Memorial a Santa Edith
Então, vocês querem ouvir a história de Santa Edith, a protetora de todos os não-humanos e das moças que têm os amores lutando na guerra, hein? Estão bem-informados em me procurar, crianças. Sabem, ela era minha tia. Só me pergunto o quanto de minha história vocês conhecem... Pelos rostos, nada, além de eu ser um Harvey, como vocês, hã? Haha. Não fiquem assim. Se ninguém sabe mais sobre mim, a culpa é minha, toda minha.
Prestem atenção às minhas mãos. Vejam meu rosto mais de perto. Essas veias escuras nem sempre estiveram aí. Nem sempre minhas unhas foram esbranquiçadas e quebradiças, nem sempre meu cabelo foi totalmente branco, nem sempre minhas presas se recusaram a ficar escondidas.
Eu sou velho, pequenos. Mais velho que essa aparência, que tenho a incontáveis verões, poderia preveni-los. E muito, muito mais cansado. É em vão que os homens buscam com suas mãos ávidas a juventude eterna. Mesmo os vampiros envelhecem e, embora nossa decadência física seja bem menos notável que a dos humanos, nem por isso deixa de chegar. De repente, nos sentimos cansados e ansiosos por algo que não sabemos o que, como se fôssemos uma donzela em seu parapeito, olhando para a esquina de onde seu suspirado surgirá.
E apesar disso, mal tenho seiscentos anos.
Isso é a metade, ou talvez um pouco mais da metade da vida comum de um vampiro. Como um de nós conseguiria completar alegremente um milênio, eu não sei. Parece-me muito mais um castigo que um presente.
Mas estou divagando muito, e esse é mais um sinal de minha senilidade. Para mim, minutos, horas, dias, tudo isso perdeu o significado individual e flui ao meu redor como um grande amálgama, enquanto para vocês, são como ovelhas pulando a cerca, e cada uma que escapa é preciosa e não pode ser recuperada.
Pois bem. Vou lhes contar a história que querem saber, e previno-lhes que, como é uma história de minha longínqua infância, com um lugar tão cativo em meu peito, é quase certo que eu me perca em novas elucubrações muitas e muitas vezes. Tenham paciência! Juro-lhes que chegarei lá.
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Já estudaram as Primeiras Guerras, por certo? Mas já pararam para pensar seriamente sobre elas? Há um velho provérbio entre os vampiros, que é de que a traição se paga com sangue, e nenhum outro fato histórico o demonstrou tão claramente. Vocês se perguntam de que traição falo, talvez? Seus livros de história não contam muito sobre aqueles dias tormentosos, eu sei. O que ouvi, foi de uma testemunha dos Primeiros Dias, e que já estava desiludida com ambos os lados das Guerras o suficiente para ser imparcial.
Todos sabem, desde crianças, que nossa origem não está neste mundo que batizamos Gemini, meio sem querer, por causa das constelações e de velhas histórias. Sabemos que nossos ancestrais criaram esse planeta tal qual arca, e o arrastaram pelo limbo do entre-mundos para servir de lar e refúgio de todos os magos e criaturas mágicas que estavam sendo perseguidos pelos humanos “normais” da Terra. É curioso pensar que, embora ainda lhes demos o mesmo nome em Gemini, aqui eles não passam de exceção, cada vez mais numerosa. Espero que sejam mais sábios que seus ancestrais, quando finalmente se tornarem uma maioria – o que não deve tardar muito.
O que não contam nas histórias é que, para criar uma cópia da Terra e o portal para ele, era necessária a colaboração do sangue de um espécime de cada criatura inteligente do globo. Boa ou má. Diurna ou noturna. Reunir todos foi a parte mais demorada do feitiço. Uma vez alcançada, ainda restava um dilema: as criaturas que os magos consideravam malignas só se reproduziam sexuadamente, logo, se apenas uma fosse transportada para o novo mundo, ela não se espalharia. A exceção eram os vampiros europeus, que se reproduzem por infecção do sangue. Se um chegasse a Gemini, um poderia ser o Adão de uma numerosa prole. A natureza do feitiço impedia que o doador entrasse no círculo à força, ou que não estivesse presente quando seu sangue fosse ofertado. O que fazer? Como evitar que os mais tenazes e poderosos inimigos dos magos maculassem seu santuário?
A resposta, como podem imaginar, foi a mais negra traição. Tiveram notícias de um vampiro confuso e amedrontado, que implorava por abrigo noite após noite, em palácios ou prostíbulos, parecendo temer o menor farfalhar inesperado. Fizeram-lhe a oferta de fazer parte do Círculo do Portal, e ofereceram-lhe vastas terras na Nova Europa, onde poderia viver em paz com aqueles de sua raça, desde que não importunassem os vizinhos. Ele pareceu aceitar tudo e acreditar em tudo, em seu desespero. No dia da travessia do portal, quando o feitiço seria enfim completado, ele chegou com uma pequena comitiva de pouco mais de vinte almas, e numerosos humanos normais, que os alimentariam.
Logo que a travessia foi feita, e se pôde respirar pela primeira vez o ar poeirento do Novo Egito, ocorreu o que as histórias dos magos não contam: a comitiva dos vampiros foi cercada e tentou-se eliminá-los ali mesmo, diante do portal, antes que se espalhassem. Os magos teriam sido mais sutis e cuidadosos, se soubessem a quem estavam tentando enganar. O vampiro que parecera tão assustado e inofensivo era ninguém menos que o general Wilhelm Van Allen, um dos mais poderosos e astutos de seu tempo. Se estivera em fuga desesperada, era apenas porque era perseguido pelo único que o superava em força e malícia: seu irmão mais novo, aquele que ninguém em Gemini conhece pelo nome, apenas pelo apelido. O Demônio Sorridente. Vocês sentem o mau agouro desse nome também, não?
O general Van Allen não foi pego de surpresa, e nem sem um plano de fuga. Os humanos que eles haviam trazido tinham feito a passagem em carroças, e as carroças foram carregadas pela tropa, servindo de escudo. Eram à prova de magia. Fugiram, e em meio à fuga, Wilhelm Van Allen deixou uma praga:
_Se tivessem sido honestos, nós não teríamos motivo para guerras em um longo tempo. Agora, não descansaremos enquanto não banharmos essa terra nova no velho sangue mágico.
Foi assim que começaram as Primeiras Guerras.
Para ser justo, duvido que o tempo de paz de que o general Van Allen falou duraria tanto quanto ele insinuou. De qualquer forma, traição é sempre traição. Acelera coisas que poderiam ter ficado adormecidas por muito tempo.
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Se contei tudo isso, foi apenas para explicar que, na época em que tia Edith viveu, as Primeiras Guerras ainda não tinham acabado, apesar de fazer mais de cem anos que começaram. Nessa época, ouvíamos falar das Guerras como algo distante, mas natural. Elas existiam há tanto tempo que não concebíamos um mundo sem elas. Quando eu era criança, o Domínio Harvey estava reduzido à metade do seu tamanho original, e havia perdido sua conexão com o mar. Éramos uma ilha bem no coração da Britânia. Nossa propriedade ficava isolada de quase tudo num raio de muitas léguas, e nunca fora tocada por guerra de nenhum tipo.
Tia Edith era a professora de magia de todas as crianças da família. Naquela época, não existia nem sequer o conceito de uma escola de magia. O conhecimento era passado de pai para filho, em casa mesmo. Como tia Edith tinha uma paciência de Jó, mesmo sendo solteira, acabou ensinando a Arte a duas gerações de Harveys.
Até as noites terríveis que me aguardavam mais tarde, eu só me lembro dela como uma adulta que não parecia adulta. Ela brincava e conversava conosco, quando não estava tentando fazer feitiços e poções nos entrarem nas cabeças duras. Era também lembrada por nós como aquela que deixava que licantropos morassem em suas terras. Ela mantinha uma matilha de homens-lobo, um ou dois homens-gato – não me lembro ao certo – e era amiga de uma família de homens-águia que morava nos morros no limite do vilarejo mais próximo. Meus tios não aprovavam essas amizades nem um pouco, mas como os licantropos eram criaturas tímidas e não se intrometiam nos assuntos dos outros, eram mencionados nas conversas mais ou menos como bichos de estimação de luxo.
Em meio a tudo isso, como eu já tinha explicado, a guerra era algo distante, e só conhecíamos vampiros das histórias assustadoras que algum tio mais gaiato nos contava antes de dormirmos. Não percebi de imediato quando isso mudou, mas, um dia, nos xingaram quando pedimos uma história de vampiros. Disseram que não era para brincarmos com coisa séria. Ainda assim, nenhum xingo nos preveniu para o que veio depois.
Já havia alguns dias que o ar estava estranhamente tenso, como ele fica quando há um ajuntamento de nuvens negras à distância. Todos andávamos com os nervos à flor da pele, e lembro-me vagamente de ter apanhado de um de meus primos, que era mais velho e mais forte. A primeira vez que fiquei com a boca cheia de sangue, e eu ainda era humano. Nada mal. Não me lembro se quebrei ou não o nariz, mas, pensando bem, a quem isso importa?
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A tormenta desabou numa bela tardinha. Estávamos brincando, quando nossos pais e tios nos empurraram com violência para o celeiro tínhamos aulas. Só quando estávamos todos acomodados no abrigo subterrâneo para ventanias foi que tia Edith se ofereceu para ficar conosco, e explicou o que acontecia: os homens-águia tinham visto três vampiros invadirem nossa propriedade para fazer “recrutamento”. Nossos tios os combateriam quando nos alcançassem, ou morreriam tentando, e os homens-lobo os ajudariam. A pedido de titia, claro.
O “recrutamento” foi uma das piores manchas das Primeiras Guerras. Era uma estratégia simples, e que só era efetiva porque contava com o preconceito e a dureza dos corações dos magos. Era triste ver essa prova de como definir quem é o monstro só depende do lado que você está na guerra.
Basicamente, o “recrutamento” consistia em um grupo pequeno de vampiros que furava o cerco dos magos, mordia o próprio pulso para infectar as presas com seu sangue, invadia quantas residências pudessem e mordia a quantos pusessem as mãos. Se a vítima fosse socorrida quase imediatamente, podia ser salva. Caso contrário, era quase certo que ela se tornaria um vampiro, e seria expulsa de casa pela família. Os “recrutadores” se aproveitavam desse momento de confusão e medo (e talvez revolta e decepção) para adicionar novos soldados a seus exércitos. Bem, na verdade, eles nem conseguiam tanta gente assim, o “recrutamento” era mais uma arma moral contra os magos. E funcionava.
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De volta àquela noite, como dar a vocês uma dimensão exata do que era ficar naquele abrigo escuro, sabendo que algo muito errado estava acontecendo, mas só ouvindo as próprias respirações e o vento lá fora? Não sei quanto aos outros, mas eu queria desesperadamente que alguma coisa acontecesse conosco. Parecia injusto que os outros estivessem vivendo acontecimentos importantes e nós não pudéssemos ao menos olhar.
De repente, os bebês começaram a chorar, e tia Edith ficou tensa. Todos nós sentimos uma presença que nos fez arrepiar. Estava cada vez mais próxima, e comecei a me arrepender de querer um pouco de emoção. A porta do abrigo se abriu com um rangido, mas não ouvimos o ruído de nada entrando. Apenas duas pequenas luzes vermelhas, como olhos de gato, eram visíveis no breu. Os bebês choraram mais alto.
Foi nesse momento que tia Edith criou um clarão tão forte que ofuscou até mesmo nós, que não tínhamos uma visão noturna bem desenvolvida. Ouvimos um grito de dor, mas demorou até que conseguíssemos ver o que acontecera. Quando a ofuscação passou, testemunhamos o esforço de nossa tia para imobilizar e tentar expelir do abrigo um homem alto com uma roupa escura. Ele cambaleava um pouco, mas usava seu olfato e sua audição para se orientar, e resistia muito ao feitiço.
Era um duelo de vontades, e eu sabia o suficiente de Artes Mágicas para apreciá-lo. Parecia que nossa tia estava ganhando, mas o vampiro tentou um último truque. Usou sua telecinesia para lançar objetos para nós, e tia Edith foi obrigada a nos defender. Essa ligeira distração foi o suficiente para ele derrubá-la, e ir em sua direção.
Isso me deixou tão nervoso que não consegui me conter. Corri e fiquei entre a tia e ele. Claro que minha magiquinha não era de nada em comparação à força dele. Ele me segurou pela parte de trás do pescoço, como se eu fosse um gatinho, e deu um estranho sorriso. “Garotinho corajoso”, pensei tê-lo ouvido dizendo. Senti suas presas no meu pescoço, um imenso clarão que parecia me cegar, uma dor forte na cabeça, quando o vampiro caiu sobre mim, e depois mais nada.
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Eu gostaria de poder contar histórias de sonhos curiosos e lembranças de toda a minha vida até aquele ponto, mas não me lembro de nada. Minhas lembranças mais curiosas vêm do momento em que abri os olhos.
O quarto estava claro, e pensei que já era dia. Tia Edith me acariciava delicadamente, com um sorriso piedoso. Meus pais e alguns tios estavam na porta, e me olhavam com uma ansiedade que eu não entendia. Alguém chorava, acho que era a minha mãe. Não me olhem assim. Eu sei que parece monstruoso que eu tenha me esquecido do rosto de meus pais, e talvez até seja mesmo, mas isso tem a ver com as lembranças curiosas de que falei. Sabe, é estranho, mas, quando você está se transformando em um vampiro, não são só as amarras entre seu corpo e sua alma que se rompem. Todos os laços que ligam você às outras pessoas parecem ficar em suspenso. Dependendo de como você encontra as pessoas logo após despertar, podem se estreitar mais que nunca, ou se desfazer completamente, como se você e o outro fossem estranhos.
Sabendo disso, tentem entender... Foi minha tia e não minha mãe que estava me acariciando quando acordei. Quando eu disse com dificuldades que estava com a boca muito seca, minha mãe chorou e minha tia me deu uma tigela com um líquido muito escuro que pensei ser sopa de beterraba, ou algo assim. Quando aquele cheiro me encheu a boca de água e bebi tudo com pouca educação, me sujando, minha mãe saiu correndo e chorando casa a dentro. Foi tia Edith que limpou meu queixo com um lenço. Naquele momento, me senti muito envergonhado, e parecia que algo em mim estava morrendo, embora eu não soubesse o quê. Mas o que realmente acabou de enterrar minha antiga noção de família veio mais tarde.
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Depois de beber a “sopa”, eu já me sentia forte e bem disposto. Infelizmente lembranças também ficaram mais nítidas, e comecei a perceber que talvez nem tudo estivesse bem comigo. Sentei na cama e fiquei um tempo olhando para minhas mãos e sentindo um enorme frio na barriga.
_Tia Edith _lembro-me nitidamente de ter perguntado, com a voz sumida _aquele homem me mordeu mesmo? Vou virar um vampiro? Vão me expulsar de casa?
Ela me acariciou com delicadeza até me sentir mais calmo. Então, disse, com ternura:
_Ninguém vai te expulsar, bobinho. Eu não vou deixar. Você é um garoto bom e corajoso, e ninguém deve ser castigado por isso.
_Mas... Mas... E se eu morder os outros, e se eu tentar matar alguém aqui da família? E se...
_Você só vai fazer o que você quiser, querido. Você sabe que nem controle mental faz você fazer o que não quer. Vou estar do seu lado sempre que precisar. Não precisa ter medo.
_Mas...
_Como você está se sentido agora?
_Hum... Normal. Acho.
_E o que você acha que acabei de dar pra você beber?
Foi só então que entendi. Tampei a boca com força, e olhei para ela em pânico. Ela me abraçou. Imaginei um monte de coisas terríveis. Praticamente conseguia me ver criando caninos enormes e machucando tia Edith, bebendo todo o sangue dela e ainda rindo por cima do cadáver. Depois de algum tempo, percebi que, embora aquelas coisas fossem possíveis, a vontade de fazê-las não chegava. Fui me acalmando aos poucos. Por fim, titia me soltou e disse:
_Eu sei que você está assustado, mas não se desespere, viu? Vou conversar com todo mundo para ver o que faremos, mas lembre-se: não vou deixar nada de mal acontecer com você, entendeu? Nem que eu tenha que te levar pra minha parte da propriedade, onde ninguém mais tem autoridade pra te expulsar. Entendeu mesmo? Fique aqui. Se voltar a sentir sede, me avise.
Engoli em seco e esperei. Passados alguns minutos, eu já estava tão impaciente, que abri a porta e me esgueirei pelo corredor. Ao fundo, ouvia vozes discutindo.
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Chegando um pouco mais perto, comecei a distingui-las:
_Peter está morto, Edith, será que não percebe? Aquilo não é nosso filho, é um monstro que usa suas formas! Não podemos deixar de eliminar um perigo por sentimentalismo!
_Sentimentalismo? Harold, estamos falando de uma vida! _tia Edith gritou._Se vocês tivessem ficado um pouco mais no quarto, teriam visto que Peter ainda é o mesmo garoto doce e inteligente de sempre! Não vou deixar que uma guerra estúpida da qual não fazemos parte destrua a vida de uma criança!
_Ele é uma criança agora! O que pretende fazer quando for mais velho e perigoso? Como vai manter as outras crianças dessa casa seguras?
_Ele só vai ser perigoso se deixarmos que seja. Se não permitirem que ele fique aqui, eu o levarei para as terras que são minhas por herança, e farei com que esteja seguro lá. Mas abandoná-lo? Pior de tudo, matá-lo? Nunca!
Ninguém parecia ter nada a dizer. Todos conheciam tia Edith, e, naquele instante, havia uma aura tão intensa de bondade e desespero em torno dela, que qualquer coisa que fosse dita soaria rude e ignorante. Ainda naquela noite, eu seria transferido para a pequena casa de madeira nas terras ao sul do Domínio Harvey. Ileso.
Esse foi o primeiro milagre dela. O milagre da tolerância.
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Os dias seguintes foram estranhos, para dizer o mínimo. Eu estava sem chão. Minha família tinha se tornado um bando de estranhos que não me queriam. De uma vez só, cortaram de mim meus pais, meu mestre – o vampiro que me mordeu foi morto pelos meus tios – e minha casa, o lugar a que eu pertencia. Só me restara tia Edith, aquela que foi o centro da minha vida por muitos e muitos anos.
Tia Edith não sabia mais sobre vampiros que o vulgo, mas se esforçou. Ela me forçou a mordê-la logo que percebeu que a sede estava de volta, o que demorou mais do que eu esperava: três dias inteiros. Nisso, aprendi que, se eu não estivesse faminto, não necessariamente mataria alguém ao me alimentar. Isso me deu um pouco mais de confiança. Demorou algum tempo até que eu perdesse a resistência em usar meus novos poderes, mas a insistência de titia acabou me vencendo. Ah, se eu tivesse sabido logo de cara o quanto me sentiria livre e desinibido ao levar minhas capacidades ao limite!
O sangue, surpreendentemente, não foi o maior obstáculo à minha adaptação. No início, os licantropos o doavam, por amor à titia. Logo, aprendi a caçar de maneira segura e discreta sem que a vítima nem sequer soubesse o que a atingiu. (O truque é que, depois de um desmaio, ninguém estranha se estiver zonzo e enfraquecido, sabe.) O escândalo que meus tios temiam, com corpos estraçalhados e a honra da família em jogo, jamais ocorreu.
A única sombra que restava, o fato de que eu provavelmente teria o rosto de uma criança por toda a vida, foi logo resolvido, também. Sabe-se lá como, tia Edith conseguiu a informação de que os vampiros que queriam uma aparência mais velha bebiam um pouco de sangue de adolescentes com freqüência. Pode parecer que isso era um problema, mas sangue jovem era vendido à boca pequena, naquela época. Feitiços de beleza usando esse tipo de sangue não eram muito respeitáveis, mas todos faziam.
Enfim, lentamente, caí numa nova rotina. Era diferente, mas nem de longe era tão medonha quanto temi quando percebi o que tinha me tornado.
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Passei anos felizes atacando invasores do Domínio e os levando a titia para decidir o que fazer dele, passando as horas no pomar, sem nada o que fazer, ou cortejando minhas primas mais curiosas. Era excitante pra elas se encontrar com um vampiro e ainda terminar a noite com um beijo (ou mais do que isso, quando ficamos mais crescidos). História para partilhar com as amigas pelo resto da vida. Também me tornei mais próximo dos homens-lobo. Eram ariscos, mas boa gente.
Como podem ver, os próximos cinco, nada de especial. Eu já contava 16 anos reais e aparentes quando sofri meu segundo choque. No início, parecia tudo certo. Meus tios foram passar uma temporada na Gália, para uma caçada no território de uns amigos e outras visitas sociais. Não fiquei exatamente feliz por saber que tia Edith iria passar mais de um mês fora, mas ela ia se divertir, e eu estava de olho numa prima loirinha que não se aproximaria de mim enquanto os pais estivessem no Domínio. No balanço geral, parecia que seria bom para todos.
Podem, então, imaginar como me senti quando metade dos que foram à Gália voltaram cerca de duas semanas depois, dizendo que tia Edith se perdera na floresta em que foram caçar. Meu primeiro impulso foi ir até lá a pé, ajudar nas buscas. Como perdem uma mulher na floresta? Ou pior: como não a encontram de volta?
No fim, fui persuadido pelos homens-águia a ficar. Eu não conhecia o caminho, e um deles já tinha ido para lá no instante que teve a notícia. Além do mais, nem toda a minha velocidade me levaria até lá em tempo hábil.
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Notícias chegavam e eram desmentidas com freqüência. Engraçado o tanto de gente que estava voltando da Gália na mesma época.
Eu roia as unhas. Todos os dias, ia até a Pedra da Espera, esperando ver a comitiva com o resto dos meus tios e, se tudo corresse bem, tia Edith entre eles. Vocês conhecem a Pedra da Espera das lendas. Ela ficava bem alta no terreno, e dava pra ver a estrada à distância. Antes de eu morar no casebre próximo a ela, era o principal ponto de observação do Domínio.
Por noites que se arrastavam, eu esperei.
O pôr-do-sol não tinha terminado quando o homem-águia voou. Ele veio aumentando, criando expectativa sobre as notícias que trazia. Seriam boas? Seriam ruins?
A expressão dele era inescrutável quando pousou, como só as águias conseguem ser. Depois de voltar à forma humana, ele disse, solene, as palavras que nunca vou esquecer:
_Ela foi encontrada. Está voltando para casa. O vampiro que a salvou da floresta está voltando com a comitiva.
E foi assim que, quando eu menos esperava, minha vida calma inventou de virar do avesso de novo.
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Da Pedra da Espera, eu os vi chegar. Cavalos e carruagens, tudo parecia igual. Só firmando a vista é que vi, afastado na retaguarda, um cavaleiro diferente. Vinha vestido com roupas escuras de viagem, e olhava a tudo com suspeita. Depois que todos entraram no Domínio, ele esperou sem pressa que tia Edith fosse recebê-lo e permitir sua entrada.
No cavalo dela, ela o conduziu até onde eu estava. Fiquei desconfiado. Quem era ele? Onde minha tia o havia conhecido? Quais as intenções dele ao segui-la até aqui?
A primeira vista próxima daquele homem não melhorou minha disposição. Cicatrizes desfiguravam seu rosto e suas mãos, armas de todos os tipos estavam penduradas em torno dele. Era um guerreiro. O que uma pessoa dessas queria com minha tia?
_Pete _tia Edith chamou _quero que cumprimente o Sr. Kay Goodfellow, que vai morar conosco pelo tempo que desejar. Sr. Goodfellow, esse é meu sobrinho, de que lhe falei, Peter Harvey.
Apertamos as mãos, ambos nos encarando como cães que se confrontam. Nenhum de nós parecia satisfeito com a perspectiva de dividirmos a casa dali por diante.
Nesse ponto, tia Edith fez seu segundo milagre. Não é qualquer um que convence dois vampiros estranhos entre si a dividirem o mesmo território.
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Logo que tivemos um momento mais calmo, tia Edith me explicou o que havia acontecido desde que desaparecera.
O que aconteceu foi que ela se afastou do grupo da caçada por um motivo qualquer e bateu a cabeça em um galho baixo, caindo do cavalo. Como eram muitas pessoas, ninguém deu por falta dela senão bem à frente. Quando ela acordou, não se lembrava quem era e de onde vinha. Vagou sem rumo pela floresta, até que escureceu. Com medo, ela procurou um abrigo e, nisso, foi atraída pela luz de uma fogueira. Infelizmente, eram bandidos da pior espécie, e ela passaria por muito sofrimento, não fosse o surgimento do Sr. Goodfellow. De acordo com tia Edith, ele se ofereceu para levá-la para fora da floresta, mas ela ainda estava atordoada, e não sabia em que ponto deveria ser deixada. Depois de muito impasse, ele permitiu que ela ficasse em seu abrigo até que recobrasse a memória, o que levou alguns dias. Logo que ela soube aonde ir, foi guiada até lá. Só que, ao invés de voltar à sua cabana no meio da floresta, o Sr. Goodfellow pediu abrigo a tia Edith no Domínio Harvey, para o horror dos demais familiares.
Olhei de soslaio para ele, em alguns pontos da narrativa. Eu não estava exatamente satisfeito com a presença dele, mas precisava reconhecer que o devia muito. Estava um pouco nervoso com a perspectiva de ficar sozinho com aquele homem, quando tia Edith se recolhesse. Eu podia sentir que ele era um vampiro bem mais velho do que eu, e havia qualquer coisa no seu rosto severo e cheio de cicatrizes que dizia que ele não era uma pessoa com quem se podia brincar.
Certas coisas são inevitáveis, e o momento que eu temia era uma delas. Tia Edith se foi, e nós dois passamos uns bons minutos em silêncio, um olhando para o outro. Eu fui o primeiro a se cansar daquela avaliação silenciosa, e saltei para a árvore mais próxima.
_Vou caçar _eu disse, sem me virar para ele. _Essa ansiedade estava acabando comigo. Se vier comigo, posso mostrar a estrada e o vilarejo mais próximos.
Ele me seguiu em silêncio até conhecer os dois lugares, e depois desapareceu. Fiquei aliviado por não ter que atacar ninguém com ele olhando, mas foi um alívio ilusório. O Sr. Goodfellow já me esperava em casa, quando voltei.
_Para alguém que nunca teve nenhum tipo de instrução, você parece saber bastante coisa. Mas há bastante espaço para melhoras.
Dei de ombros e fui para a cama. Ele ainda me disse:
_Junte um pouco mais as pernas antes de saltar.
Eu não sabia, mas era a primeira lição de muitas.
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Na época, não pude perceber muito bem, mas hoje aprecio a sutileza de tia Edith. Ela poderia ter simplesmente dito que o Sr. Goodfellow deveria me ensinar aquilo que, como vampiro, eu deveria saber, e ele o faria. Mas teria feito apenas por ela.
Ela investiu em nos aproximar e acalmar nossos ânimos. Nós três dávamos longos passeios juntos, e ela fazia muita questão de não demonstrar preferência na companhia de um ou de outro. Nossas hostilidades resistiram, mas tiveram que ceder. De minha parte, eu fui sendo forçado a admitir que gostava das histórias que o Sr. Goodfellow contava, vez por outra, e o admirava. Além disso, nós dois éramos os únicos vampiros num raio de léguas. Havia coisas que ele só poderia partilhar comigo e vice-versa.
Acho que foi isso que titia esperava que percebêssemos. De uma maneira ou de outra, deu certo. Antes que nós dois nos déssemos conta, o Sr. Goodfellow e eu já conversávamos quando estávamos sozinhos, e ele me explicava maneiras mais eficientes de utilizar meus poderes, fosse para assuntos pessoais, fosse para lutar.
Ele era um professor muito mais duro que tia Edith, mas tão eficiente quanto. Em pouco mais de um ano, ele já havia desenferrujado palavras como “satisfeito” ou “ótimo”.
Foi só então que comecei a juntar os cacos de informação que ele dava sobre sua vida para compor o quadro completo.
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O Sr. Goodfellow era, com efeito, muito mais velho que eu. Pertencia à primeira geração nascida após a Migração. Assistiu o rebentar das Primeiras Guerras e ganhara suas cicatrizes lutando várias batalhas por sua família.
Não havia se juntado aos vampiros por vontade própria, mas porque um deles via nele potencial, e o arrancou das garras da morte. Depois disso, o Sr. Goodfellow viajou longas distâncias e recebeu muita instrução, antes de lutar novamente. Por sua atuação, ele subiu de posto muito rapidamente, até se tornar um dos maiores em comando, logo abaixo de Wilhelm Van Allen. Nessa época, ele foi rebatizado de Caius Van Allen, e posso dizer que é um nome ainda conhecido de muitos, nos dias de hoje.
A queda dele, no entanto, foi tão rápida quanto sua subida. Ele e o vampiro que o salvara, um certo Robert Porter, tinham se tornado grandes amigos. Porter não tinha grandes ambições em termos de carreira militar. Lutava porque não tinha outro objetivo na vida.
Uma noite, ele foi ao encontro de Caius confessou: em uma de suas campanhas, apaixonara-se por uma bruxa e casara-se com ela em segredo. Ela não era especificamente uma maga, apenas lidava com ervas e poções. Porter pretendia desertar do exército dos vampiros e viver em paz com sua esposa em algum vilarejo pequeno e esquecido. Ela, inclusive, estava grávida dele.
Caius ficou estático. Em apenas uma conversa, seu amigo lhe confessara nada menos que três crimes que, entre os vampiros, eram punidos com a morte: desertar, juntar-se ao inimigo, e gerar uma criança mestiça sem o consentimento expresso do General.
Apesar de não aprovar aquilo, ele gostava de seu amigo, e o ajudou a fugir. Infelizmente, havia muitos olhos e orelhas invejosos na cúpula do poder dos Van Allen, e o esquema foi descoberto. Porter já estava seguro, mas Caius foi julgado por traição. Graças à sua posição privilegiada, não foi morto, mas foi banido da família Van Allen. Recebeu um estigma feito a fogo em sua testa, que não se regeneraria e mostraria a todos que era um proscrito. O estigma dava a qualquer um que o visse o direito de matá-lo, sem que ninguém se responsabilizasse por vingar essa morte. A defesa de sua espada foi quebrada até o brasão dela se tornar irreconhecível, e ele voltou a adotar o nome de Kay Goodfellow.
Depois disso, o Sr. Goodfellow se juntou aos Porter e ajudou a protegê-los por muitos anos. Porter foi morto em uma emboscada, sua esposa morreu adoentada pela vida incerta que levavam. Os filhos cresceram e tiveram sua própria prole. Nesse ponto, a perseguição já havia arrefecido, e o Sr. Goodfellow se afastou deles para cuidar de seus próprios negócios.
Ele ainda era um proscrito e, mesmo que tivesse deixado crescer uma franja que cobria seu estigma, não confiava na companhia de outros vampiros. Depois de muitas andanças, instalara-se na floresta gaulesa em que tia Edith o conhecera. E lá, ele pretendia passar um bom pedaço de sua vida, se lhe fosse permitido.
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Naturalmente, eu já tinha ouvido falar de Caius Van Allen, e seus feitos sangrentos. Era difícil conciliar a imagem que eu tinha dele, como um militar violento e impiedoso, com aquele homem educado e de voz suave, afeito a longos e melancólicos silêncios.
Mas, se uma coisa havia mudado, é que eu não me preocupava mais com o futuro. Creio que qualquer um com um mínimo de conhecimento da vida tenha percebido que o Sr. Goodfellow estava apaixonado por minha tia, e não era pouco. Percebi isso desde quando os vi juntos pela primeira vez, na volta para casa. E mais, percebi que ele era correspondido.
Por meses, temi que eles fugissem de repente, na calada da noite, e me deixassem sozinho. À medida que ele me contava a história de sua vida, essa impressão foi se desfazendo. Ele era um homem de ação, até o fim. Se eles fossem fugir, já teriam feito isso há muito tempo. Alguma coisa os prendia no Domínio Harvey, e juro a vocês que demorou muito até que eu percebesse que essa coisa eram os licantropos e eu.
Riam, se quiserem, mas só acreditei completamente nisso quando ouvi dos próprios lábios dela. Certa noite, a ouvi discutindo com o Sr. Goodfellow. Eles não falavam baixo, e não havia como eu sair de onde estava sem chamar a atenção deles, por isso, fiquei até o fim.
_Você sabe que eu o amo, Kay. Mas eles são como filhos, para mim. Se eu fugir, serei deserdada, e eles estarão desamparados. Quantas vezes vamos ter essa mesma conversa?
_Quantas forem necessárias. Eu entendo que você se sinta assim pelo garoto, mas os licantropos sabem se cuidar. Eles se viravam antes de você os trazer para cá, vão se virar depois. Se gostam tanto assim de você, eles compreenderão.
_Um dia, você vai compreender, Kay.
Eles se separaram, e eu fiquei ali, sem ação. Se antes, eu temera a aproximação do Sr. Goodfellow, e uma possível fuga dos dois, agora, temia que eles se separassem.
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A relação entre tia Edith e o Sr. Goodfellow não pareceu se estremecer, e os dias se passaram sem novidades. Apesar disso, uma sombra voltava a se adensar a sudeste de nossas terras. Alguma coisa se aproximava, e era maior que qualquer outra até então.
Os silêncios do meu mentor aumentavam a cada dia. Fosse na minha presença, fosse em seus passeios pela propriedade, ele parecia mais triste e mais preocupado que estivera desde que o conheci.
Não adiantava perguntar nada a ele, portanto, me abstive de dizer o que quer que fosse. Meu coração também estava pesado.
Assim como da outra vez, foram os homens-águia os arautos da tempestade. Estávamos os três, tia Edith, Sr. Goodfellow e eu, sentados na Pedra da Espera, quando o pai da família chegou com as notícias.
_Com licença, e desculpe interromper _ele disse. _Mas ouvi as notícias no povoado, e achei que deviam saber. Os vampiros atravessaram o Canal e invadiram a Britânia. A guerra chegou às Ilhas.
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Aquelas eram as piores notícias desde a operação de “recrutamento” que me transformara.
Houve muito alvoroço, muitas conversas, incerteza e medo. Lidar com um pequeno grupo de vampiros perdidos era uma coisa. Um exército bem ordenado era uma coisa totalmente diferente.
O Sr. Goodfellow tornou-se mais silencioso que nunca. Estava muito interessado no andamento da batalha, mas pouco dizia sobre seus pensamentos a respeito. Posso dizer com segurança que até tia Edith foi pega de surpresa pelo anúncio que ele fez, certa noite:
_Edith. Peter. Tenho algo importante a dizer para vocês. A batalha avança pela Britânia, e estão chegando muito perto do Domínio Harvey. Eu nunca imaginei que poderia me apegar tanto a um lugar como aconteceu aqui. Os últimos dois anos, esses que passei aqui, foram os melhores da minha vida. Não vou deixar isso ser destruído por meus antigos companheiros, em nome de uma ofensa feita por homens que há muito não estão vivos. Por tudo que ouvi, percebo que o que falta aos magos desta terra, e estou em condições de preencher a lacuna. Não posso nem ser considerado traidor, já que há muito sou réprobo entre minha gente. E, para falar a verdade, vocês são as únicas pessoas cuja opinião me interessa. Sendo assim, após alguns preparativos, partirei para defender esse lugar.
Precisei segurar tia Edith, porque ela deu um soluço que quase a desequilibrou. Apesar disso, ela permaneceu em silêncio. Entreguei-a nos braços do Sr. Goodfellow e deixei que meu olhar falasse por mim. Eu não gostava de pensar que ele estaria numa guerra, de onde talvez nunca voltasse, mas também não queria que ela chegasse aqui. Ele me dispensou com um toque no ombro, e saí. Não havia nada que eu pudesse dizer ou fazer que amenizasse o sofrimento que viria.
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Na noite seguinte, o Sr. Goodfellow já tinha selado seu cavalo, afiado sua espada, e polido a armadura que não usava há muito tempo, para tirar a ferrugem. Mexeu em meus cabelos por um tempo, com um sorriso desajeitado.
_Escute, Peter, com muita atenção. Há uma chance de eu falhar e, se isso acontecer, você deve fazer tudo para manter sua tia a salvo. Não me interessa se terá que amarrá-la e amordaçá-la, mantenha essa teimosa longe de encrencas, certo?
O nó na minha garganta e impedia de falar. Por fim, disse, rouco:
_Não precisava ter me pedido isso.
_Só quis reforçar. Você foi um dos melhores aprendizes que eu já tive, mas seu lugar não é no campo de batalha. É inteligente e hábil. Use bem essas qualidades para levar uma vida que valha a pena.
_Obrigado.
Foi tudo o que eu disse. O que mais havia? Ele se voltou para tia Edith, e a envolveu em um abraço e um beijo que não acabavam mais. Por fim, ele a afastou com relutância.
_Eles não vão alcançar o Domínio, Edith. Eu prometo.
Ele disse isso com muita decisão. Tia Edith começou a chorar silenciosamente, mas não fez nenhum gesto para impedi-lo de partir. O Sr. Goodfellow se despediu de nós e partiu no cavalo. Nós o vimos, da Pedra da Espera, até que desaparecesse no horizonte, eu com minha visão noturna, titia com a ajuda de um feitiço.
Foi o começo de um longo pesadelo.
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É aqui que começa a história de tia Edith tal como domínio público. A Pedra da Espera ganhou esse nome por todos os dias e noites que minha tia passou naquele rochedo alto, esperando ver um cavalo negro à distância. Muitas vezes, eu fazia companhia a ela, e tive minhas próprias vigílias, mas o mais triste de tudo era vê-la sozinha, com uma tristeza que fazia qualquer outra empalidecer.
O resto da família se mantinha em obstinado silêncio. Não ousavam censurá-la, mas também não faziam o menor esforço para consolá-la. No fundo, achavam que seria melhor assim. Nunca concordaram com a permanência do Sr. Goodfellow ali.
Mas, se achavam que a honra da família passaria imaculada depois desse abandono por parte deles, estavam enganados.
Tia Edith começou a passar mal algum tempo depois da partida de seu amado. No início, todos pensávamos que definhava de tristeza. Uma mulher-loba me preveniu, antes de todos os outros: minha tia estava grávida.
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Grávida.
Tia Edith teria um bebê. Podem acreditar nisso? Eu não era tão inocente a ponto de não imaginar o que ela e o Sr. Goodfellow faziam quando estavam completamente sozinhos, mas um bebê? E num momento como aquele!
O pior é que a gravidez já estava mais adiantada do que parecia. Tia Edith escondeu de todos sua condição enquanto foi possível. Quando não era mais, ela se mudou para minha cabana, alegando que queria estar mais perto de suas lembranças. Claro que as mulheres da casa estavam bem desconfiadas do que estava se passando, mas preferiam fingir que não ocorria nada de mais.
Nos últimos meses da gravidez, titia ficou tão magra e arrasada que não agüentou manter a vigilância na Pedra. Eu e todo o bando de homens-lobo cuidamos dela o quanto pudemos.
A verdade é que eu estava novamente apreensivo. Hoje, isso me parece tão infantil, mas na época, era tão assustador: ciúmes do bebê ainda não nascido, que não só era filho de verdade de tia Edith, como filho daquele homem notável. Quando ele voltasse da guerra, eles seriam uma família. E eu seria o quê?
Embora eu tivesse medo e ciúmes, foi impossível que odiasse a criança que estava por vir. Titia parecia querer estar sempre comigo. Quando o bebê começou a chutar, quis que eu sentisse. Fui eu que improvisei um berço, gradeando uma cama, e foi para mim que ela pediu que providenciasse brinquedos e objetos necessários.
Embora eu ainda fosse alimentar aqueles ciúmes tolos por um bom tempo, os temores se abrandaram muito com o passar da gravidez. A todo instante, tia Edith fazia planos para o futuro, e sempre me consultava e me incluía neles. Ah... O mundo não produz uma como essa mulher com muita freqüência, não concordam?
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O dia esperado chegou, enfim. As mulheres-lobo seriam as parteiras, e não me deixaram ficar por perto. O trabalho de parto foi demorado, e a aparência frágil de minha tia não me tranqüilizava. Ela suportaria? Tantas mulheres morriam dando à luz, que era impossível ficar calmo naquele momento.
Enfim, depois de horas, fui informado que tudo estava bem. Nos braços de tia Edith, mamando sofregamente, foi que vi pela primeira vez Kay Goodfellow II, minha dor de cabeça constante por quase trezentos anos.
Tia Edith se recuperou com dificuldade dos sofrimentos da gravidez e do parto, mas ela era muito mais forte do que acreditávamos. Não tínhamos notícias do Sr. Goodfellow, e, por isso, ela não estava disposta a partir deste mundo antes dele.
A vinda do pequeno Kay alegrou um pouco nossa espera. Ele tinha os olhos cinzentos do pai, e muitos outros traços faciais dele. Herdou pouco dos Harvey, e sempre acabo me convencendo de que isso não foi totalmente ruim para ele.
O garoto era ativo e alegre, e depois que aprendeu a rir, nos brindava freqüentemente com gostosas gargalhadas. Logo me tornei seu companheiro preferido de brincadeiras, e isso foi aos poucos diluindo todos os traços de ciúmes que ainda poderiam me afligir. O garoto precisava de mim, afinal.
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Os anos se passavam, e continuávamos a esperar. Nesse meio tempo, recebemos algumas notícias breves do Sr. Goodfellow, mas não nos tranqüilizavam por muito tempo. Pelo que soubemos, ele ajudava as tropas britânicas, mas não impunha sua presença a elas. Não se sabia onde se abrigava, apenas surgia, lutava o quanto era capaz, e desaparecia novamente.
A vinda do pequeno Kay quase fez com que tia Edith fosse deserdada. Meus tios ficaram furiosos com ela, mas ela não se entregaria sem tentar nada. Caiu de joelhos diante de todos, pedindo que permitissem que ela se retirasse para suas terras, e ali ficasse, com seus dependentes. Ela abandonaria o nome Harvey, se desejassem, mas que não permitissem que aqueles que não tinham culpa de nada fossem prejudicados pelos atos dela.
Foi a maior discussão de que jamais me recordo. O fato é que todos deviam muito a tia Edith. Ela sempre fazia o máximo por quem estava ao seu redor, e mais de uma vez, se sacrificara pelo bem-estar de sua família. Grandes e pequenas coisas, importantes ou corriqueiras, ela nunca negava um favor. O que terminou por acontecer foi semelhante ao “quem estiver sem pecados, atire a primeira pedra”. Ninguém podia dizer que não tinha motivos para ser grato a ela, e acabaram por conceder seu desejo.
Foi na quinta primavera que o pequeno Kay presenciava, num início de noite lindo, ao som das cigarras, que fomos visitados por Lorde Stonehouse.
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A comitiva era enorme e portava muitos estandartes. Lorde Stonehouse era uma das principais lideranças das Primeiras Guerras, e sua fama se estendia por toda Nova Europa. Foi recebido com pompas às portas do Domínio Harvey, e com uma boa dose de surpresa, também. Ninguém conseguia imaginar o que havia levado um combatente tão conhecido àquelas terras.
Depois de instalado na Ivy Grange, nossa mansão principal, o próprio Lorde perguntou, com sua voz de barítono:
_Onde está a Srta. Edith Harvey? Desejo falar com ela.
Todos se olharam, temerosos. Seria o dia em que finalmente a honra da família seria para sempre destruída?
Enviaram um pajem a cavalo para buscar a titia. Quando ouvi o motivo que o trazia até lá, não pude me conter de curiosidade. Segui-os, carregando o pequeno Kay nos ombros.
Toda a sala estava em silêncio quando tia Edith entrou na sala, vestida modestamente, e com olhos baixos. Lorde Stonehouse foi até ela e tomou suas mãos. Quando falou, foi em tom reverente:
_Srta. Harvey, venho de longe apenas para lhe dar duas notícias. Uma é muito boa. A outra, tão ruim quanto possa imaginar. A boa notícia é que o exército dos vampiros parou de avançar. Pelo contrário, aliás, ele é que começa a recuar para fora de nossa ilha. O General Wilhelm Van Allen está morto, e essa guerra nunca tocará essas paragens.
Ele fez uma pausa, na qual todos esperaram. Era fácil adivinhar qual seria a má notícia, mas aceitá-la era algo que não queríamos. Lorde Stonehouse respirou fundo várias vezes e continuou:
_A má notícia... _sua voz estava embargada. _A má notícia é que o homem que permitiu que isso acontecesse foi morto na batalha. _Ele fez uma pausa, respeitando as lágrimas que titia começava a verter. _Morreu como um herói. Primeiro, matou o próprio General Van Allen em duelo. Depois, levou consigo boa parte do exército dos vampiros, soterrando-os sob os escombros de um morro. Eles levarão muito tempo para se recuperar do golpe. Serão expulsos da Britânia e, se tudo correr bem, serão forçados a abandonar as terras dos magos, que invadiram. Talvez até se disponham a negociar.
Tia Edith continuava chorando, mas forçou-se a agradecer o Lorde da melhor maneira que pôde. Ele ajoelhou-se perante ela por um instante e se levantou novamente.
_O Sr. Goodfellow muitas vezes salvou a mim e a meu regimento nesses últimos cinco anos, Srta. Harvey. No início, desconfiávamos dele, mas acabou se provando nosso melhor aliado. Tivemos conversas breves, mas esclarecedoras. Na véspera de sua morte, ele anunciou que enfrentaria o General e que poderia não voltar vivo. Então, pediu que, se perecesse, eu fizesse chegar à sua noiva, uma certa Srta. Edith Harvey, essa carta que contém as últimas palavras dele. Também me nomeou executor de sua herança. Estou certo em supor que vocês têm um filho?
Ela arregalou os olhos e crispou as mãos na carta, momentaneamente distraída de sua dor.
_Como sabe?
_O próprio Goodfellow me contou. Disse que sentiu os primeiros cheiros de sua gravidez, e que a perspectiva de um filho foi o que deu a ele a coragem e o empenho de espantar a ameaça à Britânia. Bem, bem, o tempo urge e preciso cumprir meu dever. Vou começar a entregar os legados pela criança.
Como todos, fiquei aturdido. Acordei e fiz com que Kay entrasse na sala, e o instruí a caminhar na direção do Lorde. Ele ergueu o pequeno em seus braços, espantado.
_Valha-me Deus! É a própria imagem do pai!
Um soldado trouxe a espada com a defesa quebrada, sobre uma almofada, e o Lorde a entregou a Kay, com um floreio.
_A você, o Sr. Goodfellow lega a espada dele, para que a use com dignidade e honra.
O pequenino pegou e passeou a mão pela lâmina, com um ar encantado. Ocorreu-me que ele talvez ainda não tivesse entendido que o pai estava morto. Lorde Stonehouse continuou:
_Está aqui um jovem chamado Peter Harvey?
Fiquei sem respirar. Provavelmente tinha sido uma alucinação auditiva. Se tia Edith não tivesse olhado para mim e me chamado, eu não teria ido até a sala. Era a primeira vez que eu pisava na Grange desde a noite em que eu acordei e descobri que era um vampiro. Devo confessar que passei por muitos perigos sem tremer como tremia naquele instante.
_A você, jovem Harvey, o Sr. Goodfellow deixa este anel e algumas palavras: “confie mais em si mesmo”.
Eu recebi o anel tremendo ainda mais violentamente que antes. O Sr. Goodfellow costumava usar aquele aro de prata com uma turmalina preta no dedo médio.
Tão surpreendente quando eu ter sido contemplado no testamento era o fato de que entendi imediatamente o recado. Todo humano, quando se gradua em algum ofício recebe um anel. O Sr. Goodfellow, com aquele simples gesto, declarava meu treinamento completado. “Use suas qualidades para levar uma vida que valha a pena”, ele tinha me dito uma vez. Quando me lembrei disso, toda a saudade acumulada desde que ele se fora apertou meu peito. As lágrimas vieram a meus olhos, mas não chorei. Eu precisava ser forte, porque a segunda parte do recado também era clara: agora, a proteção de tia Edith e do pequeno Kay eram responsabilidade minha, e de mais ninguém. Eu era qualificado para o posto.
Ajoelhei diante de Lorde Stonehouse, em agradecimento. Ele fez um gesto para que eu me levantasse. Disse, em um tom de desculpas:
_Eu sei que você deveria ter sido o primeiro, mas quis fazer isso no jeito certo, de acordo com seus costumes. Eles dizem que, caso haja um filho de carne e sangue, mesmo sendo mais jovem, deve ser o primeiro. Só depois os outros são listados.
Eu corei.
_Mas eu não...
Senti um toque muito leve em meu ombro. Era tia Edith. Ela me olhava, compreendendo o que eu, na época, não sabia: a rejeição de meus pais tinha tido conseqüências muito mais profundas do que eu supunha. Pode parecer óbvio a vocês, mas levei sólidos duzentos anos para começar a admitir que eu fazia parte de uma família, afinal. Tudo bem que meus “pais” não eram casados, que eu não tinha nascido de nenhum deles, nem sido formalmente adotado. O importante era que o papel de “homem da casa” tinha sido passado para mim, não para o pequeno Kay. Eu queria não ter sido tão cego. Eu queria ter tido tempo de aprender a chamar tia Edith de “mãe”. Sr. Goodfellow estava certo. Eu não confiava em mim mesmo.
Lorde Stonehouse esperou pacientemente que eu saísse novamente da sala. Então, dirigiu-se novamente à minha tia:
_O último objeto que tenho a legar é esse camafeu, que o Sr. Goodfellow sempre usava em seu pescoço. Ele queria que fosse entregue a Srta. Harvey, em mãos.
Titia abraçou o pequeno colar com força. Eu o conhecia. Continha duas minúsculas pinturas feitas com um pincel mágico, por tia Edith, uma de si mesma e uma do Sr. Goodfellow. Ela era uma desenhista excepcionalmente boa. O Lorde parecia estar prestes a dizer algo, mas relutante em continuar. Seu senso de dever venceu, e ele disse, suavemente:
_A armadura do Sr. Goodfellow foi muito avariada em batalha, além de ter se enegrecido enquanto ele se desfazia em cinzas. Ela foi enterrada no campo de batalha, com um marco em honra ao seu feito. As cinzas foram recolhidas e estão naquela urna _apontou para uma urna ricamente decorada nas mãos de duas mulheres de sua comitiva. _Imaginei que ele preferisse ter seus restos mortais enterrados aqui _acrescentou, docemente, com um toque de desculpas na voz. _Eu gostaria muito de prestar as últimas homenagens a ele, mas não quero ser rude. Apenas nos diga onde será o local do enterro, e voltaremos amanhã para que faça o velório de maneira mais recolhida.
As lágrimas de tia Edith escorriam, mas a voz dela saiu firme:
_O senhor e sua comitiva são nossos convidados, meu Lorde. Tenho certeza de que falo por toda a minha família ao lhe dizer isso. Gostaria de fazer o velório na casa que Kay ocupava, ao sul da propriedade. Sobre o local do enterro, eu... Eu ainda preciso pensar.
O nobre inclinou a cabeça da maneira mais respeitosa. Ele e mais dois cavaleiros se ofereceram para levar a urna para onde tia Edith os conduzisse, enquanto o resto da comitiva se instalava na Grange.
Era o começo do fim.
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Não entrarei em detalhes sobre o velório e o enterro. Mesmo hoje, são lembranças que ainda doem, feridas que nunca se cicatrizaram. No início, não tive coragem para explicar ao pequeno Kay que o pai que ele sempre esperara ver surgindo na estrada não chegaria nunca. Entretanto, isso foi necessário durante o velório.
Lorde Stonehouse foi de extrema delicadeza todo o tempo. Ele próprio declamou o discurso no enterro, que aconteceu ao pé de uma árvore próxima da Pedra da Espera. Ela foi escolhida porque estava praticamente na fronteira do Domínio Harvey e minha tia tinha medo que, se enterrasse as cinzas de Kay mais para o meio da propriedade, seus irmãos pudessem removê-las e atirá-las fora. Ali onde estavam, seria mais simples eles moverem a cerca alguns metros.
A bondade do Lorde foi ao ponto de ele mandar um de seus homens, provavelmente um artesão, fazer brotar uma pedra das entranhas da terra com magia, e moldá-la em forma de lápide. Depois disso, ele e toda a comitiva se despediram de nós. Lembro-me bem de suas palavras, porque as evoquei mais tarde:
_Srta. Harvey, seu noivo não só me salvou a vida mais de uma vez, como prestou um inestimável serviço a todos os magos da Britânia. O que eu fiz ontem e hoje foi algo muito singelo e insuficiente para demonstrar minha... não, nossa gratidão. Se eu puder ser útil a você ou a seus filhos, não hesite nunca em procurar a mim ou aos de minha casa. Ainda que me peça minha própria vida, darei a você de bom grado. Adeus, e que o Senhor a abençoe.
Sempre que eu penso que o mundo está perdido, conheço alguém como Lorde Stonehouse, e minhas esperanças voltam. Bom homem. Que os anjos o tenham em seus braços.
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A partir dali, tudo piorou sensivelmente. Tia Edith se esforçava para se apresentar serena para o mundo, mas havia uma tristeza muito grande em seu olhar. Eu sabia que ela chorava quando pensava não ser vista, porque minha audição captava seus soluços. Os irmãos dela não tiveram coragem de expulsá-la de casa por suas ligações comprovadas com um vampiro, não porque ele era uma espécie de herói nacional, mas porque não queriam se indispor com Lorde Stonehouse.
Ainda assim, não chegaram a perdoá-la. Mesmo quando ela começou a definhar a olhos vistos, a despeito dos esforços de todos os que a amávamos demais, eles não levantaram um dedo. Já senti muita revolta por isso, mas... O que eles poderiam ter feito? A única pessoa que poderia curar nossa tia não andava mais entre os vivos.
Foi com o desespero dos que se sabem completamente impotentes que acompanhei todos os passos de minha tia a seu leito de morte. Foi uma jornada de oito meses, que quase me mataram, também. Ela não queria lutar contra aquilo.
Eu já estava tão desesperado que poderia tê-la forçado a beber meu sangue para se salvar, se não soubesse que isso só iria apressar as coisas. Vocês sabem, é o apego à vida que faz com que a pessoa tenha forças de acordar novamente, uma vez que a transformação em vampiro começa. A escolha entre viver e morrer é dela, e somente dela. Percebem a extensão do meu sentimento de impotência? Como proteger alguém de si mesmo?
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As primeiras neves do inverno caíam quando Kay e eu fomos chamados a Ivy Grange. A simples visão de tia Edith recostada em sua cama, tão pálida, tão espectral, me trazia lágrimas teimosas aos olhos. O próprio Kay, normalmente tão vibrante, como a única estrela de uma noite sombria, estava silencioso. Ela nos chamou para perto.
_Pete... Kay... _disse, numa voz fraquinha, mas ainda doce, tão doce... _Que bom que vieram. Preciso dar a vocês minha última bênção, pois vejo que não terei outra ocasião de fazer isso.
_Não fale assim, tia! _eu protestei, com a voz embargada. _Não pode ser um caso sem esperança!
Ela sorriu com muita dificuldade, mas não respondeu. Levantou a mão para mim:
_Pete, é a você que confio meu maior tesouro nesse mundo. Sei que ninguém exceto você poderá protegê-lo e compreendê-lo melhor. Peter, tu és a pedra sobre a qual repousa minha esperança. Se o pequeno Kay for metade do homem que você é, já será grande o bastante.
Solucei. Ela se dirigiu ao filho.
_Querido, a mamãe está indo encontrar o papai. Você vai ficar aqui com o Pete, tá bom?
_Por que eu não posso ir? _ele protestou.
_Porque não é sua hora. Você vai, meu querido, não tenha dúvidas. Mas não se apresse. Obedeça ao Pete quando mamãe não estiver, tá? De vez em quando, prometo que vou mandar um beijo pra você. Se sentir uma cócega na bochecha e não vir ninguém por perto, não vá pensar que é o vento.
_Eu não quero que você vai embora, mamãe! _ele começou a chorar.
_Eu queria estar uma parte aqui e uma lá, meu amor. É isso que está fazendo a mamãe doente. Um dia, espero que compreenda meu egoísmo imperdoável.
Ela apertou nossas mãos. Nós três chorávamos. Por fim, o esforço fez com que ela começasse a tossir e tivesse que se deitar de novo. Eu não queria soltar sua mão. A sensação era de que, se a soltasse, nada mais impediria sua alma de ir a um lugar onde eu não poderia mais alcançá-la.
Infelizmente, nem o mais forte de meus apertos poderia impedir aquilo. De novo a impotência ante as escolhas dos outros que não aprovamos. Ah, Deus, como eu queria um pouco de sua sabedoria, um pouquinho só, para não querer que meus desejos sejam realizados, mesmo que desrespeitem os dos outros!
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O que mais eu posso dizer de minha tia? O que mais vale a pena?
Não me lembro muito bem dos últimos dias. O testamento de tia Edith era simples. Generosos legados para a família e para os licantropos, e o resto, dividido em partes iguais para mim e para Kay. Isso não me interessou. Kay e eu com toda a certeza viveríamos uma vida errante e difícil. Vendi todas as terras do sul para meus tios, exceto o pequeno trecho onde o Sr. Goodfellow e tia Edith foram enterrados, lado a lado, e que compreendia a Pedra da Espera e o casebre. Não queria correr riscos de que os túmulos fossem violados.
Depois, peguei o dinheiro que cabia numa trouxa comum de viagem e dei o resto aos licantropos, que também precisariam de um novo lar. Eles precisariam do vil metal mais do que Kay e eu. Eu não estava preocupado com nosso sustento, já que poderia caçar, e os mestiços entre humanos e vampiros se alimentam de comida ou sangue indiferentemente.
Ainda assim, não nos enveredamos por caminhos solitários logo de saída. Os homens-lobo nos convidaram para errarmos atrás de abrigo com eles, e aceitamos. Eu, pelo menos, queria estar cercado de gente, para tentar sufocar um pouco a minha dor.
Quando nos despedíamos dos túmulos, em silêncio, ventava e nevava, cobrindo-os com um manto branco. Flocos de neve fustigavam nosso rosto.
_Olha, Pete! _Kay gritou, sorrindo. _Mamãe está mandando um monte de beijos!
Abençoadas sejam as crianças!
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O resto da história de Santa Edith vocês conhecem melhor que eu, pelos papéis. Kay e eu procuramos Lorde Stonehouse, anos mais tarde, para que intercedesse por nós junto ao Papa para iniciar a beatificação de titia. Algum tempo depois, conseguimos a canonização. Como milagres, era fácil achar provas: as moças que tinham os amores lutando em guerras sempre oravam aos pés da Pedra da Espera. Os não-humanos que pediam proteção eram ainda mais numerosos, mas seus relatos nunca foram levados em conta, mesmo.
Nós dois tivemos muitas aventuras, e Kay viveu seus trezentos anos plenamente. Honrou os pais, se tornou uma lenda por si só, e ainda teve a amarga chance de compreender e perdoar a mãe de todo o coração. Mas isso é outra história, ainda mais comprida.
Quanto a mim, tenho vivido bem. Conheci o amor em mais de uma jovem doce e alegre. Não sou, nem nunca fui um misantropo. Tenho amigos que não me deixar ficar solitário, e não posso dizer que leve uma vida ruim. Mas tia Edith estava certa. Querer estar metade nesse mundo e metade no outro, onde estão todos os que você mais amou nessa vida nos envelhece, e o resultado é esse que estão vendo.
Cansei vocês, não? Vou fazer um chá bem quente para revigorá-los. Aproveitem a vida, meus pequenos. Aproveitem o casamento de vocês, que ainda é tão recente. Nada no mundo é tão precioso a ponto de poder comprar um minuto a mais com a pessoa amada. Cuidem bem desse tesouro, e o utilizem com sabedoria e reverência.
Preferem com ou sem açúcar?