ALFACE – OS DISCURSOS DE ROSQUINHA
* Da série ALFACE
A juventude de Alface , como já narrado em outras passagens de sua história de vida , teve como palco o período da ditadura militar e todo o direito de reunião era controlado severamente pelo estado e seus muitos espiões e agentes secretos, auxiliados como convém aos regimes de exceção pelos sempre serviçais “dedos duros” , pois por mentira que possa parecer mesmo os déspotas conquistam simpatizantes .
Mas, como convém sempre rememorar , a esquina dos contos não era um local de debates políticos e , menos ainda um reduto de complôs ou conclaves político-ideológicos , muito antes pelo contrário, tratava-se de um espaço reservado à rebeldia juvenil onde o que mais interessava eram assuntos como esportes, festas , música e , muito especialmente , namoros .
Todavia, o espaço havia se tornado bastante conhecido e notável pelo bom humor e pela leveza , de modo que muitas personalidades dessas que perambulam pelas ruas adotavam a passagem por ali como uma parada obrigatória . E eram sempre bem recebidos e tratados com aquela irreverência leve, livre e solta , que os anos depois impiedosamente furtam aos jovens.
Uma dessas figuras que visitavam a esquina dos contos era a do “Rosquinha” que havia ganhado esse apelido devido à forma de sua caixa craniana – uma cabeça estranha – lembrando o formato de uma rosca frita , secundada por um cabelo crespo e um miolo careca. Nada mais apropriado , portanto , que essa alcunha ou , como diria o Alface: - “ um apelido sob medida”...
Rosquinha era portador de uma espécie de deficiência mental ou algum outro tipo de distúrbio , desses que só os psiquiatras conseguem entender em toda sua extensão. Ingeria, segundo ele mesmo contava , um coquetel de medicamentos “controlados” , os quais eram prescritos com a proibição médica de abstenção ao álcool. Advertência que “Rosquinha” não tomava por séria e , semanalmente comparecia à esquina encharcado de cachaça.
Não era difícil distinguir quando “Rosquinha” estava sóbrio de quando estava bêbado, pois bastava olhar para suas mãos e verificar se carregava um pequeno vaso com uma flor ou folhagem qualquer . Era interessante, porque sempre que se aproximava segurando um vegetal era sabido que ele estava ébrio . “Podre de cana”, como alardeava o Alface.
A primeira vez que a confraria da esquina dos contos viu uma ação truculenta do Exército foi para prender o “Rosquinha”. Estava ele na esquina dos contos proferindo um discurso contra a ditadura militar e inflamado , tal o defensor máximo dos direitos democráticos , bradava :
- “Milicos desgraçados, torturadores , libertem os prisioneiros que vocês prenderam pela simples defesa da liberdade – devolvam os filhos para as mães desesperadas – Viva o Brizola , viva o Jango !”
Uma guarnição compareceu ao local e juntou o “Rosquinha” , sob o silêncio covarde de muitos expectadores e sob as vaias dos jovens da confraria da esquina e até de alguns professores ligados aos movimentos de resistência e senhoras idosas da vizinhança que viam naquele “louco” uma figura sob certo aspecto simpática e inofensiva.
Quiçá depois de perceber que o sujeito não “regulava bem” seus neurônios , alguém no comando da unidade militar mandou soltar aquela figura minguada e inofensiva. Dizem que ele apanhou um bocado numa masmorra do quartel , mas o certo é que logo após sua liberação ele foi visto aportando à esquina sem nenhum vaso de flor na mão,o que indicava sobriedade e proferindo o seguinte discurso:
- “Vida longa aos heróis das forças armadas ! – salve a redentora revolução que livrou este país da ânsia moscovita e da desgraça vermelha ! – Convoco todos a aplaudir a tarefa sagrada de combate aos comunistas, comedores de crianças !”
Alface meneou a cabeça e disse logo para Phósforo: - “Ele deve ter apanhado muito”. Todos deram boas risadas e o comentário que tomou conta da esquina dos contos nos dias seguintes foi o de que os “milicos” haviam encontrado um tratamento mais eficiente para o “Rosquinha” do que aquele aplicado pelos Psiquiatras . Claro que muitos gritavam para ele frases do tipo : “traidor – viraste a casaca” – “te vendestes para os milicos desgraçado !”
Depois desse discurso transcorreram algumas semanas que marcaram ausência do personagem à esquina dos contos , até que numa das sessões de contos , Phósforo interrompeu a narrativa e disse: “Olhem , lá vem o “Rosquinha” e está carregando algo na mão” ...
Era uma lata de Nescafé com uma margarida florida , indicativo claro de que o “Rosquinha” estava “pronto” para mais um discurso. Quando todos esperavam que iniciasse sua locução de defesa do regime militar ele disparou : “Gorilas assassinos, vocês não poderão jamais calar a voz do povo !” – “Este País não ficará o resto de nossas vidas entregue ao arbítrio” – “Liberdade já e anistia para os presos e asilados políticos” ...
No Diário de Alface está escrito que a guarnição militar prendeu e soltou o “Rosquinha” uma dezena de vezes, sempre produzindo a alternância de discursos pró e contra a ditadura . Depois de saturados dessas sessões de prisão e liberdade, “largaram de mão” e ele continuou a vagar pelas ruas da cidade, ora com as mãos limpas, ora carregando um pequeno recipiente com um vegetal vivo ...