Nevasca

- Mestre, acredito que eu deva mesmo ir a busca do clã Taigasu Kusa.

- Yuki, não sei se é hora de partirmos...

-Mestre, O senhor não me entendeu muito bem. Eu irei e o senhor fica. Quem cuidaria da defesa do reino enquanto estivéssemos nos dois fora? Eu imploro que me deixe ir.

Aos poucos o mestre pensou. Parte de sua mente buscava os campos de seu vilarejo, relembrando a tragédia e invasão do clã Taigasu Kusa, outra parte processava o ideal de deixar ou não seu pupilo ir a uma busca tão perigosa.

“O caminho do discípulo é feito por ele próprio, Hayabusa”. Era a voz de seu mestre que lhe surgiu à cabeça.

Difícil era deixar uma pessoa, que era para ele um filho, ir embora tão solenemente como o vento que a trouxe. O mestre lembrava-se como se fosse neste próprio instante, o dia em que teve na porta de seu Dojo algumas rápidas batidas e uma mulher desesperada que minutos depois entrava, pedindo que escondesse seu pequeno bebê do maldito clã que circulava em sua busca.

Demorou na conversa, exigiu uma pesada explicação da mulher, até que em fins ela contasse sua história, suas origens. O bebê e ela eram do vilarejo onde o clã dos Taigasu vivia. O marido era um dos guerreiros mais próximos do Shogun, caçava nomes malditos para o clã, cobrava os impostos infiéis dos mais necessitados, abria lacunas nos peitos cujos corações batiam ainda que abertos e em derrame. Nasceu então aquele bebê, e o coração do futuro Samurai amaldiçoado se derreteu como que uma lasca de gelo imantado ao azeite quente. Havia traído então, a confiança do Shogunato, e como um traidor do próprio sangue fora caçado. Traidor verídico do sangue, dizendo-se de passagem, já que todos naquele clã tinham algum laço familiar, alguns mais rebaixados por pertencerem assim, logicamente, à classes mais rebaixadas.

Aquele era um traidor de mãos cheias até a boca, traidor de linhagem muito bem elevada. Era o Irmão mais próximo do próprio líder dos Taigasu Kusa.

Logo a mulher fugiu deixando o bebê em responsabilidades do mestre. Ela avisou que iria fugir da região junto com o homem que amava e encarecida pediu que o homem em toda sua bondade fizesse o tal favor de amparar seu tão estimado garoto “branco como a neve”, como ela mesma nomeou. E este fora o seu nome, aproveitado da idéia da mulher e escolhido pelo próprio velho: Tsurugi Yuki, “A Espada da Neve”. O garoto foi crescendo e aprendendo os segredos do estilo de espada do mestre Hayabusa. Mil espadadas à esquerda, Duas mil a direita até que o frio fosse cortado pela lâmina e se curvasse aos seus comandos.

Em um dos treinos o menino cortara-se na região do ombro direito com um pequeno filete de sangue que se escorreu, e o velho mestre então com cuidados redesenhou a pequena cicatriz no ombro em um desenho de floco de neve. “Branco como a neve”, indagava-se ao espelho, observando seus contrastes feitios, a pele branquíssima, os olhos como duas amêndoas enegrecidas e os cabelos de fios escorrido, negros que refletiam um fogo enegrecido de luto em um acastanhado quase morto por esta aptidão tão tristonha como o semblante de um réquiem.

Alguns anos depois, integrantes do Taigasu vieram até Kiba, à procura do filho do traidor do sangue do Shogun, A busca se entupia pela cidade como os ralos mais decaídos de um lavabo saturado, Obrigando o mestre a tomar medidas drásticas. Fugiram à noite pelas rondas de suas preciosas guardas, seguindo o destino que a roda dos ventos imaginária os levasse. Deixaram para trás pertences tolos, sorrateiros e continuaram seguindo, mas também viram serem saqueados os relicários mais importantes da cidade, onde havia armas sagradas do templo e coisas do gênero.

Caminhando por muitos dias e fazendo estes dias tornarem-se semanas, Chegaram a um distrito interessante. Aqui nada era ornamentado como Kiba, Aqui os castelos eram de pedra sobre pedra, Havia bandeiras vermelhas e douradas que flamejavam nos topos das balaustras e das sacadas, e um leão que rugia parado em casa uma delas fazia continência à chegada dos dois, mestre e pupilo. Até que repararam que o vermelho vivo não irrompia somente do castelo, mas também do vilarejo que já era engolido por uma enorme salamandra de fogo.

Atraída pelo fogo a neve corre em socorro dos que precisam de alento e da calma do frio, da cura das feridas abertas como uma flor cármica na cera da carne. Os arruaceiros estavam por ali se vangloriando do abuso de poder e destruindo com o fogo tudo aquilo que na cidade poder-se-ia considerar alegre. Não eram em grande número, mas o fogo quando se alastra torna-se melhor do que mil, torna-se um. A neve e seu nevoeiro mestre com muita relutância colocaram um fim na volúpia daquelas chamas e a cidade toda os agradeceu, a não ser a parte que à cidade já não mais pertencia e que pertenceria agora à cidade dos túmulos.

Hayabusa pediu então ao Reino do Leão algum abrigo, algum lugar que estes dois viajantes pudessem se instalar, e se assustou ao ver da cortina do salão irromper uma voz vinda de um Leão imponente a mandar os guardas oferecerem então uma das melhores choupanas da região para os guerreiros da neve, contando que não utilizassem mais de nada aquilo que fosse oriental, para não proclamar aos olhos do povo a apologia dos guerreiros que não fossem dali.

Era muito estranho e extremamente doloroso às saudades do costume, abrir mão de regalias como Soba, Sushi e outros pratos típicos de seu amado território natal, trocados agora pela costela gordurosa que saia das brasas e que mantinha besuntado os dedos dos guerreiros mais bárbaros e sem modos. Por mais confortável que tentassem cair, era estranho vestir daqueles mantos vermelhos e dourados acompanhados de armaduras tão benevolentes pelo corpo, usufruir de panos mais rígidos e não dos quimonos bordados.

Quanto às armas que tinham, inteligentemente o mestre transformou as katanas que traziam em dois sabres magníficos, reaproveitando as lâminas, sem ao menos tocá-las em modificação, para não descalibrar a qualidade do corte sereno.

Resolve partir, leva consigo o consentimento de seu mestre que fica para zelas pelo povo do reino do ocidente, Sorte ou azar, ninguém conhece, mas ele leva consigo numa caixa escondida, um sagrado bastão de bambu que segundo seu mestre, faria talvez a neve reconhecer os segredos mais profundos que ela ainda não sabe que sabe.

Em seus sonhos, Yuki então vem sendo chamado, procurado, perseguido e das meditações do alto dos tigres rajados, trazia consigo a determinação de ir em busca da destruição do maldito clã Taigasu Kusa, sem ao menos saber que iria iniciar uma caçada à pele daqueles que também compartilhavam com ele as fórmulas secretas de um mesmo sangue carmim.

“O Samurai mergulhado num sincretismo de sua própria honra vai à busca do seu destino.”