Sangue de Dragão - Cap. 02
CAPÍTULO 02 – A Junção
Orogi nunca tinha dormido num quarto como este. Era amplo, espaçoso, com uma bela cama e alguns pequenos móveis que não sabia para que serviam. Uma janela aberta deixava entrar uma gostosa brisa matinal, e dava vista para o grande pátio da Ordem, onde pessoas já se encontravam realizando seus afazeres e estudos. Perdido em pensamentos e acariciado pelo vento, Orogi foi despertado quando a porta do quarto se abriu abruptamente.
---- Vamos pequeno, temos muito que fazer hoje --- disse Tarlius, que segurava um livro e parecia apressado.
---- Para onde vamos? Onde está o mestre Farmenis? --- perguntou Orogi enquanto se apressava em vestir as roupas.
---- O mestre o encontrará depois. Primeiro iremos entregar esse livro na biblioteca, depois teremos que ir até a Oficina retirar alguns itens, e por fim te darei um banho.
---- Um banho? --- Orogi não era muito chegado à banhos, como a maioria dos meninos de sua idade, mas tinha tomado um no dia anterior e se sentia limpo. Além domais, não era mais criança e já sabia tomar seus banhos sozinho, não precisava da ajuda de nenhum adulto.
---- Não é um simples banho. Faz parte do seu processo de Junção e só um mago pode realizar, e como iniciante eu fui destacado para isso.
---- O que é uma junção? Eu vi esse nome em um dos livros do mestre --- disse Orogi
---- Todo pretendente a se tornar um Sangue de Dragão deve passar pelo Ritual de Junção. Você devia se orgulhar, pois nem todos possuem a honra de servir a Ordem fora das fileiras dos magos.
---- Ainda não me respondeu. Como é esse tal ritual? O mestre nunca me disse nada sobre eu ter que fazer isso --- Orogi não recebeu bem a idéia de realizar um ritual que não sabia para que servia. Essa história de ser um escolhido, um Sangue de Dragão, também não lhe agradava, pois as coisas estavam se encaminhando para algo que ele não tinha como voltar atrás. Por que será que o mestre nunca falou sobre esse ritual? Um certo receio crescia em Orogi. Que história era aquela de dragão? As antigas lendas não dizem que os Dragões eram seres malévolos?
---- Na prática eu nunca presenciei um ritual de junção, apenas li nos livros --- respondeu Tarlius ---- Mas o que sei não me é permitido revelar a um pretendente a Sangue de Dragão como você. Isso poderia comprometer todo o processo.
---- Eu não estou gostando nada de todo esse segredo ---protestou Orogi ---- Quando encontrar o mestre Farmenis, pedirei a ele que me explique o que está acontecendo.
---- Perderá seu tempo garoto. Ele também não lhe dirá nada. Peço que pare de questionar e aceite o que o destino lhe reservou.
---- Eu não pedi esse destino. Me leve até o mestre, quero falar com ele agora --- Orogi estava indignado e irritado, mas lembrou que não podia expressar demais sua irritação diante de um mago, mesmo um aprendiz como Tarlius, pois poderia receber uma punição por insubordinação. Os magos devem ser respeitados. Tarlius resolveu deixar isso bem claro.
---- Escute bem garoto --- o aprendiz de mago segurou Orogi pelo braço com força e encostou o garoto na parede ---- eu não dou a mínima para os seus desejos. O mestre Farmenis me deixou encarregado de tomar conta de um moleque como você, e não pretendo decepcioná-lo. Portanto, se não q uiser uma punição, aconselho que fique calado daqui por diante --- Tarlius encarava Orogi nos olhos, enquanto o garoto tentava inutilmente se libertar das mãos do mago ---- por mim os anciães da Ordem poderiam se livrar de uma vez de aberrações como você.
Orogi observou surpreso a agressividade de Tarlius. A partir daquele momento o aprendiz de mago se comportou com impaciência e rispidez. Orogi o acompanhou em silencio, e quando retornaram à torre principal da Ordem, Tarlius mandou que ficasse recluso em seus aposentos até que o chamasse.
Orogi se sentia irritado pela agressividade de Tarlius, mas também triste pelo de ter ficado afastado do mestre Farmenis o dia inteiro e ele não o ter procurado nem por um momento sequer. Um sentimento de solidão brotou em seu coração, acompanhado de inúmeras imagens mentais de momentos ao lado do mestre. Em muitos desses momentos o mago, que considerava um pai, agia e falava com extrema raiva e indiferença, expressando-a muitas vezes em atos violentos, atos esses como o que Tarlius tinha feito hoje. A forma, as palavras e principalmente o olhar com que Tarlius se expressou lembrou a maneira como o mestre se relacionava com ele muitas vezes. Com lágrimas nos olhos Orogi se perguntava lá no fundo da alma se o mestre Farmenis o considerava um filho. Se o amava de verdade. Adormeceu com esse questionamento.
Batidas na porta. Ao abrir os olhos, Orogi percebeu que tinha caído num sono profundo sem sonhos. A porta do quarto se abriu e Tarlius entrou com sua costumeira pressa e portando uma espécie de bacia com água e repleta de ervas de cheiro forte. O tal banho que Tarlius comentou foi dado ali mesmo no quarto. Ao término, Orogi se sentia meio zonzo e sua pele estava cheia de pedaços das várias ervas que Tarlius tinha esfregado nele.
---- Chegou a hora. O mestre Farmenis o espera --- um sorriso se abriu no rosto de Orogi às palavras de Tarlius. Finalmente poderia ver o mestre.
Tarlius acompanhou Orogi pelo interior da ordem até chegarem a uma grande porta dupla. Vestido com seu tradicional manto branco, o mago Farmenis aguardava na entrada. Orogi abriu um grande sorriso e correu na direção do mestre e o abraçou. Não conseguiu segurar o contentamento em vê-lo. Farmenis não correspondeu à sua alegria e sua recepção foi fria.
---- Guarde sua euforia, não é o momento pra isso --- Farmenis afastou Orogi e o virou para a entrada da grande porta segurando em seus ombros. Olhou para Tarlius e fez um sinal de positivo com a cabeça ---- Agradeço seus serviços aprendiz Tarlius.
---- Ao seu dispor mestre --- respondeu Tarlius
Farmenis abriu a porta, que dava para um grande salão onde um grupo de dez magos, vestindo túnicas e capuzes vermelhos e dourados, se encontravam sentados numa grande bancada de madeira entalhada com belos desenhos, a uns dois metros de altura em relação ao solo. No meio e abaixo da bancada tinha uma porta aberta, mas não dava para ver o que tinha além devido à escuridão. Apenas duas tochas iluminavam a entrada, revelando a rocha bruta das quais eram feitas as paredes laterais do que parecia ser um corredor.
As feições e olhares dos anciães magos eram extremamente sérios e demonstravam, de uma forma quase palpável, um ar de superioridade misturado com uma grande indiferença. Entre eles Orogi identificou o Lorde Borgus sentado a sua esquerda. O velho mago se levantou, assim que Farmenis se aproximou do centro do salão, sendo acompanhado pelos demais. E olhando para baixo começou a falar.
---- É com grande honra que o recebo neste feliz momento, Farmenis, filho de Frigas. Ainda lembro que há pouco tempo atrás era meu estimado pupilo, aprendendo as artes arcanas com afinco e uma determinação vigorosa. Isso tudo lhe rendeu uma bela trajetória de serviços á Ordem da Magia e ao Reino do Norte. Seu pai deve estar muito orgulhoso de você --- Lorde Borgus expressou um leve sorriso e um aceno de mão e voltou a sentar-se.
---- Obrigado mestre Borgus. Agradeço ao senhor e a este ilustríssimo Conselho por mais essa oportunidade de demonstrar meu amor por esta escola de magia. E agora trago essa criança como prova de que pretendo dar continuidade aos meus serviços, desta vez com atividades mais diretas, em prol da expansão de nossa ideologia de liberdade e proteção.
---- Belas palavras Farmenis --- falou outro ancião mago, com cabelos brancos amarrados em forma de rabo de cavalo e usando óculos com armações douradas ---- Mas é importante lembrá-lo dos perigos de se tornar um condutor de Sangue de Dragão, tanto para você como para ele também. Você sabe o acontece quando eles se descontrolam, não sabe?
---- Sei sim mestre, e aceito o desafio, pois é com grande satisfação que pretendo me incorporar às forças da Ordem e do Reino do Norte em Menizaia --- respondeu Farmenis.
---- Muito bem, vamos iniciar o ritual. E que essa Junção possa se dar sem maiores problemas e que esse mais novo sangue de dragão possa servir aos desejos da nossa ordem, até com a morte se necessário for --- falou Lorde Borgus.
Morte? Orogi não acreditou no que acabara de ouvir. Aquelas pessoas estavam comentando tranquilamente sobre vida e morte a respeito dele. Quando pensou em dizer algo contra toda aquela loucura de filho de dragão e tudo mais, foi interrompido por Farmenis que o encarava seriamente.
---- Você agora, como sempre quis, fará parte da Ordem da Magia e vai servi-la por toda vida --- o rosto de Orogi não expressava mais a euforia de antes, sua expressão era de medo.
---- Mas mestre, eles disseram que eu posso morrer. Eu não quero morrer --- seus olhos marejaram e uma lágrima rolou pelo seu rosto.
---- Embora você não possa entender a grandeza deste momento, eles têm razão. Você morrerá para renascer numa nova vida de serviço à Ordem. Sinta-se orgulhoso disso, pois ajudará a mim e aos demais representantes desta magnífica instituição arcana a expandir seu poder e sua luz para o mundo --- o mestre Farmenis colocou sua mão sobre a testa de Orogi.
---- Por favor mestre, estou com medo --- chorava Orogi
---- Como já disse, não há nada para se preocupar garoto --- disse Farmenis com um sorriso sombrio ---- quando isso terminar serão as pessoas que deverão ter medo de você.
Orogi sentiu um leve choque percorrer seu cérebro e uma sensação irresistível de sonolência o fez mergulhar na escuridão e num terrível pesadelo.
Ao abrir os olhos Orogi se deparou mergulhado numa extrema escuridão. Não sabia onde estava e um cheiro forte invadia suas narinas, um cheiro que lembrava muito o de pêlo de cavalo molhado. Não enxergando nada alem de um palmo a sua frente, Orogi saiu tateando o chão coberto de areia e pedras em busca de uma saída daquele lugar. Foi nesse momento que um terror se instalou em sua mente e o paralisou por completo. Vindo de algum lugar atrás dele sentiu algo se mexer e respirar profundamente. A julgar pelo ruído provocado era algo grande.
Imerso na escuridão, se guiando apenas pela audição e tremendo de medo, Orogi esperou pelo pior. O que estava atrás dele, pensou, com certeza era mau, grande e com dentes afiados e pronto para dar fim a sua vida. Por que o mestre Farmenis o tinha deixado ali para morrer, numa masmorra ou caverna, sem a menor chance de se defender? O que ele tinha feito pra merecer aquilo? Uma enxurrada de pensamentos misturados com sentimentos de tristeza e raiva inundou a mente de Orogi e ele resolveu se virar e encarar seu destino.
O que ele viu o fez cair sentado.
Um par de gigantescos olhos reptilianos que emanavam um profundo brilho vermelho estava olhando diretamente para os seus acima de sua cabeça, a uns três metros de altura. Seja lá o que aquilo era, seus olhos tinham um efeito hipnotizante poderoso e Orogi não conseguia parar de olhar apesar de tomado pelo medo. Tentou se mexer, correr e até parar de olhar, mas não conseguia. Aqueles olhos o atraíam de uma forma que ele não conseguia entender. Uma mistura de medo e excitação tomava a mente de Orogi. Até que uma poderosa voz, que parecia vir de todas as direções, o interrogou.
Quem é você? Por que me perturba no meu refúgio?
---- Me..meu nome é Orogi e ta..também não sei o que estou fazendo aqui --- respondeu ainda tremendo de medo.
Você invadiu o lar de Balgast e seu destino é a morte
Um profundo som de ar sendo sugado, seguido de um brilho imenso iluminou a face da criatura e revelou o que ela era.
Um Dragão? Orogi não acreditava no que estava vendo. Já tinha ouvido falar nestas poderosas e maléficas criaturas que tinham vivido há séculos atrás. Sabia também que os grandes magos as tinham destruído numa antiga guerra. Como estava de frente pra um deles? Será que tinham sobrevivido à guerra?
O grande réptil vermelho, apoiado nas patas traseiras e alcançando quase o teto da caverna que se iluminava a sua volta, cuspiu um terrível hálito flamejante, quente como mil fogueiras juntas. A Orogi só deu tempo de proteger o rosto contra o inevitável.
Passados alguns segundos no meio do inferno ele cessou. Orogi abriu os olhos pensando já estar no reino dos mortos, mas o que viu foram a fúria e a surpresa estampadas na face da criatura. Olhou para seu corpo procurando sinais de queimadura e nada encontrou. Nem o chão estava fustigado pelo fogo, nada tinha acontecido.
Que espécie de magia insana é essa? Eu não esperava que os malditos Urami fossem capazes disso. Responda verme, que tipo de magia reveste sua carcaça inútil?
---- Não sei do que está falando e também não sei como vim parar aqui na sua caverna. Eu lembro que estava com meu mestre, e de repente tudo ficou escuro e acordei aqui. Desculpe se te incomodei grande dragão --- disse Orogi
Não minta pra mim humano. É típico de vocês chorarem e suplicarem pela vida como vermes covardes. Responda! Quem o enviou aqui? Traga-o aqui para eu poder destruí-lo.
---- Seu nome é Farmenis e ele é meu mestre, mas eu não sei onde ele se encontra agora --- respondeu Orogi, ainda estranhamente atraído pelo dragão raivoso ---- Só sei que ele estava me levando para participar de uma espécie de ritual para servir à Ordem. Depois disso não me lembro de mais nada.
Esse desgraçado só pode ser um mago. Somente os magos para utilizarem suas crias em rituais mágicos. Malditos sejam por existirem. Mas seu tempo sobre o mundo está chegando ao fim. Lorde Zagaroth logo irá retornar para nos liderar. O poder dos Dragões irá varrer os humanos com fogo e presas, acabar com seus orgulhosos reinos.
Orogi ouvia o imenso dragão dizer aquelas palavras injuriosas contra os humanos e contra os magos em especial. Por um momento agradeceu por aquelas criaturas bestiais estarem extintas. Ou quase.
---- Sim, ele é um mago. E um mago muito poderoso e respeitado. Ele deve ter me colocado aqui diante de você criatura asquerosa, a pior coisa que já existiu no mundo, para que eu enfrente meus medos e me torne um mago também. E para isso me revestiu com magia para que eu não pudesse ser tocado por você --- Orogi se levantou diante da criatura e suas palavras saíram com uma súbita coragem. Começou a raciocinar a respeito daquela situação. O mestre Farmenis não o tinha abandonado. Tudo fazia parte do ritual.
Nenhuma espécie de ritual mágico dos humanos pode torná-lo imune ao fogo dos dragões. Você é um maldito fantasma enviado pelos Urami para me atormentar. Vá embora!
Dizendo isso Balgast se preparou para disparar mais um hálito de fogo.
---- Seu fogo não me atinge grande dragão. O Ritual de Junção realizado pelo meu mestre me protege ---Orogi não sentia mais medo. Ao ouvir as palavras do pequeno garoto, a fera freou seu jato flamejante. Seus olhos se arregalaram, tomados de surpresa.
O que você disse? Não! Não é possível! Não pode ser verdade.
Balgast olhava a sua volta para todos os cantos da caverna. Parecia procurar uma saída. Voltou a olhar para Orogi.
Eu sou o poderoso Balgast e ordeno que me liberte humano.
Neste momento o chão da caverna começou a tremer com força. Cinco grandes grilhões de ferro, parecidos com poderosas algemas, surgiram embaixo da criatura e a prenderam pelas patas e calda. O dragão estava imobilizado, restando apenas seu longo pescoço e cabeça livres. Num ato desesperado Balgast investiu contra Orogi na tentativa de despedaçá-lo em suas presas.
--- NÃO! --- gritou Orogi.
A imensa boca da fera ensandecida não conseguiu atingir o garoto. Uma espécie de barreira invisível o protegia enquanto o dragão se debatia tentando morde-lo.
Nesse momento, com a cabeça de Balgast tão próxima, Orogi sentiu plena confiança para tocá-la, numa tentativa de humilhar a criatura e mostrá-la que estava tudo terminado. Quando tocou a cabeça do dragão, a mente de Orogi foi invadida por uma enxurrada de fortes imagens mentais. Seus olhos reviraram e fúria tomou conta do seu coração enquanto seu corpo tremia convulsivamente como que atingido por um raio.
As imagens que invadiram a mente de Orogi eram de sangue e horror. Uma grande guerra era travada entre humanos e dragões. Como espectador Orogi via hordas de guerreiros e magos combatendo legiões de dragões terrestres e alados. Uma onda de fogo, água, raio, terra, gelo e outras forças da natureza varriam os campos de batalha, consumindo homens, dragões e outras criaturas.
Em duas montanhas, que faziam parte dos extremos de um imenso vale, duas poderosas figuras comandavam seus exércitos. De um lado um poderoso rei humano e do outro um tenebroso rei-dragão. E foi esse grande e poderoso dragão negro que percebeu a aproximação de Orogi e o encarou com seus olhos investidos de imenso poder.
Chegou a hora de reparar a tirania dos Urami. Faça o que deve ser feito. ME ENCONTRE NOS SETE CAMINHOS! LIBERTE-ME!
Neste momento uma força puxa Orogi para longe do campo de batalha e do olhar frio daquele dragão. A escuridão toma conta mais uma vez de sua visão.
Ao abrir os olhos Orogi se depara com o mestre Farmenis a sua frente, em pé diante da cama na qual estava. Os dois estavam num belo e aconchegante quarto.
---- Você foi muito bem. Acabou de passar pela Junção. Bem vindo à Ordem da Magia, sangue de dragão.