas carregadas por soldados que subiam montanha acima, e ela entrou em pânico. Eles iriam ferir seu único amigo.

Pegando inúmeros atalhos que ela conhecia por causa dos meses morando lá, Helena conseguiu chegar rapidamente até o ninho, onde o exército estva atacando Névoa com flechas e golpes de espada.

O dragão tentava se defender, se desvencilhar, mas eram muitos soldados. Helena viu que Névoa estava muito ferido e ficando fraco, cada vez mais próximo da morte. Sem pensar muito ela correu em direção ao amigo.

Ela se enfiou em meio aos soldados que perceberam a preseça da pequena entre eles, mas não sabiam exatamente o que fazer. E então no exato momento em que o comandante das tropas deu o golpe fatal com uma lança, Helena apareceu e se colocou entre a arma e o amigo.

A lança atravessou as costas da menina e atingiu o peito do dragão. A dor foi intensa e dilaceradora para ambos. Mas Helena era mais fraca, não teve tanta resistência...

— Névoa... — disse ela enquanto sangue saía por sua boca. — Eu te amo meu amigo...

Helena abraçou o dragão antes de perder todas as forças e fechar os olhos para sempre.

Furioso, Névoa conseguiu se mexer e atacou o comandante que matara sua única e mais fiel amiga, o único ser que ele amara em toda a sua existência. Os soldados continuaram a atacá-lo e sentindo que sua morte viria de qualquer forma, o dragão parou.

Naquele instante o próprio tempo congelou, pressentindo o que viria. Foi um instante único e intenso, em que Névoa lançou a sua última e mais arrasadora baforada, que destruiu um raio de vários quilômetros naquela região.

Ele acabou com o exército e então morreu.

Aquelas montanhas se tornaram curiosamente brancas e a névoa se tornou ainda mais intensa. Devido aos fortes ventos, ninguém mais conseguia se aproximar do topo onde ocorrera aquele trágico evento, e o lugar tornou-se um recanto isolado do mundo. Apartir disso, surgiu a lenda que dizia que os espíritos de Névoa e de Helena continuavam juntos ali, abraçados, por toda a eternidade.

Jean Carlos Bris
Enviado por Jean Carlos Bris em 23/02/2011
Reeditado em 22/03/2011
Código do texto: T2810516
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