A Sociedade Mitológica Brasileira

Cansado dos exageros das crendices populares e de solitárias aparições, o Uirapuru decidiu organizar seus membros. Resolveu montar a Sociedade Mitológica Brasileira. Para isso, precisava falar com cada uma das lendas, mesmo sabendo que isso não seria tarefa fácil.

Como era verão e trovoadas eram muito freqüentes na região, jogou uma rede na direção de um redemoinho de vento e fez o seu primeiro convite, o Saci-Pererê. Voltando para casa, em meio à tempestade que se seguiu, avistou uma bola-de-fogo amarelo-azulado que sumia e aparecia, foi desta forma que conseguiu falar com o Boitatá e fazer seu segundo convite. Para o terceiro localizou uma família que gerou somente filhos homens, e contou a sua idéia para o Lobisomem, o casula. Foi até a igrejinha da cidade e perguntou para as beatas onde o ex-padre tinha constituído sua família, pois sua esposa seria a quarta convidada, a Mula-sem-cabeça. Para o quinto convite, colocou sua melhor roupa e voou para uma famosa domingueira onde tinham as mulheres mais belas da cidade, esporádico reduto do Boto. Aproveitando a mesma festa, seguiu alguns homens que estavam hipnotizados por um belo e suave canto a beira de um rio, lá encontrou Yara, o sexto membro. O que parecia ser mais fácil de convidar deu muito trabalho. O sétimo componente não parava um só minuto de trabalhar, custando alguns dias do pobre Uirapuru, o ocupadíssimo João-de-Barro. O oitavo convidado para a sociedade foi encontrado na floresta enganando e atrapalhando os caçadores para proteger os animais, o Caipora. O nono e último convidado nem precisou de convite. O Bem-te-Vi sabe tudo, já teria se escalado para fazer parte do grupo.

Dez mitos brasileiros, reunidos para diversos tipos de discussões. O Uirapuru tinha um grande desafio. O convite estava feito e todos aceitaram, mas como e onde fazer essa reunião para conseguir contemplar personalidades tão fortes e tão diferentes. Mas o astuto Uirapuro, anfitrião nato, precisava só pensar um pouco para resolver esta situação. Ele sabia que isso era de tal importância que poderia mudar, para sempre, a história mitológica brasileira, para melhor ou pior.

Ele tinha um tempo razoável para a organização, mas não queria falhar. Tudo foi arquitetado minuciosamente. O encontro foi marcado para as onze horas de quinta feira de lua cheia do mês de agosto. Dessa forma facilitaria o comparecimento do Lobisomem e da Mula. Numa antiga capela na beira de um rio foi o local escolhido, assim Boto e Yara se sentiriam bem à vontade e poderiam transmitir seus mais fortes desejos. A reunião deveria ter um tempo limitado. Foi um pedido do João-de-Barro, pois tinha que levantar cedo e tinha deixado sua linda esposa em casa sozinha. Tempo curto também era essencial para que a Mula, sempre estressada soltando fogo pelas ventas, não se irritasse e fosse embora mais cedo. Aproveitando todo esse calor, o Saci sentaria a direita e o Caipora a esquerda da Mula, para que poderiam acender seus cachimbos e cigarros. O cardápio também foi especial para cada membro, principalmente nas iguarias exóticas do Boitatá, Mula e Lobisomem. Árduo trabalho, porém prazeroso para o Uirapuro que aprendeu a importância de desenvolver sempre a arte de ser um anfitrião.

O Uirapuru foi nomeado presidente da sociedade. O Bem-te-Vi ficou responsável de fazer as atas e sempre trazer as novidades do mundo mitológico. O Boitatá foi nomeado tesoureiro por estar acostumado por tal função. O Saci ficou responsável pelo entretenimento e pela sonoridade dos encontros com seus atabaques e tambores. O João-de-Barro de fazer uma sede fixa para a sociedade e o Caipora o responsável da segurança e vigilância. Boto e Yara não assumiram nada de importante, pois estavam mais preocupados com a sedução e os carinhos um com o outro. Mula e Lobisomem pouco falaram e em nada se prontificaram, mais pareciam à vontade.

O Uirapuru conseguiu juntar e organizar dez mitos com maestria. Todos reconheceram todo o seu trabalho e dedicação incondicional e prometeram se prepararem melhor nos encontros que virão na mesma lua cheia de todos os anos. Com certeza na próxima o Uirapuru conseguirá uma maneira de fazer com que todos interajam mais, de armar situações para que cada membro se sinta mais a vontade ainda e mostrem seu lado verdadeiro. Depois de séculos escrevendo canções e livros, ele percebeu que é dele a responsabilidade de se fazer entender para abranger suas idéias pelo mundo mitológico. Segue a busca eterna do anfitrião perfeito.

Mesmo trezentos anos após a primeira reunião continua o mistério. Uma nova lenda se formou. Coisas estranhas acontecem nesta noite no mundo comum. Espere a próxima lua cheia de agosto.

(Jean Paulo Reichert com colaboração de Diego Schmidt)

Jean Paulo Reichert
Enviado por Jean Paulo Reichert em 10/02/2011
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