O Professor (Narrativa à Moda de Um Folhetim)
I. Sobre o Falecimento do Professor
J. Macedo, professor de língua e literatura numa das faculdades mais conceituadas do nosso Estado, faleceu numa tranqüila e luminosa manhã de outubro. Ainda que nas primeiras horas daquele dia o tempo tivesse se mostrado um tanto frio e úmido e que tal fato pudesse exercer uma triste influência sobre alguns corações mais suscetíveis ou solitários, não houvera em verdade nenhum indício palpável que autorizasse uma pessoa a afirmar que a natureza se dispunha a chorar a morte do ilustre mestre. Não se percebia no céu nenhum aparente sinal que denunciasse a possibilidade de chuva e nem o serviço de meteorologia apresentara quaisquer predições neste sentido.
Na certidão de óbito expedida por um dos cartórios do nosso distrito, constara apenas que o professor falecera no dia vinte e oito de outubro de mil novecentos e noventa e dois, às dez horas e trinta e um minutos, em conseqüência da falência de múltiplos órgãos, metástases disseminadas e carcinoma broncogênico. Em seguida, informava-se que o falecido não fora casado e que não deixava nenhum filho.
O professor Macedo havia completado cinqüenta e seis anos recentemente. Nos meses que antecederam ao período mais brumoso da sua doença, levara uma existência totalmente reclusa em sua casa localizada num bairro de classe média da capital e seus afazeres e interesses haviam-se reduzido ao magistério e aos livros. Devemos salientar que a atividade docente do nosso ilustre mestre veio se tornando gradualmente esparsa no decorrer da enfermidade que o vitimou, até o momento em que se lhe volveu impossível fazer-se presente em salas de aula. A partir de então, afastou-se inteiramente da sua árdua e digna profissão.
Quanto aos livros, deixo aqui registradas as próprias palavras do professor. Ele sempre afirmara ter duas grandes fontes de inspiração e prazer. Referia-se em primeiro lugar à amizade e à constante colaboração que mantinha para com os colegas de profissão e, em segundo, à literatura. No entanto, pela sua maneira peculiar de ser e de agir, acreditamos que durante a sua vida ele tenha dedicado muito maior afeição e empenho à arte de escrever do que aos pares da docência ou aos alunos da faculdade, ainda que em relação a estes últimos e à sua atividade profissional nada de negativo se lhe pudesse imputar nos longos anos de serviços prestados àquele estabelecimento educacional.
Tal suposição baseia-se especialmente no fato de que o professor não era dado a estabelecer amizades duradouras ou profundas e raramente recebia visitas. Assentara na vida um ou dois companheiros mais chegados e unicamente com eles mantinha algum contato regular e afetivo. Quando se dispunha a abandonar ao que ele se acostumara significativamente a chamar de “a sua toca”, era apenas para percorrer invariavelmente e na mesmíssima hora do dia, o longo percurso que o separava da sua biblioteca particular e do amoroso convívio com os seus livros ao ambiente agitado das salas de aula, atividades estas que aparentemente se complementavam para ele num todo único e harmônico.
Desta forma, portanto, restaria explicado o motivo pelo qual aquela doença rápida e fulminante e a conseqüente condição do enfermo naquele último ano não se tenham feito alvo de atenção ou estranheza para a maior parte dos professores do nosso colegiado. É possível que o desconhecimento quase geral sobre a sua enfermidade tenha decorrido simplesmente em razão do fato de que as pessoas que conviviam diariamente com o professor não tenham conseguido perceber naqueles últimos tempos nenhuma diferença significativa na sua maneira habitual de ser e de conviver. Tanto na sua vida pessoal quanto na atividade docente, o professor Macedo sempre se mantivera afastado do salutar convívio humano. Quase não saindo de casa, levava um tipo de existência que alguns poderiam considerar naturalmente solitária e monótona em muitos dos seus aspectos.
Na verdade, poucos dentre nós havíamos tomado conhecimento sobre o real estado de saúde do professor ou mesmo que ele viesse desde há algum tempo mantendo contatos regulares e constantes com a equipe médica de um hospital da nossa cidade. Seguindo ainda o mesmo curso de idéias, poderíamos igualmente explicar o fato de que com o passar dos anos o nosso digno mestre tenha adquirido nos meios em que freqüentava uma curiosíssima reputação de esquisito e a cômica alcunha de urso solitário e que estas circunstâncias e eventos acabaram por tornar-se para ele num anteparo natural diante de qualquer possibilidade de convivência. Utilizando-nos de uma antiga metáfora literária, ousaríamos mesmo afirmar que o nosso distinto mestre se reservara o direito de isolar-se em sua “torre de cristal”. Finalmente, haveria que se levar em conta que o agravamento da doença nos últimos meses impediu-lhe de fato qualquer contato mais abrangente, levando-o a afastar-se ainda mais completamente da maior parte das pessoas e da vida social.
A enfermidade que vitimou o professor viera se instalando de maneira lenta e insidiosa, desenvolvendo-se sub-repticiamente durante anos. De um momento para o outro, entretanto, resolvera dar sinais de vida, manifestando-se inicialmente através de uma dor crônica e persistente localizada num ponto mediano abaixo de seu ombro direito. Daquele momento em diante e até o dia do seu desenlace, transcorreram-se três meses marcados por sucessivas internações e o emprego ininterrupto de variados e improfícuos medicamentos contra a dor. Durante este curto período, somente os parentes próximos e um ou outro amigo mais íntimo do professor tiveram ciência da sua precária condição, acompanhando o rápido declínio de sua saúde e dando-lhe o apoio necessário naquele momento difícil.
Soube-se, posteriormente, que o professor padecera de intenso sofrimento físico e espiritual em seu último ano de vida. Se digo espiritual é por me sentir motivado, na presente circunstância, a supor que o cérebro e a mente do paciente tenham se mantido sadios e capazes durante todo o seu percurso final, denominado pelos médicos que o acompanhavam como a fase terminal da sua doença. É de se acreditar, portanto, que o velho mestre tivera plena e total consciência da sua decadência física e de que percebera, ainda que inutilmente, estar vivendo os seus derradeiros dias.
Nos jornais vespertinos daquele dia sairiam dois ou três anúncios comunicando o falecimento do professor Macedo e indicando a hora e o local do seu sepultamento. O primeiro deles fora encomendado por alguns dos seus colegas de magistério, os professores Athaíde e Gilcélia e a coordenadora de literatura estrangeira, Sra. Ângela, velha amiga do professor desde os tempos da juventude. Ao lado de um outro personagem que apresentaremos ao leitor no próximo capítulo, a Sra. Ângela tornar-se-ia uma das pessoas que mais proporcionaria conforto e alento ao finado professor Macedo.
Outro anúncio fora mandado publicar pela irmã mais velha do nosso mestre e por sua distinta filha, a bela Senhorita Laura. Além destas duas parentas mais próximas, o professor possuía ainda um outro irmão que havia emigrado para o Rio de Janeiro em meados da década de oitenta e que desde então não mais remetera quaisquer notícias suas para a família. Ele reapareceria em nossa cidade dias depois do sepultamento do professor para requerer a parte da herança que julgava lhe caber por direito.
Um terceiro e último anúncio fora custeado pela Sra. Armênia, velha e zelosa governanta do professor. Esta digna anciã era a responsável por todas as tarefas domésticas no lar do nosso mestre e, para dizer toda a verdade, cuidava da casa e dos pertences do professor com um carinho quase maternal. Todas as manhãs, tão logo o professor se dispunha desabaladamente à caminho da faculdade, ela se devotava a por alguma ordem na extensa desorganização do dono da casa, a arranjar-lhe os documentos e apontamentos irremediavelmente anotados em dezenas de folhas de papel espalhadas sobre a mesa de estudos e posteriormente transferidos para uma série de brochuras e cadernos que lhe ocupavam a décima parte da biblioteca. Nesta tarefa, a governanta dedicava-se com especial atenção e desvelo na limpeza e ordenação dos volumes acomodados nas sólidas estantes de metal.
No decorrer daqueles últimos vinte anos a mulher demonstrara diariamente ao professor um grande apreço e afeição, tendo-o quase como a um filho querido e primogênito e expressando-se numa amizade que em muito extrapolava a simples relação existente entre patrão e empregada. Não se poderia cogitar que com toda aquela dedicação a governanta esperasse obter do professor algo mais do que o seu justo e merecido pagamento mensal.
No entanto, tal afeição não se fizera em vão. J. Macedo tinha pela velha governanta a mesma consideração e soube reconhecer-lhe postumamente a amizade e os anos de serviço prestados. Num gesto final extremamente largo, expressivo e piedoso, deixou-lhe por herança um pequeno montepio que lhe garantiria dignamente a existência até o último dos seus dias e que deveria ser depositado mês a mês numa conta bancária aberta exclusivamente com esta finalidade numa das agências da Caixa Econômica Federal.
Sinto-me um tanto constrangido neste princípio da narrativa diante de alguns fatos que ainda agora reluto em registrar. Mas, vá lá ! Por que não vos dizer tudo de uma só vez !? As ações humanas neste mundo são várias e o julgá-las cabe apenas ao Bom Deus. O caso foi que após o lamentável passamento do professor, travou-se uma acalorada batalha judicial entre a irmã e o irmão do nosso mestre pela divisão e partilha dos dois únicos bens que o falecido havia adquirido durante a sua nobre e plácida existência, a casa onde passara a maior parte dos seus dias e uma pequena propriedade rural localizada nos arredores de uma cidadezinha do interior de Minas.
II. Onde Se Trata da Publicação de Algumas Poesias Numa Revista Feminina de Modas E de Como Travaram Conhecimento o Aluno e o Professor
Entre aqueles que tiveram a honra e o privilégio de privar nos últimos tempos da sábia convivência com o finado professor Macedo, encontrava-se um dos estudantes mais talentosos e capazes que já passaram pela nossa Faculdade de Letras. De batismo e por influência direta de seu pai que na juventude dedicara-se com interesse e afinco ao estudo do estóico filósofo romano autor das “Meditações”, recebera o nosso estudante o nome de Marco Aurélio. Na faculdade, entretanto, tornar-se-ia conhecido popularmente pelo apelido de Coréia, forma carinhosa e diminuta como era chamado por seus amigos e colegas de estudo.
Era este Marco Aurélio um jovem um tanto alegre e comunicativo, inteligente e, sobretudo, de muito boa índole. Embora tendo se sobressaído como excelente aluno em diversas disciplinas do curso, não perdera aquele ar crítico, espirituoso e divertido, próprio dos rapazes a quem restou um bocado da infância na idade adulta.
O vínculo quase filial que se estabelecera entre mestre e aluno principiara na época em que o professor tivera publicadas algumas de suas poesias numa revista feminina de modas. Tais versos, ainda que de muito boa qualidade – “boníssima mesmo”, como dizia o velho mestre na sua maneira mansa e cantada de falar – não tiveram, talvez, a acolhida que mereceriam e passaram totalmente despercebidos pela crítica literária e jornalística do nosso estado.
No meio estudantil, no entanto, o professor, que já se fizera um tanto célebre enquanto educador, tornou-se depois da publicação daquelas poesias ainda mais conceituado e requerido pelas novas gerações de alunos, escrevinhadores e apreciadores da boa literatura, principalmente no círculo dos jovens poetas ligados ao curso de letras, no qual transitava o nosso Marco Aurélio. A juventude literária carrega sempre o desejo mágico de ver surgir do seu próprio ambiente um grande poeta ou escritor de renome nacional e nesta época de sua existência o Professor Macedo acabara de algum modo obscuro por incorporar em sua pessoa aquela missão. Neste sentido, portanto, pode-se afirmar que o professor tivera o seu momento de glória na nossa comunidade de alunos e professores, nela participando algumas vezes como organizador e noutras simplesmente como convidado especial em congressos e seminários de literatura promovidos pela faculdade.
É de se fazer notar, igualmente – inclusive pelo que tal fato implica em relação ao respeito e à consideração concedidos nesta época ao nosso mestre – a comoção geral que tomou conta dos demais membros do colegiado de letras. O professor Athaíde, um dos poucos mortais que lograram obter livre acesso à residência de mestre Macedo, chegara a comentar com a professora Gilcélia ter ouvido casualmente um curto diálogo entre o nosso reitor e o vice-reitor, no qual o primeiro dissera àquele último sobre a possibilidade do professor Macedo vir a ter um livro seu impresso e publicado pelas gráficas da faculdade e distribuído em todo o território nacional.
- “Agora vai” – disse o Athaíde ao professor Macedo, dias depois ao encontrá-lo num dos corredores da faculdade e dando-lhe suaves pancadinhas nas costas. “Tenho certeza que agora a coisa vai para frente. Vais tornar-te famoso, conhecido em todo o país, quiçá no exterior. Vais poder sorver o rubro vinho da glória, seja ele doce ou amargo. Verás finalmente desencaixotadas e impressas algumas das tuas obras”, finalizou de maneira um tanto profética, direcionando-lhe uma piscadela com o olho esquerdo. Referia-se discretamente às caixetas nas quais o professor literalmente armazenava os seus escritos literários.
- “O que é que vai, Athaíde ?! As coisas nunca são tão simples quanto nós queremos ou imaginamos. São apenas algumas poesias, ainda que de boa qualidade, boníssima mesmo, mas que pouco estardalhaço ocasionarão. Ainda mais que publicadas numa revista endereçada exclusivamente ao público feminino. Passarão tão discretas e imperceptíveis quanto alguns milhares de meteoros que cruzam e cruzarão o espaço do nosso azulino planeta no decorrer de cada um dos próximos dez mil anos”, retrucou-lhe o professor, pondo fim àquela prosa que muito parecia incomodá-lo.
Devemos confessar que o professor Macedo pouco ou nada fizera no sentido de ver seu nome impresso fosse no frontispício da página inicial de um tomo encadernado ou numa simples brochura alinhavada, como se se tivesse recuado de antemão ante os possíveis percalços que acaso possa ter imaginado e em relação aos quais - verdade seja dita ! – normalmente se depara um autor inédito para ver-se editado, lido e relido em nossas terras. Ou, por outra, talvez aquela sua maneira peculiar de agir fosse o resultado da contenção natural de um homem experiente, no qual o conhecimento prático adquirido no decorrer da vida houvesse diminuído os ímpetos da vontade ou tivesse feito com que desacreditasse em sua própria vocação e produção literária, impondo-lhe um freio para que não se deixasse levar por qualquer folguedo longínquo e fantasioso. Sabe-se lá o que se passa no coração de um poeta! O correto é que o professor não teve nenhuma outra obra sua publicada seja nesta ou na outra vida – aquela mesma em que pensaste, prezado leitor, a vida do além-túmulo ! -, seja em livro, semanário ou jornal. Sua produção artística e impressa reduzira-se àquelas parcas poesias editadas numa revista feminina de modas.
Igualmente exato seria supor que o professor convencera-se de que já passara da idade de acreditar na possibilidade estardalhante de um reconhecimento instantâneo a partir do lançamento de uma simples coletânea poética. Cinqüentenário, ele se sentira um tanto desanimado diante daqueles versos publicados na revista feminina. Quem sabe um dia, em sua juventude, ele realmente tenha sonhado com algum acontecimento deste tipo, almejando os êxitos da fama e a popularidade do sucesso e imaginando com orgulho algumas de suas obras expostas e vendidas nas prateleiras e vitrines das livrarias de todo o país. É possível que em seus devaneios poéticos, ele tenha se visto adentrando o interior de um destes estabelecimentos e, após apresentar-se ao vendedor, solicitar que o mesmo dispusesse alguns dos seus utópicos livros numa prateleira mais visível do público.
Cabe dizer que o professor realmente não se esforçara por fazer com que a sua literatura se tornasse conhecida e reconhecida do grande mundo. Quando jovem, mal se dera ao trabalho de remeter um ou outro poema para a apreciação de algum escritor ou editor paulista e ainda menos se dispusera a participar em agremiações ou encontros literários, conquanto sempre tivesse mantido um contato esparsado com alguns críticos literários e jornalistas do sul do país.
Finalmente, levando-se em conta a sua vida reclusa e o fato de Minas Gerais ainda hoje não se ter constituído num espaço intelectual propício para a publicação de novos autores, ele acabara por se manter afastado dos dois principais centros editoriais do nosso país, Rio de Janeiro e São Paulo, onde um autor tem necessariamente que se fazer presente para impor-se e divulgar a sua arte.
Na época da publicação daquelas poesias, Marco Aurélio cursava uma disciplina sobre literatura russa oferecida especialmente naquele semestre pelo douto professor. Ao tomar conhecimento da publicação daqueles poemas e de que o Sr. Macedo possuía uma seleta biblioteca composta com obras de todos os grandes autores daquela nacionalidade, o rapaz solicitou-lhe uma visita a sua coleção, o que veio a acontecer alguns dias depois.
Vejamos, então, como se deu a visita do estudante à biblioteca do professor Macedo.
III. Sobre A Visita Do Pupilo À Biblioteca Do Ilustre Mestre E Da Bela E Distinta Senhorita Laura - Intermezzo: Um Amor
Ainda que carregasse aquela tão terrível fama de urso solitário, o fato fora que o professor recebera o aluno de muito bom grado e demonstrando indisfarcável prazer diante do seu jovem visitante. Ao contrário do que era de se esperar, a este último pareceu que o professor se mostrara muitíssimo satisfeito com a sua presença e a julgar pela maneira amistosa como fora recepcionado por seu mestre, não estaríamos de todo errados se endossássemos as conjeturas do nosso nobre rapaz.
Certamente o professor levava uma vida muito solitária. Como todo bom misantropo, algumas vezes sentia uma premente necessidade de se colocar em contato direto com algum outro exemplar dos demais membros da sua própria espécie, além daquele habitualmente observado todas as manhãs no reflexo do espelho de seu quarto de dormir, quando se punha maquinalmente a pentear os poucos fios de cabelo que lhe haviam restado. Aquele, pois, parecia ter sido um dia assim na vida do professor Macedo.
Após os cumprimentos naturais que o verniz e a polidez da civilidade nos impõem, o mestre encaminhou-se com o pupilo para a biblioteca, abrindo-lhe a porta de uma pequena saleta onde de imediato se podia divisar uma poltrona de pano ligeiramente esgarçado num dos braços e uma rústica armação de madeira utilizada pelo professor como mesa de estudos.
Naturalmente o nosso estudante esperava encontrar na residência de seu mestre uma quantidade de livros muito mais vasta e diversificada do que aquela que viu surgir à sua frente, composta por algumas poucas estantes de metal recheadas por três ou quatro centenas de volumes ricamente encadernados em tonalidades frias. Daí a pouco, entretanto, quando começou a percorrer com os dedos e os olhos as reluzentes lombadas das obras que tinha diante de si e a perceber-se com os lábios recitando em meio-tom os seus respectivos títulos, deu-se por satisfeito.
Durante aquela primeira entrevista, Mestre e pupilo como que estiveram isolados de uma parte do mundo e esquecidos da outra metade da humanidade. A intimidade que se instalara naturalmente entre eles e que fizera com que se familiarizassem tão satisfatoriamente talvez decorresse do gosto e da simpatia que ambos nutriam pela literatura russa, embora fosse igualmente possível considerarmos que as características de juventude e vitalidade presentes no temperamento do nosso estudante pudessem ter atuado como um bálsamo sobre a alma do velho professor. Mestre Macedo percebia no jovem Marco Aurélio a mesma ambição artística e intelectual que um dia enterrara definitivamente em seu coração e este fato transportava-o de volta ao passado, atuando nele como um lenitivo e aplacando-lhe as suas próprias desilusões literárias.
Naquela ocasião aluno e professor passaram juntos algumas horas de raro prazer intelectual e artístico, trocando idéias e opiniões sobre a admirável literatura russa, tão vasta quanto a maior de todas as estepes do universo. Entretanto, em dois momentos distintos a porta da saleta onde se encontravam foi aberta, possibilitando aos nossos personagens o acesso a uma outra realidade que se encontrava para além daqueles portais e dando passagem a duas importantes figuras na vida do digníssimo professor Macedo. Num primeiro momento fizera surgir a velha governanta, Sra. Armênia. Ela lhes preparara uma jarra de cristal repleta de um delicioso e gelado suco de caju que aliviou a ambos dos efeitos daquela tarde quente e sonolenta.
Na outra ocasião... bem !, como vos poderia descrever ?! Naquela outra circunstância o acesso à saleta da biblioteca apresentara como que numa prévia e onírica visão dos portões do paraíso, a mais encantadora garota que o nosso rapaz tivera a oportunidade de conhecer, a bela e distinta sobrinha do professor.
A Senhorita Laura era uma jovem de pele extremamente clara, rosto redondo e lábios miúdos, donde pendia um leve sorriso indefinido. Seus cabelos eram ruivos e cacheados e dos olhos castanhos parecia emanar uma névoa de ternura e paz que à primeira vista parecia nos envolver como em brumas. Uma pessoa mais perceptiva poderia facilmente associar aquele sorriso e o ondulado dos cabelos avermelhados à imagem de um inocente anjinho barroco. Marco Aurélio, porém - e mesmo sem saber por qual motivo - ao vê-la, recordara-se vagamente dos olhos e do sorriso enigmáticos de uma certa senhora italiana retratada em tela por um grande pintor renascentista.
Naquele momento, no entanto, não foram os olhos, os lábios finos ou a preciosidade dos cabelos que despertaram um maior interesse na alma e no corpo do nosso estudante. Em verdade o que primeiramente lhe chamara a atenção fora o fato da sobrinha do professor estar usando um vaporoso vestido branco enfeitado com diáfanas florzinhas amarelo-ouro que lhe lembravam Flora ou qualquer outra dama dos afrescos de Botticelli. Dependendo da maneira como a jovem se movimentava, os áureos detalhes daquele vestido acompanhavam os frágeis contornos femininos da sua proprietária, realçando-lhe sutilmente as partes roliças do corpo e fazendo com que as faces do nosso aluno se avermelhassem seguidas vezes.
- Marco Aurélio – disse-lhe o professor – apresento-lhe a minha adorada sobrinha. Laura, venha aqui um minuto conhecer o meu mais brilhante aluno de literatura.
Ainda que tivesse se esforçado muito por manter ocultos os sinais que denunciavam o que se passava em seu íntimo, Marco Aurélio tornara-se novamente um tanto corado. No entanto, percebera-se também algo satisfeito pela maneira como o professor o houvera apresentado para a jovencita ruiva. Apesar de estar ainda sentindo as próprias faces se queimando, a forma como fora dado a conhecer à distinta dama representava uma compensação e de algum modo o tornava maior e mais significativo diante dela. Bem, pelo menos ele assim o acreditava.
A garota aproximou-se e estendeu delicadamente a rósea pontinha dos seus dedos na direção de um coréia ainda enrubescido.
- “Muito prazer, Senhorita... Admiro bastante o Sr. Professor Macedo”, disse-lhe o rapaz meio sem saber o que fazer ou falar, da maneira como ocorreria com uma criança quando se vê surpreendida ao roubar um doce.
- “Muito prazer. Meu tio é realmente admirável”, respondeu a garota olhando carinhosamente na direção do professor. A maneira amorosa como a moça se referia ao tio denunciava a intimidade e a afeição que sentia por ele.
- “Tio Macedo é excelente professor”, continuou. “Foi ele quem me ensinou a ler aos seis... espere, deixe-me ver... aos seis... sete... sete anos, não foi, titio ?”
- “Aos seis”, corrigiu-lhe o professor.
O rapaz esboçou um breve movimento com a cabeça, onde se sustinha um sorriso tolo e indeciso. Se por um lado Marco Aurélio jamais houvera imaginado que ouviria alguém chamando de tio ao seu nebuloso professor de literatura, por outro, e igualmente, nunca lhe ocorrera pensar que o seu mestre, como um mortal qualquer, possuísse uma família, irmãos e sobrinhos, e especialmente uma sobrinha tão encantadora quanto aquela.
- “Meu tio às vezes fala-me de seus pupilos”, continuou a Senhorita Laura. “Outro dia contou-me a história de um estudante que não acreditava que os professores lessem integralmente os trabalhos escolares dos seus alunos. Tio Macedo soube depois que este jovem chegara mesmo a bater o pé perante um grupo de colegas e que fizera uma aposta com eles neste sentido. Para provar a sua hipótese, o incrédulo rapaz entregou ao meu tio uma longa dissertação de cinco páginas repletas de uma letrinha miúda e de difícil decifração. Lá pelas tantas, no meio da sua algaravia e no intuito de tirar a prova dos nove de sua suposição, ele deixara registrada uma quadrinha irônica mais ou menos assim: “Olá, professor Plim-Plim, se ainda estiver lendo este texto até aqui, dê três pulim, há! há! há!!!”. Apesar de ter achado muita graça da pouca criatividade poética do estudante, Tio Macedo viu-se obrigado a chamar-lhe a atenção e o fez propositadamente na frente dos seus companheiros de sala, não foi titio ?!”
- “Exatamente”, confirmou-lhe outra vez o professor.
Na medida em que a conversa seguia em frente, a presença da encantadora senhorita ia produzindo em Marco Aurélio uma deliciosa sensação. Com seu jeito, sorrisos e meneios de cabeça e cabelo, fazia com que ele se sentisse quase próximo dos céus, entre leves nuvens de mágico algodão. Julgava-se assentado entre os deuses todos nas macias poltronas de um Olimpo antigo, colhendo com as régias pontas dos seus dedos alguns dos deliciosos e delicados frutos da parreira e transportando-os lentamente até os lábios, onde a sua alva dentição prazerosamente se dava ao doce trabalho de degustá-los, transformando em si o sumo dos deuses. Sim, era isto mesmo: fora Deus quem o conduzira à casa do seu distinto mestre naquele dia, com certeza fora Deus, pensava ele. A cada instante em que se mantinha na presença da formosa donzela, esta lhe parecia mais e mais interessante e bela. Mesmo aquela pequenina verruga que ela ostentava como uma pérola na bochecha esquerda, adquirira para ele uma graça especial.
Poderíamos afirmar aqui que o nosso jovem estudante começara naquele momento a se interessar pela atraente Senhorita Laura ? Ou deveríamos considerar tal atração apenas como o resultado ou a soma dos efeitos em comum da idade, dos hormônios e da genética no corpo e na mente do nosso nobre rapaz ? Ou ainda, numa terceira hipótese – e nos apoiando num pensamento quase romântico -, estaria ele de fato se apaixonando pela primeira vez em sua vida e, mais especificamente, se apaixonando pela nossa falante Gioconda ?
Talvez uma coisa, talvez outra, talvez todas em conjunto ou nenhuma delas. É tarefa ingrata para um contador de histórias descrever o que se passa no coração de um homem. Muitas vezes, diante de tais dificuldades, batemo-nos em retirada ou, quando muito, nos arriscamos a auscultar-lhe o peito e o pulso para daí nos aventurarmos a extrair algumas possíveis considerações. No presente caso, perceberíamos que os batimentos cardíacos do nosso jovem estudante se encontravam bastante acelerados e descompassados e que as suas faces, volta e meia, voltavam a ficar ligeiramente avermelhadas.
Tudo o mais que se ousasse enunciar sobre os sentimentos do rapaz Coréia não passaria de inútil explicação, frágil ponderação. São tantas e tamanhas as artimanhas e reentrâncias de um coração, os caminhos percorridos, as estradas que muitas vezes não nos conduzem a parte alguma e que noutras ocasiões nos impõem diretamente a discreta via do amor, que seria ingenuidade de nossa parte se de imediato nos dispuséssemos a explanar qualquer pensamento a este respeito baseados unicamente na intensidade ou na freqüência dos batimentos de um coração.
Às vezes, um olhar diz muito mais e pode funcionar como um complemento que, somado a outras observações, nos proporcionam um quadro mais realista e exato das reações e eventos. Na atual circunstância, aquele olhar embevecido e atoleimado que víamos pender nas faces do nosso rapaz poderia evidenciar, sim!, que ele se sentira atraído pela distinta senhorita. Daqui do canto em que nos achávamos na saleta da biblioteca – como um mosquitinho curioso pousado sobre a mesa de estudos do professor, talvez ao lado do primeiro volume de “Guerra e Paz” ou das “Almas Mortas” de Gogol – nos pareceu que se este olhar dizia tanto ou muito ou algo mais, talvez este tanto ou muito ou algo mais quisesse simplesmente significar paixão e desejo misturados e conjugados em variados tempos e modos.
Porém, como tudo o mais em nossa dúbia existência, também o prazer de um agradável encontro e de uma conversa amigável hão de em algum momento encontrar o seu fim. Na presente circunstância, aquela entrevista parecia estar fadada a terminar dentro de poucos minutos. Explico-me: desde há algum tempo Marco Aurélio percebera que a senhorita Laura já se aproximara por duas vezes da janela existente no canto direito da saleta e que se pusera nos últimos segundos a observar com insistente interesse alguém ou algo que se achava na rua contígua à casa. Então, de um momento para o outro, após esboçar aquele seu característico sorriso indefinido e aparentar um brilho diferente nos olhos, voltou-se para o nosso rapaz e concluiu:
- “Desculpe-me, Sr. Marco Aurélio, mas tenho que sair. Distrai-me aqui a conversar com o senhor e acabei me esquecendo de que tinha um outro compromisso. Foi realmente um grande prazer conhecê-lo...”
Terrível momento, prezada leitora. Quem acaso não passou por uma experiência desta natureza que atire a primeira pedra. Não sabe a que estamos nos referindo. Marco Aurélio sentiu-se imediatamente murchando, caindo do alto dos céus em que imaginava encontrar-se, dentre as macias e douradas poltronas do Olimpo. Percebeu dissipar-se de uma só vez aquele áureo instante de alheamento em que se encontrava e tornar à fria e áspera realidade, de maneira semelhante como ocorre quando a névoa da manhã se desfaz no campo e nos permite captar aspectos do ambiente que antes haviam permanecido ocultos à nossa volta.
- “Esperam-me lá fora”, finalizou a garota, dirigindo-se ao estudante.
Em seguida, a Senhorita Laura estendeu uma vez mais a sua delicada mão na direção do nosso estudante e encaminhou-se para a porta. Naquele momento, Marco Aurélio desejou tomar aquela fina mãozinha e, levando-a em direção aos lábios, encher de beijos cada um dos seus dedinhos e reentrâncias. Entretanto, reteve-se a tempo e permaneceu quieto e silencioso.
Antes de retirar-se da sala, a senhorita Laura deu meia-volta e - ou como a querer se desculpar ou como se estivesse prestes a despejar sobre o tio a culpa por ter-se descuidado daquele seu importante compromisso – emendou:
- “Titio, entrei aqui por um único minuto apenas para me despedir, mas o senhor sempre consegue fazer com que eu me esqueça de que tenho outras obrigações. Mamã pediu-me que fosse buscar umas roupas na costureira e é para onde vou indo agora. Se ela telefonar, diga-lhe que já estou a meio caminho.”
Assim que a Senhorita Laura deixou a sala, o jovem Coréia prostrou-se junto aos vidros da janela que se abria para a rua fronteiriça e pôs-se pensativamente a observar a figura de um homem que aguardava a sobrinha do professor do lado de fora da casa, junto do portãozinho de acesso ao jardim do quintal.
- “É o noivo de minha sobrinha. Vão se casar em breve”, concluiu inutilmente o professor, pois Marco Aurélio já não o ouvia e nem conseguiria abarcar totalmente o significado de suas palavras.
Em seguida Marco Aurélio observou quando a garota atravessou esvoaçante como uma borboleta pelo pequenito jardim que margeava o portão de entrada da casa, posicionando-se diante do jovem que a esperava no passeio público. Por ser levemente mais baixa que aquele, ergueu-se quase na ponta dos pés e depositou os seus nos lábios do rapaz. Depois puseram-se a conversar, olhando-se amorosamente. Em seguida, começaram a caminhar de mãos dadas e desapareceram do campo de visão do nosso estudante.
Marco Aurélio finalmente caiu em si e compreendeu o que o professor lhe dissera um minuto antes, permanecendo ainda por alguns instantes em silêncio.
- “Ali ficam algumas obras de outros autores russos”, disse-lhe o professor, buscando retira-lo do seu ensimesmamento e convidando-o a se aproximar de uma outra prateleira de livros. “Poderá encontrar Taras Bulba, Anna Karenina, Os Demônios, os contos e o teatro de Tchekov, os romances de Gorki e muitos outros...”
Passados alguns segundos, sob a aplicação de um extremo esforço íntimo de sua parte, o jovem pupilo foi lentamente conseguindo sair daquele transe letárgico em que se encontrava, dizendo finalmente e num tom de voz baixo, como se quisesse esquecer ou desviar-se de um pensamento ruim:
- “E então, professor, o Sr. prefere Tolstoi ou Dostoievski ?”
Sentia um certo aperto no coração, uma ligeira pontada. Era, talvez, a primeira frechada do amor. Em verdade, Dostoievski e Tolstoi pouco lhe interessavam naquele momento...
IV. “Amigos, Apenas Bons Amigos...”
Quero crer na vida terem os acontecimentos um fim e uma finalidade, indiferentemente do fato de que tenham sido eles percebidos como prenunciadores de bons ou maus desígnios. A realidade, entretanto, é que muitas vezes nós não conseguimos captar-lhes os significados mais profundos, a multidão de possibilidades que não raro se abrem quando uma porta aparentemente é fechada. Os nossos sentidos vêem-se irremediavelmente perdidos na profundidade das águas ou turbados diante de uma verossímil muralha - às vezes um muro erguido com a mais fina e frágil folha de papel e no qual um leve sopro de vento poderia deitar ao chão – que nos impede de percebermos as reais intenções dos deuses ou do destino.
É possível que o nosso leitor ou leitora românticos quisessem ver descritos neste momento, como numa sublime peça musical de final alegre e festivo, a continuidade dos andamentos do romance e a alegre cadência de amor do nosso estudante herói. No entanto, nem sempre um contador de histórias pode satisfazer as vontades do amigo leitor. Não raro, quando nos propomos simplesmente a relatar os eventos na ordem e da maneira como verdadeiramente aconteceram, custa-nos não desvirtuá-los e reinventá-los de acordo com os vossos e os nossos próprios desígnios.
Um único fato eu poderia vos confirmar aqui com absoluta fidedignidade: é que após aquela primeira visita de Marco Aurélio ao professor, muitas outras se seguiriam. Mestre e aluno estreitariam a amizade e, como dito anteriormente, o nosso estudante tornar-se-ia ao lado da coordenadora Ângela, um dos pilares do conforto e do apoio oferecidos ao professor durante todo o transcorrer da sua doença. Em conseqüência disto, igualmente correto seria afirmar que o nosso Coréia voltaria a se encontrar com a Senhorita Laura em muitas daquelas felizes ocasiões.
No entanto, durante todo o período em que mantiveram aquela convivência relativamente próxima, a “amizade” entre os dois jovens não progrediria um “nada” para além de se considerarem apenas como “bons amigos”, principalmente por parte da distinta senhorita que logo perceberia os reais interesses e intenções do nosso nobre estudante. Vemos assim satisfeita a realidade daquela máxima que diz que se cabe ao homem insistir e lutar para atingir determinados objetivos na maior parte dos relacionamentos amorosos da humanidade, cabe igualmente à mulher a aceitação ou a recusa do seu pretendente. Na presente circunstância, lamentavelmente, a segunda opção foi a que veio a prevalecer no destino do nosso herói.
Devo confirmar ainda que numa dada ocasião Marco Aurélio chegara mesmo a se declarar diretamente para a sua linda amada, tentando obter dos lábios da doce jovem algo mais do que meras palavras de aceitação. A Senhorita Laura recebera a declaração daquela forma assaz feminina e possivelmente tão já conhecida de alguns leitores: ainda que em verdade não tenha repudiado de imediato o apaixonado estudante e que houvesse mesmo buscado durante algum tempo mantê-lo preso à deliciosa teia dos seus olhos, lábios e desejos, acabara posteriormente por indispor-se de vez com ele diante de determinadas liberdades a que este se sentira incitado a praticar. Como bem deve estar ciente o leitor e a leitora atentos das suas próprias experiências, assim terminam ou terminaram alguns dos nossos amores, mesmo às vezes aqueles que nem chegaram a se realizar e que tiveram a sua verdadeira existência unicamente no plano das idéias e no reino das sombras.
Abrindo um breve e último parêntese neste final de capítulo, devo comentar que num fim de tarde mais quente que o habitual, após uma daquelas visitas de Marco Aurélio ao professor, este sentiu uma insistente pontada no peito, logo abaixo do ombro direito. O professor solicitou da Sra. Armênia que lhe preparasse uma xícara de chá quente com torradas e se recolhera mais cedo ao seu dormitório. Parecia estar um tanto alheado e abatido e posteriormente tivera um sono agitado durante toda a noite. O mais da sua doença é o que se vê descrito sucintamente na primeira parte da nossa história.
Chegados a este ponto da narrativa, podemos enfim fazer vibrar a guia do nosso carro de bois e seguirmos juntos alguns passos adiante.
V. Sobre a Partilha dos Bens e do Que Foi Feito Com os Livros e Manuscritos do Douto Mestre
Terminada a batalha judicial referente ao processo da partilha dos bens, coube à irmã e à sobrinha do professor a posse da casa na qual este último vivera a maior e melhor parte dos seus dias. Ao irmão do nosso mestre, aquele a quem vimos fulgir e desaparecer de forma meteórica no final do primeiro capítulo, passou a pertencer a propriedade rural localizada no interior de Minas.
Tendo, pois, tomado posse definitiva da casa e amparada com o legítimo consentimento de sua mãe, a Senhorita Laura e o seu noivo decidiram que após o casamento haveriam de fixar residência na antiga casa do professor Macedo.
Para tanto, algumas semanas antes da realização da cerimônia de matrimônio, o jovem casal dirigiu-se ao domicílio do falecido mestre para avaliar as suas reais condições de moradia e proceder ao inventário das alterações que deveriam realizar no intuito de tornar a sua futura residência nupcial mais aprazível e romântica, com ares de juventude e familiaridade.
Lá chegando, foram recebidos pela velha governanta, Sra. Armênia. Esta, à pedido da irmã do professor, continuara exercendo ali os seus prestimosos serviços, mantendo a casa limpa e arejada e em ordem os móveis, livros e antiquados utensílios domésticos pertencentes ao falecido.
Após percorrerem como um casal de amorosos pombos os quartos, salas e demais dependências da antiga residência do professor, tecendo aqui comentários sobre a disposição dos cômodos e ali sobre as modificações que deveriam efetuar no seu velho mobiliário, encaminharam-se para a saleta da biblioteca e puseram-se a ler em voz baixa os títulos de alguns dos volumes constantes das estantes de metal. Numa das prateleiras, observaram com pouca curiosidade uma coleção de caixas numeradas com algarismos que variavam de um a sete, na caligrafia clara e redonda do professor.
O jovem par ocupou-se inicialmente de alguns livros que se achavam depositados sobre a mesa de estudos. Eram três grossos tomos que versavam sobre o declínio e a queda do Império Romano. Talvez aqueles volumes tivessem sido os derradeiros nos quais o professor houvesse tocado, já depois de instalada a sua dolorosa e fatídica doença, comentaram entre si. Quem sabe, tio Macedo não teria lido ou relido nos últimos meses algumas daquelas páginas, questionava-se a jovem nubente. Provavelmente aqueles exemplares haviam sido deixados por ele exatamente da maneira como esperava reencontrá-los na manhã seguinte, depois daquela tão terrível noite em que se deitara mais cedo após sentir-se mal, tendo antes ingerido o reconfortante chá com torradas preparado pela Sra. Armênia.
É mais provável, entretanto, que a presença dos livros sobre a mesa da biblioteca se devesse simplesmente ao fato da governanta tê-los esquecido naquele mesmo lugar na tarde do dia anterior, ao retirar alguns volumes das estantes para proceder à habitual faxina das prateleiras. Mas os nossos jovens nem sequer chegaram a pensar nesta hipótese.
Tomando um dos exemplares em suas mãos, o noivo da Srta. Laura leu em voz alta e pastosa uma breve dedicatória registrada em sua página inicial e endereçada a um conhecido crítico literário e velho amigo do professor, a quem jamais haveria de ser encaminhado.
Em seguida o jovem dirigiu-se até a estante onde se encontravam as caixas de papelão nas quais o professor guardava os seus escritos literários. Segurou uma delas e retirou-lhe a tampa, apoiando-a na borda da mesa de estudos e pondo-se a analisar a qualidade do seu conteúdo. Via-se que eram anotações escritas a lápis numa língua desconhecida do jovem noivo e que se encontravam divididas em grossos cadernos recheados da mesma letra redonda e nítida que estampava a face superior das caixas. Possivelmente seriam roteiros de aulas que a cada novo semestre o professor se acostumara a preparar antecipadamente para a sua nova fornada de alunos.
O homem segurou com ambas as mãos um punhado daquelas folhas e, rasgando-as, jogou-as dentro de um grande saco plástico que fora trazido pela Sra. Armênia à pedido da sua noiva. Em seguida, abriu nova caixa e leu a palavra “poesia” encabeçando dois acanhados volumes. Numa terceira caixa encontravam-se quatro outras brochuras plastificadas e subdivididas sob o título “contos”. Lançou-as igualmente dentro de um outro saco plástico. Noutros cadernos que se localizavam nas caixas numeradas sob os algarismos quatro e cinco, viam-se escritas as palavras “diário íntimo”. E nas duas caixas restantes lia-se “romance: Dias de Chuva”, primeira e segunda parte.
O noivo da Senhorita Laura retirou uma a uma as caixas que restavam. Sem demonstrar um maior interesse em averiguar o seu conteúdo, arremessou-as dentro dos sacos plásticos. No dia seguinte todo aquele material seria recolhido na porta da casa pelo caminhão de limpeza urbana e despejado num nos aterros sanitários da cidade.
***
No final daquela mesma tarde uma camioneta à serviço da biblioteca pública estacionou em frente à residência do professor. Um senhor alto, vestido com um terno preto e usando um burlesco e antiquado pince-nez de ouro, acompanhado por dois corpulentos ajudantes, tocou a campainha da casa e pôs-se a esperar em silêncio por cerca de um minuto. Impaciente com a demora, o homem do pince-nez de ouro direcionou uma vez mais a ponta do dedo indicador ao botão da campainha e pressionou com maior firmeza. Quando a porta foi aberta, a sobrinha do professor surgiu por um breve momento, mantendo um curto diálogo com seus interlocutores. Em seguida, todos se dirigiram para o interior da casa.
Dali há alguns minutos, e regularmente de tempos em tempos, os carregadores reapareciam na soleira da porta com os braços atulhados de pilhas e pilhas de livros que iam sendo depositados sobre uma velha lona estendida na carroceria do automóvel. A maior parte daqueles volumes apresentava magníficas encadernações trabalhadas em tonalidades frias e ostentando os respectivos títulos visivelmente bordados a ouro nas solenes lombadas. Podia-se perceber que o proprietário daquelas obras tivera um cuidado e um apreço especial em sua conservação.
Passada meia hora daquele trabalho repetitivo, o homem do pince-nez de ouro e seus dois colaboradores deixaram definitivamente a casa, entraram no automóvel e partiram. O curto período da sua permanência na residência do professor fora o bastante para que todos os livros deste fossem doados e conduzidos para a biblioteca pública estadual.
O casal permaneceu ainda por algum tempo na sala agora um pouco mais vazia da antiga biblioteca, cada qual perdido em seus próprios pensamentos. O jovem pusera-se a calcular as providências que haveria de tomar no sentido de fazer com que aquele ambiente austero se transformasse numa exuberante e acolhedora saleta de jogos. Seria suficiente, talvez, colocar uma mesa ovalada no centro da sala, rodeada por meia dúzia de cadeiras entalhadas e uma bancada de madeira envernizada, fazendo-se acompanhar esta última de cristais e garrafas de bebida no canto posterior direito da porta de entrada, exatamente no local onde hoje se encontravam as inúteis estantes de metal.
Já a Senhorita Laura, talvez sonhando com a futura família que em breve eles se constituiriam, pusera-se a imaginar uma cena na qual via alguns pimpolhos correndo e brincando em alegre algazarra à sua volta naquelas mesmas salas e corredores.
Em meio àquela feliz visão, a Senhorita Laura suspirou e ergueu-se, olhando apaixonadamente para o seu noivo. Seus olhos pareciam querer dizer-lhe alguma coisa difícil de ser descrita, algo além do que meras palavras poderiam exprimir.
Antes de abandonarem a sala, reclinaram-se amorosamente, um na direção do outro e tocaram-se voluptuosamente com a solidez dos corpos e dos lábios, produzindo um ligeiro rumor que ecoou no ambiente vazio da biblioteca.
A tarde estava um pouco fria. O céu, claro e sem nuvens. Provavelmente naquela noite não iria chover.
VI. Onde Se Tecem Comentários Sobre a Vida Afetiva do Pupilo do Professor. E, Finalmente, Sobre Como Terminou a Nossa História
Após o casamento da Senhorita Laura, Marco Aurélio padeceu de alguma tristeza, talvez de uma leve melancolia. Aquele seu estado mórbido teve a duração completa de um par de meses, tempo suficiente na presente circunstância para que o nosso estudante se restabelecesse totalmente da sua dor.
É de se imaginar neste ponto que alguma romântica leitora possa estar supondo neste autor uma ligeira descrença em relação ao amor e que o amor – este sentimento maior da alma humana, cantado e louvado por trovadores e poetas, “fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente - que um amor não poderia secar tão prontamente no coração de um jovem. Ouso levantar-me, entretanto, e defender a sugestiva hipótese de que em algumas ocasiões e sob o peso de determinadas circunstâncias, dois meses seriam de fato o bastante para curar certos males do peito de um homem, as dores e as mágoas próprias ou alheias resultantes de um amor mal-correspondido. Veremos adiante que tipo de remédio causou esta tão inesperada e rápida recuperação no íntimo do nosso estudante.
Inicialmente, devemos recordar que nada em nossas vidas possui o dom de durar para sempre e que o peito humano necessita constantemente respirar outros ares e experimentar a variedade de novos caminhos. Neste sentido, o coração do nosso jovem não se fazia diferente de qualquer outro. É justo observarmos ainda que a juventude, tal qual um comboio irrefreável, segue sempre em frente, cruzando montanhas e vales férteis e floridos onde podemos pressentir a luminescência do eterno despontar de um dia após o outro e outro e mais outro, numa sucessão aparentemente infindável de amanheceres. Então, se nesta cavalgada lúdica muitas vezes um afeto não se realiza, deixa aberto o caminho dos desejos e traz consigo a possibilidade de que um novo amor ali venha a se instalar.
Como uma casa de aluguéis, o coração do rapaz Coréia mostrava-se apto a receber alguma locatária que se interessasse em habitar no interior dos seus pórticos maciços. E eis que ela, a doce e alegre inquilina, um dia se aproximou como uma pombinha saltitante, segurou com destreza a maçaneta da porta, girou-a firmemente e entrou pela casa adentro, arejando o ambiente com o suave bater das suas asas e derrubando em sua fúria eólica um ou dois adornos domésticos que se achavam em seu caminho. Deve-se dizer, aliás, que foi recebida com muita satisfação pelo orgulhoso proprietário do imóvel. Este, de imediato, lhe entregou as chaves e os segredos de todas as suas portas e janelas, permitindo que a singela luz da felicidade conjugal penetrasse em cada sala, quarto e corredor daquele edifício até então inabitado.
De fato, dois meses depois das núpcias da Senhorita Laura e na continuidade do seu curso na faculdade de letras, Marco Aurélio acabaria se apaixonando e – melhor que todas as coisas ! - sendo correspondido em seus sentimentos por uma bela e divertida colega de estudos com quem amorosamente viria a se unir num futuro não muito distante.
No entanto, uma vez mais venho percebendo nos suspiros e muxoxos daquela mesmíssima leitora um especial interesse em relação ao futuro do nosso estudante, em certificar-se se ele e sua alegre pombinha estariam verdadeiramente vivendo felizes para sempre. É fato notório que as melhores histórias e os prosadores mais afortunados tecem longas observações sobre o destino amoroso dos seus personagens no término de semelhantes narrativas. A realidade, porém, é que não temos muitas informações a revelar. Às vezes a história toma as rédeas das mãos do seu criador e segue velejando por mares nunca de antes navegados, evoluindo independentemente da vontade daquele e abrigando atrás de uma invisível barreira protetora os acontecimentos que se encontram para além dos insondáveis muros.
Com alguma segurança, posso confiadamente lhes confidenciar que Marco Aurélio tornou-se um excelente mestre de literatura na mesma faculdade onde o nosso dileto professor Macedo houvera lecionado por seguidos anos. É possível ainda tecermos ligeiro comentário sobre uma última suspeita deste autor. Talvez neste exato momento o “papai” Coréia esteja sentado numa bela cadeira de vime em sua sala de visitas, levantando um rosado garotinho num dos joelhos e amparando com terna suavidade uma doce menininha ruiva em seu pescoço. Parece-me até que os olhares daquele anjinho abençoado estão quase a confundir a vasta cabeleira do seu jovem pai com a crina de um belo cavalo baio. Tudo o mais que eu viesse a afirmar a respeito da vida presente ou futura do nosso estudante não passaria de hipóteses ou possibilidades.
Assim, tendo finalmente dado um bom encaminhamento à vida amorosa do nosso querido pupilo, posso definitivamente encerrar a terna história do finado professor Macedo.
Que Deus o tenha e o conserve, esteja ele onde estiver. Assim seja!