AMOR INCONDICIONAL
Praticamente imóvel, ou com os movimentos bastante reduzidos, estava ele ali deitado e completamente dependente de outras pessoas. Respirava com auxílio de uma máscara de oxigênio, recebia alimentação parenteral, era continuamente hidratado com soro fisiológico, uma fisioterapeuta jovem e bonita realizava necessárias sessões de fisioterapia para evitar a falência total dos músculos dos seus membros superiores e inferiores que definhavam aceleradamente, os atos de higiene corporal eram executados por membros da sua família ou por um cuidador contratado para acompanhá-lo e um clínico geral o visitava diariamente. Mas ele continuava em casa em atendimento ao pedido que fizera antes de perder a capacidade de falar. Mesmo que o seu quadro se complicasse queria continuar em casa. Receberia ali os necessários cuidados médicos e mais ainda não gostaria de ser submetido a qualquer procedimento cirúrgico. Com oitenta e cinco anos tais pedidos pareciam sensatos, embora os seus filhos e netos pensassem de modo diferente.
O semblante quase sempre imóvel era vez por outra iluminado por tênues sorrisos que, tão rápidos quanto surgiam, logo desapareciam e o seu rosto voltava a impassividade de uma máscara. Não emitia nenhum gemido, nenhum som que não fosse o da respiração, às vezes calma às vezes ofegante. Teria ele ainda capacidade para avaliar sua crítica situação? Será que perceberia a presença das raras pessoas que, além dos parentes mais próximos, o visitavam? Era o que pensava naquele momento sua neta que lhe acariciava a cabeça onde raros cabelos prateados teimavam em permanecer onde outrora já fora uma vasta cabeleira.
Consciente deliciava-se com aquelas carícias enquanto pensava em sua vida. Não temia a morte pois constantemente usava dizer que esta era a uma das suas poucas certezas. Aproveitava o precioso tempo daquele descanso involuntário, daquela letargia plena de silêncio, para relembrar a sua longa trajetória. Lembranças do pai, da mãe, dos irmãos, dos amiguinhos da primeira infância, da escola humilde do interior onde sequer havia portas e janelas, dos igarapés onde pescava e nadava, da primeira comunhão, da primeira namorada, do primeiro beijo, do primeiro desengano, do primeiro emprego, do noivado, do casamento, do nascimento dos seus filhos, das festinhas na escola, das festas de aniversário, das casas onde havia morado, dos vizinhos, dos colegas de trabalho, das conquistas, dos fracassos, tudo passava célere em sua mente, algumas de forma clara outras nem tanto e, dependendo das lembranças, havia alterações no seu rosto, umas quase imperceptíveis outras mais intensas provocavam leves sorrisos e algumas lágrimas.
Naquela tarde, quando a esposa estava junto ao leito, ele executou um movimento brusco que foi interpretado por ela como uma reação a dor. Ela tocou levemente o seu rosto, tomou-lhe as mãos e ficou mirando aquele corpo inerte que conhecera pleno de vida. Uma misto de nostalgia e saudade invadiu-lhe a alma que fez acelerar o seu coração. Agora era ela quem lembrava dele nas suas brincadeiras com os filhos, quando na praia os carregava nos ombros; quando lhes ensinava a andar de bicicleta ou as lições de casa; quando cantava ao dirigir nas entradas ou quando caminhavam de mãos dadas pelas ruas, apenas pelo prazer de passeio. Sim, fora um bom homem, com falhas como todos os humanos, mas vivia tentando acertar e invariavelmente pedia desculpas quando magoava alguém. Era educado, inteligente, galanteador, carinhoso, estudioso pois estava sempre aprendendo coisas novas ou mergulhado na leitura de livros técnicos, jornais, revistas, romances e poesias. Gostava de arte em geral, especialmente de música, era percursionista e poeta amador.
Estavam juntos já há mais de cinquenta anos e agora ele era apenas um corpo inerte e quase sem vida. Lágrimas sinceras banharam o rosto da esposa que arfando sentou-se ao lado do marido no leito e recostou sua cabeça no seu peito onde o velho coração ainda marcava o ritmo daquela vida em extinção. Adormeceu e sonhou caminhar ao lado do esposo por uma estrada larga que margeava um regato de águas diáfanas onde as nuvens que salpicavam de branco o azul do céu miravam-se vaidosas. E o céu parecia bem mais azul iluminado pelos raios dourados do magnífico sol naquela manhã de primavera. Enlevados pelo cantar das aves, que saltitando felizes saudavam aquela mágica manhã, caminhavam subindo uma colina onde havia flores diversas entre as quais sobressaiam-se os girassóis. O perfume das flores era inebriante. Olhou para o rosto do esposo e o viu jovem e forte como outrora. Olhou para as suas mãos e já não havia mais as manchas escuras que denunciavam a passagem dos anos. Tocou o seu próprio rosto e não encontrou nenhuma ruga. Sorriu de felicidade quando o esposo tomou-a nos braços e beijou os seus lábios com ternura, um beijo especial que enlevou sua alma. Estava assim completamente absorta e incapaz de perceber a realidade em seu redor.
Entrando no quarto a menina viu a avó imóvel com a cabeça recostada no peito do avô. Instintivamente tocou os seus ombros e como a avó não esboçasse qualquer movimento e o avô não mais respirasse saiu gritando a plenos pulmões: - Socorro, alguém acuda, acho que morreram.
A tarde ia chegando ao fim, a menina gritava e os demais familiares aproximaram-se celeremente do quarto onde o casal estava. - Mortos, meu Deus, os dois, como é possível. Ela estava tão bem. Ele a levou, comentavam alguns enquanto outros choravam.
Não, ele não a havia levado mas foram juntos e em ambos era perceptível um leve sorriso estampado no rosto. Não, não estavam mortos, tinham apenas passado para outra dimensão, para a eternidade, onde iriam continuar aquela história construída com sonhos, beijos, abraços, trabalhos, vitórias, derrotas, sorrisos, lágrimas, promessas, sacrifícios, renúncias, doação, enfim com um amor incondicional, um amor forte vivido gota a gota cotidianamente. E prosseguiram, assim, apenas os dois, caminhando abraçados em completo encantamento enquanto os preparativos para aquele duplo funeral prosseguiam.