O amanhecer da morte

O céu daquela manhã úmida de outono se fazia tingido por tons escuros, mesclados às primeiras fibras alaranjadas de um sol tímido, que parecia espreguiçar-se no horizonte. A fumaça do cigarro subia mansamente entre meus dedos pela parede até a janela, quando encontrava o vento que vinha da rua. Eu ficava tentando decifrar os seus desenhos, enquanto os sons do dia já podiam ser escutados lá fora. Estava em uma espécie de transe, meio acordado e meio dominado por pensamentos oníricos. Aquela sensação fez o tempo esfacelar. Tudo parecia em suspensão, fixado a alguma dimensão intermediária, entre os mundos. A leveza fez sentir o peso todo do meu corpo cair sobre meus ombros, quando meus pensamentos se voltaram para Cibele.

Cibele me faz lembrar coisas que tenho grande dificuldade em admitir que fazem sentido. A conheci três dias atrás, quando estive internado para tratar dos ferimentos de um acidente de carro. Na verdade, não exatamente ferimentos, mas suspeitas de possíveis complicações de uma pancada na cabeça. Fiquei desacordado por algum tempo e isto me custou passar a noite no hospital. A primeira pessoa que pude ver quando voltei à consciência foi Cibele. Ao abrir os olhos ela encontrava-se no meu quarto, ao lado do meu leito. Ela me fitou de perto e perguntou como eu me sentia. Neste instante pude perceber que estava tonto e com um pouco de dor de cabeça. Não me lembrava do acidente, procurei saber o que tinha acontecido, porque estava ali. Ela sorriu e disse que o médico logo viria me ver.

O médico chegou logo em seguida. Era um rapaz que aparentava ter pouco mais de vinte anos de idade. Aproximou-se e procurou saber como eu me sentia. Sua voz era firme e, ao mesmo tempo feminina. A ordem das suas perguntas parecia seguir um roteiro fixo, uma espécie de ritual, onde as respostas não contavam muito. Por fim, examinou meu corpo e ao me tocar pude sentir sua pele fria, quase metálica. Fez algumas anotações e sem maiores explicações se retirou.

Cibele, que havia presenciado a minha consulta, continuava no canto do quarto sem nada dizer. Foi neste momento que pude percebê-la mais de perto. Ela era chefe de Enfermagem do hospital. Tinha um rosto magro, olhos bem negros e redondos, lábios finos, nariz proeminente e cabelo ondulado em tons castanhos. Sua pele morena contrastava com o branco de seu jaleco. Movimentava-se com grande leveza e sua voz macia parecia sempre um acalento. Usava um perfume sutil, que me lembrava o aroma amêndoas. Sua estatura não era alta, mas algo no seu jeito a fazia parecer mais alta do que realmente era. Sua presença me inspirava algo estranho e perturbador. Pedi que se aproximasse e, neste momento, comecei a ficar tonto, como se alguma força invisível atuasse sobre minha mente. Ela pegou na minha mão e, suavemente, disse palavras que não conseguiam entender. Estas foram às últimas lembranças que registrei antes de desmaiar.

Ao perder a consciência mergulhei em um sono profundo e imediatamente comecei a sonhar. Muitas cores vivas montaram um cenário confuso, onde pessoas se aglomeravam e carros estavam parados. Buzinas e vozes teciam uma sinfonia estridente e desafinada. No sonho eu não aparecia, era apenas testemunha, um espectador. O ângulo de visão dava-se como uma filmagem aérea, que lentamente aproximava a zoom para permitir ver mais detalhes. Foi quando pude perceber o que havia acontecido: um acidente. Haviam dois carros praticamente destruídos e, de um lado, jazia um corpo coberto com folhas de jornal. Do outro lado, pessoas se esforçavam para retirar alguém de dentro das ferragens. Neste momento chegou uma ambulância. Os paramédicos conseguiram resgatar o que parecia ser uma mulher e imediatamente partiram, deixando para trás, prostrado no chão, a outra vítima, que já não mais inspirava pressa. A esta altura o trânsito estava um verdadeiro desastre. Todas as pessoas que passavam precisavam conferir detalhes do que havia acontecido. Algo que sempre me suscitou estranhamento: este gosto das pessoas por ver sangue alheio. Um rapaz de camiseta verde se aproximou do corpo morto e levantou o jornal, como se estivesse decidido a identificá-lo. Tudo indica serem conhecidos devido à forte reação emocional do mesmo.

Chegou uma moça, que também deveria ser parente ou algo parecido. Ela abraçou o rapaz e começou a gritar coisas para a multidão que se aglomerava ao redor do corpo. As lentes da minha câmara focaram mais de perto esta moça e, para o meu espanto, pude reconhecê-la, era Maria. Maria é uma grande amiga e ex namorada. Ela parecia estar desesperada e, de repente, começou a retirar as folhas de jornal de cima do corpo. Neste instante eu pude focá-lo. Sua cabeça estava parcialmente desfigurada, difícil de reconhecer, mas comecei a identificar sinais conhecidos. Os trajes, o tênis, o carro. Após muito hesitar tive que admitir assombrado que a vítima morta ali no chão, era eu mesmo. Neste momento despertei.

Ao abrir os olhos Cibele encontrava-se segurando a minha mão exatamente como estava no momento que desmaiei. Logo percebi que o meu sonho havia durado frações de segundos. Estava muito confuso e assustado. O sonho tinha sido de um realismo impressionante. Contei-o à Cibele. Ela escutou atentamente cada palavra, sem interromper. Quando terminei a história ela me disse que eu havia sonhado com a minha última morte. Ao ouvir suas palavras comecei a suar frio e a lembrar que o acidente que aparece no meu sonho aconteceu nesta e não em outra vida.

Cibele esclareceu que é assim que as coisas acontecem. Poucas pessoas conseguem ter consciência que morreram porque a morte não interrompe o curso das coisas. Na verdade, somente as outras pessoas sabem da nossa morte, mas elas não podem nos contar porque quando morremos passamos imediatamente para outra dimensão. Nesta outra dimensão tudo continua muito parecido, pessoas, coisas, tudo que fazia parte de nossa vida continua intacto, a única diferença é que continuamos vivos. Todas as experiências acontecem em planos diferentes. Sempre que morremos significa que algo se partiu, exigindo uma passagem. Esta mudança de planos se esgota quando não precisamos mais das experiências deste mundo. Neste momento acontece “o grande mistério”, que nunca é igual para as pessoas e que não existem registros precisos do que seja.

Fiquei escutando aquelas palavras e pensando que talvez eu ainda estivesse dormindo. Neste momento entrou no quarto uma senhora trazendo um copo com leite. Seu aspecto era muito simpático e gentil. Interessou-se por minha saúde e fez questão de checar se tinha tomado todo o conteúdo do copo. Em seguida partiu. Cibele disse que também precisava se retirar, mas voltaria. Reencontramo-nos no outro dia, quando eu estava de partida. Tentei descobrir quem ela era, o que significava tudo aquilo. Cibele procurou me tranquilizar falando sobre coisas da sua vida. Realmente não sei o que pensar sobre tudo isto. Muitas imagens vieram em minha cabeça: um afogamento, um atropelo, a queda de um prédio. Será que foram também outras mortes? Uma coisa, contudo, não pode negar. Desde aquele dia do acidente algo sutil e, ao mesmo tempo intenso se transformou em minha vida. Não sei explicar, mas me sinto como se realmente fosse uma nova pessoa. Será isso tudo possível?