ACALANTO

Era noite e só, parado na soleira da porta, o poeta relutava em entrar em casa. Tinha saído cedo para dar umas voltas para espairecer, para esfriar a cabeça como se costuma dizer. Na realidade precisa mesmo era pensar para tentar compreender aquela situação inusitada. Na solidão das ruas fizera um longo exame de consciência, um minucioso “meã culpa” para descobrir a origem daquele problema que ora causava tanta indiferença que se traduzia em aborrecimento, tristeza e longas horas da mais absoluta solidão que o estavam conduzindo às raias do desespero. Onde ou em que falhara? O que poderia ter feito involuntariamente que os havia deixado assim? E as perguntas inundavam a sua mente sem qualquer resposta plausível.

Pensava sobre um passado não muito remoto quando a situação era completamente diferente, quando entre eles havia completo e verdadeiro entrosamento. É verdade que não sabia o tempo exato do início de tudo. Suas recordações o levavam até a adolescência e lembrava, não com muita clareza, dos freqüentes encontros daquela época. Eram momentos de puro prazer e encantamento. Os seus amigos do colégio, com uma indisfarçável inveja, elogiam aquela relação tão pura e intensa que beirava a cumplicidade.

Depois, entrando na maturidade esse relacionamento se tornara tão estreito que os encontros passaram a ter freqüência quase cotidiana, quase como uma obrigação. Tantas vezes sonharam, sofreram e vibraram juntos. Tantas foram os momentos lágrimas, de felicidade e de prazeres puros e plenos, quase orgásmicos. Algumas vezes as sensações eram de medo, desânimo e dúvida o que não abalava a relação entre eles. Mas nos últimos tempos tudo parecia haver terminado de uma forma cruel e melancólica e, o que mais o intrigava, sem qualquer razão aparente.

A chave girou na fechadura, a porta foi aberta e ele entrou no apartamento envolto em silenciosa penumbra que parecia gritar a plenos pulmões chamando a solidão, como se isso fosse necessário, como se ali ela já não se tivesse instalado à revelia dele. Ligou o televisor e, como as notícias do telejornal não lhe despertassem o interesse, desligou em seguida. Tudo o que queria era descobrir a razão para tanta indiferença.

Tomou coragem e resoluto caminhou ao encontro dos dois e os encontrou na sala. Em estado de quase catalepsia ele ali parado em silêncio parecia aguardar aquele encontro. Inerte, ela repousava ao lado dele, aparentemente calma e fria, como se ansiasse por um toque, por um carinho que a fizesse despertar, que lhe devolvesse o vigor de outrora.

Depois de breves minutos de hesitação que pareceram séculos, vencendo os receios e as angústias que o haviam bloqueado nos últimos meses, o poeta tomou em suas mãos a caneta, com o respeito de quem toca em um objeto sagrado, e arrancando da alma as imagens ternas que pacientemente ali haviam ficado a espera daquele momento, com letras fortes e trôpegas, como os passos de um bêbado, na alva face da folha de papel escreveu um poema saudando o amor e a vida, o primeiro após a sua hibernação e que possibilitou o seu reencontro com a poesia.

Naquela noite a caneta, o papel e o poeta, depois de uma longa e angustiante espera, dormiram tranqüilos sob o mágico acalanto da poesia.