Sangue de Dragão - Cap. 01
CAPÍTULO 01 – Sangue de Dragão?
Um mau tempo paira há três dias sobre a cidade de Ardas, um entreposto comercial localizado a leste do Reino do Norte. Mesmo diante de tanta chuva, as atividades comerciais não deixam de serem realizadas na cidade. Protegidas com capuzes ou roupas mais acolchoadas, as pessoas vendem seus produtos, circulam com carroças e realizam compras nos diversos estabelecimentos do lugar. Enfim, dão à cidade a sua fama de ser um local que nunca descansa. Seus habitantes parecem estar sempre apressados, correndo pra lá e pra cá em suas ruas estreitas e enlameadas.
Em meio ao caos provocado pela circulação de pessoas e animais, um pequeno garoto corre contra o tempo, pois está atrasado ao encontro do seu mestre. Segurando embaixo do braço uma bolsa de couro, tenta ao máximo protegê-la da chuva, que não parava de cair. O nome desse garoto é Orogi, e seu destino é a Ferradura de Prata, uma taverna nas proximidades.
Ao chegar à taverna, Orogi procura por seu mestre em meio aos vários clientes do lugar, que bebem e conversam sem parar enquanto garçonetes passam por entre as mesas carregando bandejas com comida e grandes copos de bebida. Num canto do salão, sentado à mesa e afastado das demais pessoas, um homem de barba e cabelos pretos, vestindo um belo manto branco com detalhes dourados, olhava diretamente para a entrada da taverna. Orogi o identificou, era o mestre Farmenis. Afinal, não é difícil se destacar entre as pessoas quando se é um Mago.
---- Você está atrasado moleque! Trouxe o que eu pedi?
---- Sim mestre, está aqui – Orogi tirou um livro de capa dura da bolsa. Apesar do aspecto envelhecido, era um belo livro. Do tipo que só os magos carregam.
Farmenis retirou um cachimbo de um bolso do manto e o acendeu enquanto começava a ler o livro com atenção. Orogi o observava todo molhado, ofegante e tremendo de frio. Já era meio de tarde e ainda não tinha comido nada desde as primeiras horas da manhã, quando foi acordado por um mensageiro dizendo que deveria buscar um livro para o mestre em sua biblioteca particular, um livro intitulado “Ritual de Junção”.
O frio piorou e Orogi já começava a bater os dentes. Farmenis parou de ler, claramente incomodado com a tremedeira do garoto. Mexeu novamente nos bolsos e tirou uma pequena chave, jogando-a na mesa de forma brusca.
---- O meu quarto é o 16. Suba e vá trocar de roupa imediatamente, pois não quero que pegue um resfriado e me dê trabalho --- disse o mago. Orogi ficou surpreso, já que o mestre Farmenis tinha trazido mudas de roupa para ele. Isso só podia dizer uma coisa, o mestre estava almejando viajar.
---- Nós vamos viajar mestre? --- perguntou Orogi, querendo confirmar seus pensamentos.
---- Vamos sim, para Taram, mas não lhe interessa saber por que. E eu já te mandei subir para o quarto, ou prefere que eu te carregue pela orelha moleque? --- ouvindo a ameaça do mestre, Orogi passou a mão na chave sobre a mesa e saiu correndo subindo as escadas em direção ao segundo andar da taverna.
Orogi estava acostumado com a impaciência e o mau humor diário do mestre Farmenis. Apesar das palavras duras que ouvia muitas vezes, acreditava que no fundo era apenas um jeito estranho do mestre mostrar que gostava da companhia dele, afinal era um homem muito ocupado com os assuntos dos magos. Mesmo assim, Orogi sentia pelo mestre algo parecido com o que um filho poderia sentir por um pai e era muito grato pelo fato de ter sido retirado, ainda bebê, de um orfanato da cidade e ter lhe oferecido um lar. Diante dessa realidade, o mau humor do mestre é plenamente aceitável em comparação com a dura vida nas ruas, destino certo de muitos garotos que vivem em orfanatos.
No dia seguinte, bem cedo os viajantes já estavam prontos para partir. Cavalos selados os aguardavam na entrada da taverna sob a vigilância de um cocheiro. Vendo a forma como as coisas eram facilmente resolvidas quando o mestre Farmenis estava por perto dava a Orogi uma vontade de seguir a carreira de mago. Eles tinham dinheiro, posses e influência. Mas sabia que para se tornar um mago eram necessários muitos anos de estudo e dedicação. E o mestre já havia falado que ele não tinha a mínima chance de se tornar um mago, pois não tinha a capacidade necessária. A Orogi só restava a admiração.
A viagem para Taram duraria quatro dias incluindo as paradas para pernoite. Os viajantes estavam levando comida e água suficiente em seus cavalos e esperavam uma viagem tranqüila.
Nos primeiros dois dias enfrentaram planícies e florestas conhecidas, já no início do terceiro dia alcançaram a fabulosa Estrada Real, estendendo-se por vários quilômetros e formada por incontáveis blocos de pedra perfeitamente alinhados, e a partir daí os dois dias finais da viagem foram bem tranqüilos, pois a estrada real é bem vigiada por soldado em vários postos de vigilância espalhados por toda sua extensão. Orogi e Farmenis chegaram de noite à capital real, cansados, mas inteiros.
O pequeno garoto e seu mestre se hospedaram numa taverna elegante chamada Ponto Norte. Farmenis avisou que repousariam e no dia seguinte bem cedo seguiriam para a sede da Ordem da Magia, localizada na parte central da cidade.
A notícia foi uma grande surpresa para Orogi, já que o mestre Farmenis não tinha revelado o verdadeiro destino da viagem. O pequeno ajudante de mago mal dormiu pensando que no dia seguinte visitaria a famosa e imponente Ordem da Magia. Mas duas perguntas não saiam da sua mente: por que será que o mestre estava tão interessado em levá-lo para conhecer a Ordem? Será que o mestre tinha mudado de idéia em relação a ele e iria iniciá-lo nas artes arcanas?
A noite realmente foi inquieta para Orogi. Alem da ansiedade para a visita do dia seguinte, um terrível pesadelo o atormentou. Neste sonho ruim, ele corria desesperadamente por uma floresta escura com árvores retorcidas que exalavam um cheiro nauseabundo. Tinha que impedir algo terrível, embora não soubesse exatamente o que era, por isso corria com todas as suas forças. Num determinado momento chegou a uma clareira na mata, onde sete pessoas estavam em frente a uma caverna sob uma imensa montanha. Orogi nunca tinha visto aquelas pessoas, mas a julgar pelas roupas que todos usavam, longos mantos negros até os tornozelos com um grande símbolo vermelho nas costas, parecia algum tipo de grupo ou seita de magos. O que se encontrava no meio deles deu três passos em direção à boca da caverna e estendeu o braço. Orogi sentia que algo muito ruim estava prestes a acontecer, e quando tentou impedir, as raízes do chão ganharam vida e o aprisionaram. Só restou a Orogi olhar a tudo aterrorizado. Um forte ruído saiu de dentro da caverna acompanhado de uma estrondosa voz.
“LIBERTE-ME”, dizia a poderosa voz. Neste momento Orogi é despertado do seu pesadelo.
Ao amanhecer, Orogi e o mago Farmenis partiram em direção à área central da cidade, onde fica a sede da Ordem da Magia. Orogi aproveitou a pequena viagem, de não mais de quarenta minutos de carruagem, para conhecer a magnífica capital do Reio do Norte.
O pequeno viajante ficou maravilhado com a arquitetura da cidade, com o movimento intenso de pessoas, tudo neste lugar exalava grandeza, bem diferente de Ardas que, apesar de ser uma cidade movimentada, não se comparava ao que ele estava vendo em Taram. Orogi fez toda a travessia, desde a taverna Ponto Norte até a Ordem, de olhos arregalados e boca aberta. Essa expressão se intensificou quando finalmente chegou às portas da ordem arcana.
A Ordem da Magia é a instituição mais importante, ao lado do Palácio Imperial, de todo o Reino. Muitos acreditam ser a maior organização arcana do mundo, já que nos outros quatro grandes reinos também existem suas instituições de magia. Sua estrutura é composta de uma imensa área cercada por uma muralha de blocos de mármore branco, com um grande portão na face norte, cobrindo um imenso quarteirão no centro de Taram, a menos de quinhentos metros, em linha reta, do Palácio Imperial, que fica ao sul.
No centro desta área se encontra o impressionante conjunto de cinco torres, sendo que a maior é uma grande torre de mármore branco com várias janelas, de onde podia se ver, vez ou outra, algumas cabeças aparecendo e observando o que acontecia do lado de fora.
Sempre ao lado do mestre Farmenis, Orogi adentrou os portões da ordem e se deparou com muitas pessoas caminhando e conversando por uma ampla área com jardins e vários pequenos caminhos de pedra. As grandes torres se avolumavam a sua frente como verdadeiras montanhas, e sua ansiedade aumentava. O que o esperava lá dentro? pensava. As expressões quase sempre sisudas de Farmenis só pioravam a situação, já que o mestre não falara nada durante a viagem, apesar dos inúmeros cumprimentos que recebeu ao entrar nos espaços da ordem, cujas respostas eram sempre sutis.
A dupla entrou pela porta principal da torre central e subiu por um grande lance de escadas em espiral que dava acesso aos vários níveis da torre. Farmenis parou no quinto nível e entrou por um corredor, repleto de grandes quadros de homens e mulheres com olhares penetrantes e túnicas majestosas, que terminava numa grande porta com belos entalhes. Orogi não mais suportou o silencio que o mestre manteve durante todo o dia e resolveu quebrá-lo.
---- Para onde estamos indo mestre?
---- O meu mestre precisa saber da nossa vinda. Estamos indo vê-lo.
Orogi aproveitou a oportunidade para tirar suas dúvidas a respeito do que o vinha incomodando há muito tempo.
---- Mestre, irei me tornar um mago? É pra isso que o senhor decidiu vir para a ordem? --- Orogi não conseguia disfarçar a ansiedade e certa dose de euforia. Mas diante de suas perguntas, o mestre Farmenis apenas deu uma risada, a primeira em muitos dias.
---- Se eu fosse você acabaria logo com essas ilusões tolas --- Farmenis respondeu secamente ---- Já te disse que não tem a mínima possibilidade de se tornar um de nós. Não porque não possa, pois ainda é jovem, mas porque tenho outros planos pra você.
---- Então quer dizer que tenho capacidades de ser um mago? --- Orogi lembrou das muitas vezes que ouviu do mestre que isso não seria possível ---- O senhor mesmo disse que não teria como me tornar um mago, pois não tinha as capacidades necessárias.
---- Neste mundo poucos são os escolhidos para a importante missão de ser um mago. Exige grandes responsabilidades e nem todos são capazes de assumi-las. Além do mais, Orogi, pessoas como você nascem com o propósito de serem ferramentas, e não as mãos que as seguram --- Farmenis estava parado diante do garoto.
---- Eu sou uma ferramenta para o senhor então? --- questionou Orogi.
---- Sim. E logo será utilizada para um bem maior. Com o tempo entenderá. Agora não tenho mais tempo para suas perguntas tolas. Quero lembrar-lhe de ficar calado de agora em diante, ouviu? --- ordenou Farmenis. Logo em seguida deu duas batidas na grande porta a sua frente, que se abriu.
Um jovem de pele clara, com cabelos e olhos castanhos recepcionou Farmenis.
---- Há quanto tempo mestre Farmenis, seja bem vindo, Lorde Burgos o espera --- disse o jovem mago acompanhando os dois por um salão repleto de obras de arte.
---- Obrigado Tarlius. Como andam seus treinamentos?
---- Vão bem, mestre. Ao contrário do que havia dito ao senhor antes de partir em viagem, eu mudei de idéia e entrei para a Centuria --- respondeu o jovem.
---- Hum....Centuria? Realmente uma mudança brusca para alguém como você. Nunca imaginei você como um guerreiro. Se seguisse a antiga proposta, com certeza se tornaria um excelente Pesquisador.
---- Hoje quero uma posição mais efetiva na ordem. Principalmente agora depois das notícias que recebemos sobre Menizaia --- Tarlius abriu uma porta que dava para uma pequena sala. Lá dentro um senhor de cabelos brancos terminava de encher dois copos com vinho. Ele vestia um imponente manto vermelho com várias figuras desenhadas com fios dourados e pretos. Ao perceber a entrada dos dois magos acompanhados do pequeno Orogi, virou-se segurando os copos.
---- Como vai, meu jovem Farmenis? Que notícias trás de Ardas? --- o velho estendeu a mão oferecendo um copo.
---- Trago boas notícias Lorde Borgus --- Farmenis pegou o copo, curvando-se em reverência. Ao ver que Orogi não tinha feito o mesmo, deu um tapa na cabeça dele. Orogi percebeu dolorosamente que também deveria reverenciar o velho mago a sua frente, e o fez. Lorde Borgus passou a encarar Orogi.
---- Então esse é o seu novo escolhido? --- perguntou Lorde Borgus. Orogi o olhava com atenção. Que história era essa de escolhido? Escolhido para quê?
---- Sim, Lorde Borgus --- respondeu Farmenis ---- esse passou nos testes preliminares. Acredito que ocorrerá tudo bem no restante do processo.
Lorde Borgus mais uma vez olhou para o pequeno Orogi e levantou o copo para Farmenis.
---- Então vamos brindar ao mais novo Sangue de Dragão da Ordem da Magia.