Sangue de Dragão - Cap. 04

CAPÍTULO 04 – Um Reencontro Nada Amistoso

Dentro do quarto as horas não passavam. O tique taque do relógio era ensurdecedor. Mais uma vez o mestre Farmenis o deixara enfurnado entre aquelas quatro paredes sem ter nada para fazer. Como sempre o mestre tinha dito que era melhor ele não sair do quarto até segunda ordem e que o esperasse voltar.

Deitado na cama com as mãos na nuca Orogi, mais do que suportar a espera, tentava entender o que tinha acontecido no refeitório algumas horas atrás. Quando pensava no episódio, ainda sentia o peso dos olhares dos alunos. Era como se ele fosse alguma coisa estranha, um monstro horrendo que todos evitavam se aproximar. Mas mesmo chateado com tudo que aconteceu, um fato chamou sua atenção. No meio dos olhares de medo e raiva dos alunos, um se mostrou diferente. O olhar da garota Sarina, que a princípio era igual ao dos outros, mudou para um olhar que expressava tristeza. Para Orogi, Sarina estava desconfortável com a situação, e parecia não concordar com toda aquela agressividade.

De uma forma que Orogi não entendia, toda vez que pensava no olhar da aprendiz de magia sentia um alívio no coração. Não sabia por quanto tempo ainda ia ficar nas dependências da Ordem e nem se teria forças para agüentar todos os dias aquela hostilidade que enfrentou no refeitório. Mas o olhar de Sarina lhe dizia que nem todos tinham a mesma opinião a respeito dos Sangue de Dragão, e isso o deixava mais esperançoso.

Espere. E se aquela garota soubesse de algo? Neste instante, lembrou de uma frase do mestre Farmenis que dizia: Quem tem conhecimento não toma atitudes precipitadas. Será que Sarina sabia algo mais a respeito dos Sangue de Dragão?

Desde que partiu de Ardas, cheio de esperanças em se tornar um mago, as respostas do mestre para suas perguntas foram sempre curtas. Talvez não tivesse chegado a hora para saber as respostas, e o mestre estivesse esperando o momento certo, mas a sensação era de que não as obteria tão cedo. Além disso, Orogi se via cada vez mais preso num conjunto de acontecimentos que não tinham volta. A esperança de ser um mago cada vez mais distante, o ritual pelo qual teve de passar, os pesadelos, a hostilidade das pessoas e, principalmente, essa história de servir a Ordem como um sangue de dragão. Afinal, o que é ser um Sangue de Dragão? Por que será que o mestre não lhe dava as respostas necessárias? Uma mistura de medo e raiva percorria a mente de Orogi. Precisava saber mais a respeito do que estava acontecendo com ele.

E se as primeiras respostas pudessem ser dadas por Sarina, valeria a pena correr o risco de desobedecer ao mestre Farmenis e procurar por ela. A decisão estava tomada.

Já era inicio da noite quando Orogi resolveu sair do quarto e perambular sorrateiramente pelos corredores da Torre Norte, iluminados por estranhos globos de luz totalmente diferentes das tochas a que estava acostumado, e onde ficava a maioria dos aposentos dos professores da Ordem. Em pensamento agradeceu ao mestre Farmenis pelo passeio que realizou pelas dependências da Ordem, que o fez lembrar o caminho para sair da torre, pegando a escadaria principal. Sua única preocupação era não ser pego caminhando sozinho, sempre se escondendo quando percebia a aproximação de alguém.

A Torre Leste era onde ficava o alojamento dos aprendizes. Orogi demorou quase uma hora para chegar lá em seu ritmo lento de se esconder enquanto avançava. Quando chegou ao pátio central quase congelou, a noite estava realmente fria, estranhamente diferente do clima dentro da torre, onde não sentiu queda nenhuma de temperatura. Talvez algum tipo de mágica protegesse todos dentro da torre.

Dois guardas faziam sentinela em frente aos portões da torre leste. Estavam vestindo armaduras leves de couro, portando lanças e espadas presas à cintura. Não seria nada fácil passar por eles. Orogi então resolveu tomar a decisão mais perigosa e estúpida que lhe veio à mente, encarar o problema de frente.

---- Hei, garoto. O que está fazendo? --- perguntou um dos guardas.

---- Nada, estou retornando aos meus aposentos --- respondeu Orogi.

----- O toque de recolher para os alunos foi à uma hora --- disse o outro soldado.

---- É....eu sei...é que fiquei um pouco mais tarde com meu professor --- detestou ter que mencionar o mestre em sua mentirinha.

---- humm...os professores, mais do que ninguém, nunca desobedecem o toque de recolher dos alunos --- disse um dos guardas ---- Quem é seu professor?

---- Mestre Farmenis --- Orogi tentava ao máximo não transparecer nenhum nervosismo e transmitir tranqüilidade em suas palavras. Tremia por dentro , mas olhava os guardas nos olhos.

Depois de um silêncio desconfortante, no qual os dois homens à sua frente tentavam extrair suas dúvidas, resolveram permitir a entrada do garoto.

Orogi sentiu um grande alívio. Mas como não sabia por onde começar a procurar por Sarina, resolveu arriscar ainda mais.

---- É...desculpe, mas tenho um recado do mestre para a aprendiz chamada Sarina. Onde posso encontrá-la? --- os guardas nem sequer olharam para ele.

---- Não sei garoto, vá perguntar isso ao secretário --- respondeu um deles.

Como não sabia quem era esse tal secretário nem onde encontrá-lo, Orogi saiu olhando de porta em porta na esperança de encontrar alguma inscrição de secretaria. E realmente achou. O aposento, guardado por uma bela porta dupla de madeira, se encontrava no primeiro andar, e no alto da soleira havia uma inscrição “Secretário”. Nada mais óbvio.

Parado em frente à porta, Orogi pensava no que fazer para encontrar Sarina. Agora teria que falar diretamente com o secretário. Os guardas acreditaram em sua mentira, mas com certeza o secretario não cairia naquela conversa. Devia conhecer todos os alunos, e assim que o visse descobriria que não faz parte deles. A situação se complicava mais, mas a vontade de saber sobre o que estava acontecendo era maior dentro de Orogi. O risco teria que valer a pena. Resolveu bater a porta, mas foi interrompido por uma voz.

---- O que você quer garoto? --- disse um homem. Era negro, careca, usava o típico manto da Ordem, e seu olhar, atrás de um par de óculos, era bastante sério. Orogi não percebeu sua aproximação e quase caiu para trás de susto.

---- D...desculpe mestre...não o vi chegar. Meu nome é Orogi.

---- Muito bem Orogi. Acredito que Farmenis não sabe que esteja aqui.

---- O senhor sabe que eu estou com o mestre Farmenis? --- perguntou surpreso Orogi.

---- Eu sei de tudo o que se passa na Ordem da Magia garoto. Os professores me mandam relatórios constantes sobre os alunos. É minha responsabilidade enviá-los para o conselho. Portanto, sei que você não é verdadeiramente aluno de Farmenis. Eu sei o que você é.

As palavras do secretário deixaram Orogi sem fôlego. Estava confuso e assustado.

---- Não sei o que pretendia vindo aqui, mas saiba que relatarei isso à Farmenis para que ele tome a devida decisão sobre sua punição.

---- Por favor, mestre, não fale nada com o mestre Farmenis. Me desculpe por ter vindo aqui a essa hora. É que eu queria falar com a aluna Sarina, só isso.

---- O que você quer com ela? --- o olhar do secretário era inquisidor.

---- N..nada mestre...quer dizer...só achei que pudesse ser minha amiga --- Orogi tirou da alma aquelas palavras. Se sentia muito só desde que chegou na Ordem.

---- Para pessoas como você a Ordem da Magia não é lugar para amizades, mas para trabalho. Agora entre na minha sala, pois preciso redigir o relatório para seu mestre.

A sala do secretário Vargas, que se apresentou muito depois, era ampla e muito bonita. Orogi sentou-se numa cadeira em frente à sua mesa, repleta de livros e pastas, enquanto ele escrevia o relatório.

---- Espero que em sua pequena estadia aqui na Ordem, Orogi, não venha a acarretar muitos problemas. Principalmente para mim, que tenho que tomar conta de tantos alunos --- disse Vargas, apontando para um livrão de muitas páginas ao seu lado.

---- Não senhor, mestre, não quero lhe dar problemas

---- Assim espero. Bom, aqui está seu relatório. Agora volte para os seus aposentos e pela manhã entregue isto a Farmenis, entendeu?

---- Sim senhor --- respondeu Orogi. Neste momento alguém bateu na porta. Um dos alunos apareceu com feições tensas.

---- Desculpe incomodá-lo, mestre Vargas. Temos um problema no alojamento dois. É...um pequeno desentendimento entre alunos

---- E o que mais? --- perguntou Vargas já lendo a mente do garoto.

---- Houve uso inapropriado de magia, mestre --- respondeu o aluno.

---- ahh...esses pestinhas não aprendem mesmo --- expressando estar cansado e sem paciência, Vargas se levantou da mesa devagar e olhou para Orogi ---- Agora entende o que eu disse garoto? --- Orogi apenas confirmou com a cabeça ---- Está dispensado, volte para o quarto agora mesmo, quando voltar não quero encontrá-lo aqui --- ordenou Vargas, que saiu rápido batendo a porta com Orogi ainda dentro da sala.

Orogi ainda ficou algum tempo na sala com um olhar perdido, pensando o que diria para o mestre Farmenis sobre o relatório que tinha em mãos. Seu plano tinha dado errado e teria que enfrentar mais problemas, e com certeza uma bela punição. Ou será que nem tudo estava perdido?

Seus olhos se fixaram no grande livro à sua frente. Orogi se levantou rapidamente e começou a folhear o livro. Era o que ele imaginava, o livro continha os nomes de todos os alunos, com muitas características que não entendeu, mas, principalmente, onde estavam alojados todos eles. Mesmo diante dos riscos, a possibilidade de encontrar Sarina ainda era válida. Procurou por alguns minutos e encontrou. Seu objetivo agora era o alojamento seis.

Uma pequena confusão tinha se instalado pelos corredores da torre leste. Muitos dos alunos estavam agora fora dos seus quartos e se dirigiam para o centro da confusão. Um cheiro de queimado se espalhava pelo lugar. Algo sério pode ter ocorrido com os alunos que se desentenderam pensou Orogi. O mais importante foi que toda aquela balbúrdia serviu para que ele passasse despercebido em direção ao alojamento onde esperava encontrar Sarina.

Não demorou muito para Orogi encontrar o alojamento seis. Escondido atrás de uma pilastra, observou que as portas do alojamento estavam abertas e algumas alunas estavam saindo e se dirigindo corredor adentro. Para sua surpresa Sarina aparece à porta acompanhada por outra garota. Uma aluna se aproximou delas trazendo notícias sobre o ocorrido no alojamento dois.

---- Tilla, o que houve? Por que essa confusão toda? --- perguntou Sarina.

---- Parece que foi mais uma do Azura --- respondeu Tilla

---- Não acredito --- falou a terceira garota ---- será que aquele garoto nunca vai cansar de causar problemas. O que foi desta vez Tilla, conseguiu ver alguma coisa?

---- Pouca coisa Somara. Alguns guardas e professores já se encontram no alojamento dos meninos. Mas pelo que eu consegui ouvir, o Azura utilizou magia de fogo numa briga com outro garoto.

---- Magia de fogo --- Sarina se espantou ---- Azura enlouqueceu. Não quero nem imaginar a punição que irá levar.

---- Tenho lá minhas dúvidas se será realmente punido por isso --- disse Tilla ---- da última vez que aprontou algo desse tipo só recebeu uma punição leve.

---- Todo mundo sabe que Azura é filho de um dos comerciantes mais ricos de Taram. Dizem que seu pai é amigo pessoal do Imperador --- comentou Somara.

---- Pois é, até na prestigiada Ordem da Magia algumas pessoas têm privilégios --- desabafou Sarina olhando displicentemente para trás e se deparando com Orogi no meio do corredor.

Seus olhos arregalados não acreditavam no que estavam vendo.

---- Preciso falar com você --- disse Orogi

---- O que você está fazendo aqui? --- perguntou Sarina. As outras garotas estavam olhando para Orogi com ar de surpresa.

---- Preciso te fazer algumas perguntas. E já que você foi a única que não queria arrancar minha pele, hoje no refeitório, resolvi vir aqui. Desculpe, não quero te causar problemas --- disse Orogi

---- Ela não tem nada pra conversar com você --- falou Tilla ---- é melhor você ir embora antes que eu chame os guardas.

---- Por favor, não chamem os guardas --- pediu Orogi ---- É que não conheço ninguém aqui e me sinto muito sozinho. Nem meu mestre me faz companhia. Queria apenas alguém pra conversar --- disse isso olhando nos olhos de Sarina.

Sarina não tinha percebido até agora. Os olhar daquele garoto estava repleto de confusão e tristeza. Suas palavras, não sabia porque, tinham tocado seu coração de uma forma nunca sentida antes.

---- N..não sei o que posso fazer por você --- disse Sarina. Orogi deu alguns passos em sua direção.

---- Queria apenas saber o que pode me dizer sobre eu ser um sang..--- não deu tempo de completar a frase. Somara e Tilla apontaram uma das mãos em sua direção e as movimentaram de forma estranha, uma fechada e outra aberta com os dedos unidos. Seus pés afundaram alguns centímetros no chão de pedra, ficando presos, e uma forte lufada de vento o derrubou no chão, batendo as costas e a cabeça com força no solo.

---- Não se aproxime menino-dragão --- ameaçou Tilla

---- Calma gente, utilizar mágica é proibido no interior da torre. Não quero ser punida por causa de um garoto estúpido. Tilla, desfaça seu feitiço, eu mesma cuidarei disso --- disse Sarina. Mesmo a contra gosto Tilla desfez sua mágica e libertou os pés de Orogi. O garoto estava agora sentado passando a mão na parte de trás da cabeça e fazendo careta.

---- Venha moleque, vamos sair daqui --- Sarina pegou Orogi pela gola de sua camisa e saiu arrastando-o pelo corredor.

---- O que vai fazer Sarina? --- perguntou Somara

---- Hoje é meu dia de fazer a limpeza, lembra. Vou jogar o lixo pra fora.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 19/11/2010
Código do texto: T2624618
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