Victório Le'Scott
1-Tigre &Raposa
Os dois olhos se fitaram num grande desperdício. Não era atenção, não era acaso, parecia estar tudo planejado para acontecer naquele momento exato. De primeiro instante não se viram, não se ouviram, foi apenas uma ação, um sussurro e gente aos poucos sendo espantada dali.
A pequena raposa assustada transformara-se em mulher de orelhas grandes e felpudas, um raro espécime entre humano e canídeo, suficientemente diferente para que os homens que pescavam em volta tentassem-na prender com suas redes: Não era um daqueles peixes diferentes, disso tinham certeza, mas renderia um ótimo lucro, ainda mais se a vendessem à marinha, se aquele caso chegasse à boca dos poderosos.
Aos poucos, pescadores tornaram-se pescadores de gente, seqüestradores do mar. “Aberração!” gritavam, tornavam a gritar. ”Monstro”. Soltavam murmúrios de glória e de surpresa, faziam força juntos e tentavam prende-la nos trançados das telas marinhas. Com muito custo, a menina raposa se enroscou, transformou-se em uma pequena vulpes, debateu-se, mas ao final de suas forças, desistiu.
Fora neste momento então que os olhos se cruzaram fazendo um sentido imenso. O garoto por ali andava, vira com certidão a injustiça com o pobre animal, vira os quatro homens que com sucesso agora carregavam nos ombros a rede cheia, uma emboscada certeira e pegajosa.
Sustentou para ela o olhar, nos olhos que pediam ajuda a pequena criaturinha. Como um tigre branco das florestas alvas, caminhava petulante com os pés na neve. Por alguns segundos parou, desceu a aljava que trazia no ombro e escolheu uma das três espadas que tinha ali. Eram katanas belíssimas e cheias de singularidades. “Esperem, parem onde estão!” falou já carregando consigo a lâmina escolhida, que não tinha em seus intermédios nenhuma guarda. Os homens relutaram ao perceber que se dirigia a eles, não deixariam que um garoto tão minúsculo se aproximasse daquele exemplar tão raro que haviam capturado.
O garoto carregou a aljava para perto de si, e a deixou em uma distância de alcance perfeito. Três dos quatro arruaceiros vieram, o garoto com os olhos de lince avançou alguns passos cortando o ar e as consciências. Com o golpe que das mãos ramificavam, desarmou um oponente, estatelando-lhe a muitos metros de distância o sabre. Os outros dois vieram e de um salto para trás, esquivou-se da lança e do cutelo, alcançou a aljava e desferiu um golpe a cada um dos pescadores, cada um atingido por uma katana diferente, sem ser desembainhada.
O homem que carregava a pequena raposa soltou bruscamente a rede ao chão. Da cintura sacava duas adagas. Partiu rápido para o combate frente a frente, tinha uma técnica esguia, mas muito precisa. Acertara dois ou três pontos do garoto que seriam fatais se não ficasse por conta das esquivas. Mais uma vez, alcançara a aljava, armando-se novamente com a espada sem guarda. Recuou em alguma distancia notável, com os dentes destampou de uma garrafa a rolha, embebendo toda a superfície do corte. Um risco, uma faísca, fez-se a luz! A espada flamejava e tinha no metal da sua honra a vida tremeluzente das salamandras mal despertadas. Passos, passos e um golpe cruzado.
“Espero que esteja bem, pequenina” falou em tom baixo mais como uma afirmação para si mesmo do que com a intenção de verdadeiramente dirigir-se ao minúsculo ser que na rede se contorcia.
Ao tentar se aproximar percebeu rosnados, seria difícil conquistar a confiança do ser que naquele ponto já devia ter sido envenenado pela visão destorcida das maldades humanas.
As cordas estavam cortadas quando percebeu por si mesma a audaciosa vulpes. O caminho estava livre e ela enfim poderia sair. Correu o máximo que pôde, passou por entre as pernas do garoto e chegou a um ponto instantaneamente inalcançável. Num ponto de miragem, a neve parecia ter se contorcido, a raposa transfigurara-se em uma linda menina cujos cabelos laranja reluziam e chamuscavam o branco da nevasca, apagando o verde dos pinhos à volta. Ela virara-se e lançara por cima dos ombros, num olhar de soslaio, um pequeno sussurro que dizia em poucas sílabas um “obrigada”.
Quando se voltou à sua frente, de costa para o olhar de felino severo, começou a correr, a escuridão por completo a roubara de si mesma, sua ultima sensação fora a do abraço ao solo frio e perpétuo pelo branco que a escuridão dos olhos já levara.
Braços de contrastes dispares: um límpido e o outro marcado por uma longa tatuagem de tigre listrado, pelos flocos conseguiram plaina-la até um teto que lhe trouxesse um porto seguro. Por ali mesmo ela adormeceu.
Quando despertou, sua vista podia fitar aquelas retinas cujas pupilas se cristalizavam como um imenso mar negro de felinos selvagens.
“Muito prazer, meu nome é Victorio, Victorio Le’Scott” disse baixinho então, pela primeira vez.
2- Cicatriz
“Eu odeio estas duas marcas em meu rosto, Vick-San! Por causa destas malditas marcas, os humanos normais me desprezam, os humanos normais me excluem”.
Completaram-se um ano e alguns meses desde que os dois se conheceram, Victorio estava sempre ocupado, concluindo suas tarefas de navegação da escola em que morava, acolhido pelo diretor Heihashi. Estava há muito tempo encabulado com este complexo da pequena menina raposa, ******-Chan (nome a selecionar ainda) como a chamava.
Maquinava sempre algo em sua cabeça, alguma fórmula mágica que pudesse fazê-la parar e aceitar-se como bem era feita, e tão como especial era, mesmo com suas diferenças. O garoto seguia e mantinha a sua fé.
Sua paixão era navegar, Todos os dias o mestre lhe ensinava algo que lhe pudesse coordenar a direção dos ventos, e também os desenhos de mapas que esboçava no papel apontavam uma direção na rosa dos pontos cardeais: A grande rota que o faria novamente ver Alastor.
Abandonados ao destino de órfãos, Victorio e Alastor, seu irmão mais velho, encontraram na Escola de Navegação um lar acolhedor, e descobriram que o mar seria uma casa ainda maior que teriam de desbravar. Muitas das vezes por semana tinham aulas de uma arte marcial muito peculiar, o Soo Bak, onde com o dom dos pés e da espada, os irmãos Le’Scott foram nomeados os tigres brancos do mar.
Mas o mesmo mar que traz a sorte separou o destino dos dois. Um grupo de piratas parados no cais conquistou a amizade de Alastor e ele partiu na tripulação os guiando pelos mais bravos mares. “Um dia nos vemos de novo, na grande rota, maninho!” foi o que disse e partiu sem olhar para trás.
Tão pouco tempo depois é que obteve a companhia de ******-Chan, e era ela quem o animava e dava-lhe esperanças de cruzar o mar, de rever seu irmão. Ele gostaria de retribuir a ela tudo o que por ele era feito, gostaria de dar um pouco de paz à cabeça daquela criatura, e foi em meio a uma conversa com Heihashi-Sensei que obteve as fagulhas desta luz.
“Devemos obter a força do caminho que nos conduz. Só conseguiremos entender a partícula do outro quando estivermos como o outro, quando nos propormos a experimentar as sensações que se espelham no próximo, Vick-San!”. Ao fechar seus olhos obteve a resposta.
Apenas uma faca e um fio de lâmina de coragem foram necessárias para a resposta do quebra-cabeças. A lisa superfície da sua face esquerda se corrompeu num escorregão curvado e bem desenhado. Um corte carmim na maçã do rosto escorreu, por um filete de sangue, e agora, Victorio tinha uma metade de face marcada por algo muito semelhante às marcas do rosto da menina raposa.
“Vick-San! Seu rosto, o que você fez?” perguntava chorosa ******-Chan.
“Marquei meu rosto como o teu semblante, assim quando ousares a repetir que odeia estas marcas que tens na face, lembrará que sou no mínimo a metade o horror que tu achas que és”.
Daquele dia então, ******-Chan passou a tocar aquelas marcas diante do espelho como forma de gratidão.