O Projeto

I

Finalmente. Ontem terminei o projeto ao qual estive me dedicando durante os últimos quinze anos. Assentei a última pedra, a derradeira camada de tijolos no muro fronteiriço a casa e me dei por satisfeito. Uma maravilha, verdadeira sensação. A Lua, que ia alta no céu, sabe do esforço que empreendi nesta obra, tocando-a muitas vezes ao custo de pão e água, sendo este pão, talvez, aquele do qual se diz que o diabo teria amassado. O importante, no entanto, é que calculei todos os pormenores de maneira extremamente precisa, evitando assim um gasto inútil de trabalho e o desperdício de tempo e material. Muitas vezes, quando uma pessoa não se põe a calcular antecipadamente cada um dos pontos do projeto, constrói-se para daí a pouco ter-se que derrubar o que foi erguido um momento antes, perdendo-se assim um tempo precioso. Poderia mesmo dizer que levantei uma residência admirável, muito sólida e concentrada e que ela me saiu mais bela e agradável do que a princípio me julguei capaz de realizar. Talvez a obra tenha transcorrido um pouco lentamente demais. Talvez tenha realmente gasto nela mais tempo do que o previsto inicialmente. Tudo isto é possível. Mas, tal fato não traz em si mesmo nada de prejudicial ou negativo. Muito ao contrário. Significa apenas que apliquei maior dedicação e engenho na construção firme destas paredes e numa consistente fundação. E de que vale tantas vezes a urgência com que concluímos as coisas? Em certas circunstâncias a rapidez e a pressa tendem a ser nefastas à exatidão e à perfeição da obra.

Poderia acrescentar que este momento final foi realizado quase sem nenhum esforço, através de uma pequenina janela, uma clarabóia que construi precisamente com esta finalidade na parede frontal da casa. Por ai podem perceber como fui diligente até nos mínimos detalhes. Vede bem: do interior da casa coloquei a argamassa e assentei no muro o tijolo que faltava e - devo confessar novamente - me dei por muito, muito satisfeito. Por outro lado, devo emendar que a consecução da obra não foi assim tão fácil quanto imaginas ou quanto talvez tenha dado a entender nas minhas palavras iniciais. Ela levou-me os melhores anos, a minha juventude e vitalidade, a minha força. Estou hoje um tanto fadigado e velho. Nem preciso descrever as dificuldades que encontrei no caminho para concluir com perfeição o meu objetivo. Para adquirir esta pequena propriedade tive que dispor de muitos anos de trabalho árduo e cansativo, amealhando mês a mês umas poucas migalhas que qualquer cão não hesitaria em recusar, cortando prazeres aqui, eliminando desejos acolá. Enfim, economizando e guardando o quanto podia para aplicar na toca e em sua execução. E se hoje eu a denomino assim é exatamente devido ao fato de ter depositado ali uma quantidade de trabalho sobre-humano, como de um prisioneiro ou de um escravo, laborando verdadeiramente como um animal. Além disto, este é realmente um lugar onde um bicho pode se esconder e sentir-se deveras seguro e tranqüilo. E, neste caso - como bem devem ter percebido - o bicho sou eu mesmo. No entanto, acredito que tenha valido a pena. Sei que nada neste mundo se torna tão real quanto aquilo que desejamos e construímos com todas as nossas forças.

Mas agora já é outro dia. O céu começa a se tornar mais e mais claro, lentamente. Posso me relaxar, estar quieto, aproveitar alguns bons momentos. Acumulei aqui uma grande variedade de livros e boa música decerto não me faltará. Posso me dedicar ainda à minha ocupação predileta, a floricultura. Cultivo plantas e flores dos mais variados tipos. Dálias, malmequeres, margaridas, rosas, violetas, samambaias, espadas de são Jorge, comigo-ninguém-pode, lilases, papoulas, gerânios, flores de tudo quanto é sorte de cor, formato e tamanho. Estão espalhadas por todos os cantos da casa e ocupam boa parte do meu tempo. Os filhos que não tive, substitui-os um a um por flores e vasos de plantas. Devo às revistas de jardinagem quase tudo que aprendi sobre a arte de lidar com os vegetais. E hoje, em minha atividade de flâmine floral, venho experimentando sucessivos cruzamentos na esperança e na ânsia de criar a minha rosa arco-irizada, multicolorida, um autêntico caleidoscópio vivo.

Outro tema que me atrai e me dá grandissíssimo prazer é o da astronomia. Adquiri recentemente uma série de obras sobre o universo, bem como um telescópio potente o suficiente para observar as estrelas e certos fenômenos que exercem um fascínio especial sobre a minha mente, como a passagem dos cometas e os eclipses lunares. Em certas noites brancas de lua muito cheia e bela, subo para a varanda da casa e permaneço sentado na minha velha cadeira de palha gozando longas horas agradáveis, serões onde me dedico à observação e ao estudo dos astros, ao reconhecimento de cada uma dessas estrelinhas que piscam e repiscam diante dos meus olhos, ligando-as à constelação a qual pertencem e tentando apreender o mistério da explosão inicial do universo. Desde que comecei a explorar os céus tenho descoberto estrelas nunca dantes catalogadas, uma infinidade de pequeninos meteoros e um grande cometa que vem vindo à longa distância, crescendo e se aproximando lentamente de nós. A este batizei de Cometa Ôniris. Finalmente, devo comentar que também construo caleidoscópios. É uma maneira um tanto agradável de passar o tempo. A primeira vez que tive um destes mecanismos nas mãos foi em minha infância, presente de um velho tio que já se foi.

Mas, como eu ia dizendo, nada alterará a minha idéia inicial de estar imóvel, quieto nesta cadeira de palha desgastada pelo tempo, apenas observando o desenrolar do universo e cuidando de mim mesmo e do meu próprio bem-estar. Dentro da minha casa, estou salvo, literalmente a salvo. Não necessito de nada. Aqui tenho tudo quanto quero e preciso. Alguns aparelhos eletrônicos me põem em comunicação com o mundo externo e me trazem as notícias de fora. E olhem como fui engenhoso e perspicaz: em relação à alimentação e às outras necessidades elementares, deixei tudo combinado com alguns fornecedores. Diariamente me trazem comida, papéis, jornais e revistas. Depositam tudo através de uma pequena porta que dá acesso a uma espécie de depósito ou dispensa que mandei levantar na frente da casa. Lá, igualmente, deixo dinheiro suficiente para o pagamento dos referidos bens.

Às vezes, uma pessoa qualquer toca por engano nesta portinhola. Em geral nem sequer me preocupo em saber quem é. Imagino que mais cedo ou mais tarde, vai desistir e partir. Uma vez ou outra observo os transeuntes caminhando na rua por uma janelinha que fiz construir num ponto obscuro do muro ou pela guarita elevada posta no flanco esquerdo da entrada da casa. Alguns vão em pequenos grupos e outros solitariamente. Aqueles caminham lentamente e estes mais velozes. Não sei para onde vão com tamanha pressa. Necessariamente devem estar indo para um lugar qualquer. Muitas vezes, no entanto, vejo que as mesmas pessoas que caminham para lá, são exatamente aquelas que se movimentam para cá, como se estivessem perdidas, sem saber ao certo que rumo tomar. Não sei. Outro dia prestei atenção numa senhora morena e de aparência distinta que transitava diante da casa, ornada por um vestido suavemente azul que lhe adelgaçava as formas redondas das nádegas. Cheguei a imaginar tolices. Tolices. O que importa mesmo é que estou a salvo e não tenho que me preocupar em ser cordato ou participativo com os demais elementos da comunidade. Pouco importa a vida lá fora. Minha casa é meu refúgio e minha fortaleza. Os vizinhos, não os conheço. Não sei o que pensam de mim, se é que pensam alguma coisa. Talvez me achem um pouco estranho, solitário e taciturno ou acreditem que a casa verde diante das suas esteja abandonada. Talvez não estejam de todo errados em alguns dos seus pensamentos.

De vez em quando, em certas noites muito belas, saio à rua para caminhar e olhar as estrelas. Gosto de sentir o frio ar noturno entrando pelas minhas narinas, trazendo o cheiro adocicado das damas-da-noite. Isto me traz recordações. Também gosto de pensar enquanto caminho. Meu pensamento parece se tornar mais leve e criativo e minhas idéias tornam-se mais equilibradas. O Universo e as grandes questões sempre me afligiram.

Às vezes vou visitar a Srta. Gisele, uma amiga. Isto acontece mais ou menos uma vez por mês. Ela me recebe, conversamos por cinco minutos, faço o que me dispus a fazer, dou a ela o dinheiro que lhe é devido pelo trabalho prestado, me despeço e vou embora. Ela sobrevive como pode. Muitas vezes as pessoas agem assim: vão vivendo da maneira como a sorte lhes determina ou possibilita. Eu mesmo já tive um amor. Foi na época em que comecei a construir a casa. Acabara de completar trinta e dois anos quando conheci Laura, uma jovem muito bela e educada. Resolvera-me casar. Os dias chegavam, os meses passavam. Acabei adiando a união, tendo em vista os receios que me surgiram sobre como conseguiria manter uma família e criar os filhos. O tempo passou. Três anos depois, a casa ainda não estava pronta, mas eu acreditava que em pouco tempo terminaria o trabalho. Voltei a procurar a mulher com quem planejara me casar, mas já a encontrei esposa e mãe. Não desisti. Pensei que o melhor mesmo que tinha a fazer era continuar tocando a obra até a sua conclusão final. E foi o que fiz.

II

Acordei agora, no meio da noite. Sinto-me um tanto desorientado, desanimado. Olhei pelo telescópio na direção dos pontos cardeais e não consegui ver nada. Nem estrelas, nem satélites ou planetas. O céu está todo encoberto por pesadas nuvens, o que definitivamente me dificulta a visão do infinito.

Hoje quase percebi o sentido das coisas, o porquê delas. Estive a ponto, a ponto de entender. De entender, percebes? No entanto, como se tivesse cochilado por um único segundo, o sentido das coisas se escapou novamente de mim ou fui eu que me afastei da sua presença uma vez mais. Mas ficou um caminho, uma lembrança como pedacinhos de pão na alma, certo sabor no peito, talvez uma estrada. Estou isolado dentro da casa e só diante do universo inteiro. Estou diante do universo como defronte a uma tela da qual eu não fizesse parte. Ou melhor, da qual fosse parte constante da pintura, mas igualmente conseguisse me colocar diante dela e ver ali os reflexos da minha própria imagem e me pusesse a observar e analisar a tela e a minha imagem nela, a madeira que a envolve e a parede na qual está instalada e todo o infinito que a rodeia. Estou só dentro de mim, extremamente só, muito mais só do que você ou eu poderíamos imaginar. E esta percepção sempre me dá certo aperto no peito. Quando me vêm estas percepções de como cada um de nós está extremamente isolado e preso dentro do seu próprio eu diante das múltiplas visões que a sua alma lhe expõe como telas de quadros, sem qualquer possibilidade de comunicação ou apaziguamento interno e ainda como se cada um fosse um casulo fechado, parece-me que vai haver uma explosão no sentido inverso da grande explosão inicial e que tudo voltará a ser sugado para dentro e que o universo inteiro vai continuar se fazendo num desfazer-se misterioso.

Lembrei-me então que já é hora de me despedir de vós dizendo que nada é tão real quanto se imagina ser, ou ainda que nada tenha tanta realidade quanto aquilo que imaginamos ou acreditamos. A Lua, que vai alta no céu, sabe do esforço que empreendi. Talvez ainda saia esta noite, dê uma volta inteira pela cidade para respirar o ar fresco da madrugada, sentir o aroma adocicado e esparramado das damas-da-noite. Elas me trazem suaves recordações. Quem sabe ainda dê tempo de fazer uma visita a Srta. Gisele. O ideal mesmo seria que não chovesse hoje, que o tempo permanecesse firme. Mas isso veremos logo mais. Por enquanto vou apenas continuar sentado nesta velha cadeira de palha e esperar. Amanhã, talvez...