HOJE É DIA DE INVENTAR
A mesmice quis chegar mas eu disse pra ela que estava muito ocupado criando coisas. Ela insistiu e eu disse: -Tá bom, pode chegar... Mas, não se demore, pois não tenho muito tempo para você.
Ela sentou-se, cruzou as pernas e foi logo tirando um cigarro.
Eu olhei para ela e perguntei: mas, de novo? Você não havia prometido que iria parar?
E ela: prometi mas não dei conta. Já me acostumei. Faço isso todos os dias... Aliás, a todo o momento. É sempre assim o meu dia... Baforar, baforar... Meus dias são assim... Um cigarro atrás do outro...
-Mas, por que você faz isso?
E ela: para passar o tempo.
E eu lhe disse: mas o tempo é tão precioso, minha filha. Veja: você podia pensar em fazer tantas coisas... Aproveitar melhor o seu tempo...
- Por exemplo? – perguntou-me ela, ainda soltando círculos de fumaça pelo ar...
Olha, vou te dizer: você já pensou em ter um projeto de, a cada dia, fazer-se diferente?
- Fazer-me diferente? Como se eu sou sempre a mesma? Se meus dias são todos iguais? – indagou, já terminando aquele cigarro e acendendo outro.
Olha, amiga. Pense numa coisa: o que acaba com a gente é não ter a capacidade de inventar coisas novas, diferentes. Fazemos sempre as mesmas coisas porque não queremos nos aventurar. Temos medo do novo. E, assim, criamos uma zona de conforto e ali ficamos. E o tempo vai passando e a gente vai ficando cada vez mais igual ao que éramos ontem. Passamos a ser como o cotidiano: vivemos de coisas banais. Nada fazemos de significativo. E vamos repetindo sempre a mesma ladainha de uma vida sem sentido.
Olha só: geralmente quando saímos para comer, vamos ao mesmo restaurante de sempre. Para quê? Comer a mesma comida. E então saímos para ir a um bar. Vamos com as mesmas pessoas, ao mesmo bar, para falar das mesmas coisas de sempre. Os mesmos assuntos, as mesmas piadas que sempre contamos, as mesmas que estamos acostumados a ouvir. E bebemos as mesmas bebidas. E acabamos tomando o mesmo porre e tendo também a mesma ressaca que sempre tivemos. Passamos mal, vomitamos, juramos que nunca mais iremos beber... Até a próxima saída... Quando começamos a fazer as mesmas coisas, do mesmo jeito. A gente fica parecendo um disco arranhado, destes que se engancham e ficam repetindo o mesmo refrão.
A essas alturas a mesmice abriu uma carteira reluzente, prateada, e de lá tirou mais um cigarro.
Desafiou-me: tá vendo? Essa é uma carteira nova, comprei ontem. Isso é uma novidade...
Olhei para ela e não acreditei naquilo. Realmente. As pessoas pensam que fazer algo diferente na vida é comprar um novo modelo de qualquer coisa. Ah... os celulares... A cada dia são lançados novos modelos. E as pessoas pensam que se tornam diferentes por usarem o mais recente lançamento dessa parafernália da telefonia móvel. Estão apenas fazendo uma maquiagem na mesmice de sempre. Seguir os modismos é terrível. Quando você sai, vai a um shopping, vê a maioria das pessoas usando roupas muito iguais. As mesmas que se incita ao consumo através das novelas... E as pessoas ficam iguais às personagens das novelas. E as pessoas acabam ficando todas iguais, como se fossem robôs vindo de uma mesma fábrica. Produzidas em série.
Eu olhei para a mesmice e lancei-lhe um desafio. Menina, pense bem. Cada vez que você quiser pegar um cigarro, no lugar, pegue uma caneta ou um lápis. Pode até colocar na boca, pois, afinal, são também arredondados. Então: dê uma tragada bem funda na caneta. Inspire-a. Inspire-se. Depois solte uma baforada de palavras sobre o papel. Espirale um poema, uma crônica, um conto novo, um haicai, um poetrix, sei lá. Invente um novo gênero de escrita. Cronopoema. Haicaitrix. Sonetrova. Cordeliso. Romanconto. Contorama. Criazen. Tautomix. Sei lá. Crie. Faça algo novo. Afinal, sempre é dia de inventar.
A mesmice ficou me olhando pensativa. O cigarro estava chegando ao fim. Nem esperou que se acabasse. Jogou-o fora. Disse-me: olha, eu já fui uma grande escritora. Mas fui me decepcionando e fui murchando. Troquei a caneta pelos cigarros. Minha literatura virou fumaça, literalmente. Mas, sempre é tempo de se retomar algo na vida. É uma questão de tempo. Mas... Deixa prá la. Não quero mais falar disso. Olha, eu trouxe um presente para você. Um símbolo, algo especial.
Enfiou a mão rapidamente na bolsa. Tirou de lá uma coisa que eu nunca havia visto antes. Uma coisa reluzente, que tinha o brilho dos cristais, as cores do arco-íris, reflexos multicoloridos e que, ao se movimentar, emitia um som de pequenos sinos, muito agradável. E exalava um perfume entre a mirra e o jasmim. Fiquei fascinado, hipnotizado, sem entender como um objeto tão estranho pudesse sair assim, de repente... E logo de onde? Da bolsa da mesmice.
Estendi minhas mãos e peguei o objeto. Um frio, ou calor, sei lá o quê percorreu-me todo o corpo. Eu senti um leve tremor, uma vibração que vinha do estranho objeto. Era uma sensação diferente, algo que eu nunca havia experimentado em toda a minha vida. Agradável e inquietante ao mesmo tempo. Fui levado a fechar os olhos. Imagens, recordações, visões estranhas começaram a aflorar. O tempo. Pareceu-me que eu estava suspenso no tempo. Não sei quanto tempo durou aquele alumbramento.
Quando abri os olhos, a mesmice já não estava mais ali. Tinha ido embora. Notei que o objeto ainda estava em minhas mãos. Fiquei olhando-o e sentindo o seu pulsar. As cores se multiplicavam e reluziam como num caleidoscópio. Tentei pegar um cigarro. Mas vi que aquilo não tinha mais nenhum sentido para mim. Alguma coisa diferente havida acontecido. Algo se quebrara.
Afinal, eu tivera uma revelação especial: a mesmice me havia feito pensar que na vida, mesmo as coisas iguais, as coisas repetitivas podem nos levar a uma nova dimensão. Sempre é tempo de se descobrir algo novo. E esse algo novo sempre esteve bem ao alcance da mão. Às vezes o carregamos conosco dentro da nossa bolsa. Só que não temos coragem de tirá-lo de lá. E ficamos nos sentindo prisioneiros do dia-a-dia, das repetições intermináveis, prisioneiros de banalidades que nos assaltam a cada instante. Prisioneiros de nós mesmos e de nossas estranhas compulsões para a mesmice de cada dia.
E sabe o que foi que eu descobri naquele dia? A mesmice não era nenhuma visitante estranha. A mesmice era eu mesmo, com meus cigarros, com minha caneta abandonada, que há muito tempo não produzia um só poema. Quanto mais uma crônica-conto como essa....
“Hoje é dia de inventar.” Era o que estava escrito no objeto reluzente que trago sempre comigo: a capacidade imaginativa, um dom que Deus nos dá a todos. Um talento que não pode ser enterrado.