Quarto Branco
Ele não se lembrava de nada e não fazia a mínima idéia do que tinha acontecido. Parecia que havia atravessado um tipo de porta sem porta e quando se deu conta estava naquele estranho quarto.
O lugar era pequeno, um pouco maior que o quarto que ele tinha quando era criança e morava com os pais. A porta por onde entrara ficava rente à parede esquerda do quarto. À sua direita ele podia ver uma pequena cozinha com fogão, pia e geladeira. Um pouco mais à frente, separada da cozinha por um muro divisório de um metro e meio, estava uma espécie de sala com sofá e rede. Diretamente à sua frente ele podia ver outra porta e no canto da parede rente onde essa porta ficava havia um homem sentando em um banco com um sorriso divertido no rosto a observá-lo. Esse homem parecia estar apreciando aquela situação de incompreensão.
Ignorou o homem sorridente por hora, de alguma forma ele não o incomodava. Prestando mais atenção no lugar reparou que, com exceção da parede divisória que era branca, todas as paredes e o teto eram azuis, num tom azul-marinho. Sempre quisera ter um quarto todo azul. Não conteve um leve sorriso. O chão de todo o quarto era forrado com um carpete branco e felpudo que parecia sido recém colocado. Seu primeiro pensamento em relação a isso é que ele devia ser difícil de limpar.
Tirou seus chinelos - e só agora havia descoberto que estava de chinelos - para poder sentir o carpete com os pés e não sujá-los. Entrou na cozinha para vê-la melhor e tudo nela também parecia novo e recém arrumado. Havia uma pequena mesa dobrável de madeira para quatro pessoas (daquelas que se encontra em bares), mas a mesa estava encostada contra a parede divisória e havia uma cadeira a menos, o que a tornava própria apenas para duas pessoas. Um pouco mais a frente da mesa, junto da parede divisória e também da outra parede da cozinha, estava o fogão e ao seu lado uma pia simples, e ambos ocupavam todo o fim daquela área. Já do lado contrário da parede divisória estavam a geladeira e, ao lado dela, um armário vertical de três portas.
Curioso como todo e qualquer ser humano, e já se sentindo mais à vontade, resolveu ver o que tinha na geladeira e a abriu. Surpreendeu-se ao notar que ali tinha os tipos de comida que mais amava, de frutas à comida caseira pronta. Uvas, maçã verde, feijão branco, carne moída e muitas outras comidas de seu gosto. Mas algo lhe chamou mais a atenção que tudo: um pote fechado com alguma coisa branca bem familiar dentro... Pegou e abriu-o vendo vários pedaços de cocada caseira, exatamente como sua irmã gostava de fazer e era o doce preferido dele. Sorriu já não achando estranha uma coincidência como aquela e pegou um pedaço para experimentar, levou-o à boca e descobriu que o sabor era também idêntico.
- Eu morri...?; ele se perguntara, mas a interrogava tinha ares de confirmação, não estava se questionando do fato, apenas perguntando-se com certo espanto algo que ele de alguma forma tinha certeza.
- Sim; respondera o homem sorridente que repentinamente apareceu sentado numa das cadeiras da pequena mesa. Não havia percebido ele se aproximar nem sentira sua presença, mas parecia que ele estava sentado ali a bastante tempo.
- ...então estou no Céu?; dessa vez sua pergunta soava mais como dúvida. Por mais que todos os sinais indicassem de que era onde ele estava (ou pelo menos aquilo era algo bem parecido do que ele pensava ser um “Céu”), sentia como se aquilo não o fosse.
- A meio caminho de lá, meu amigo. Você não está aqui para um descanso eterno, mas para um julgamento de tempo indefinido.
O homem sorridente tinha grandes cabelos negros longos e olhos azuis escuros, era extremamente branco e passava certa tranqüilidade que parecia existir nele em grande abundancia. “Você é um anjo?”; não hesitou ao perguntar, estava claro que o homem sorridente não era uma pessoa comum. Entretanto, tudo que o homem sorridente disse foi: “Quase isso...” o que apenas aumentou mais sua curiosidade, mas deixou para fazer mais perguntas depois.
Começava a entender onde estava. Aquele quarto não era um pedaço do Céu nem do Inferno, mas um local totalmente neutro, um ambiente perfeito onde um julgamento poderia acontecer sem que as decisões tomadas fossem afetadas por oscilações sentimentais. Um lugar imparcial.
- Você é meu juiz?; perguntara de súbito para o homem sorridente.
- O que te faz pensar que sou seu juiz?
- Todo julgamento precisa de um juiz... E não vejo mais ninguém aqui.
- Não sou seu juiz, mas serei o juiz do seu julgamento. Não se preocupe, conversei com seu juiz antes de vir te encontrar e serei tão imparcial quanto ele seria. Talvez mais.
- Se você não é meu juiz, por que veio no lugar dele? Afinal, quem é você?; a conversa ficava cada vez mais confusa a cada segundo, mesmo assim tentava não perder a calma... Ou a sanidade. Começava a se perguntar se aquele homem de sorriso constante no rosto não poderia ser um demônio ou algo totalmente diferente do que ele imaginara.
- Nomes. Vim no lugar do seu anjo por que nossos nomes são um pouco parecidos. Eu me chamo Caim e você Judas. Carregamos os nomes de dois pecadores bíblicos. Não é divertido?
“Divertido?”, ele pensara. Estranho, curioso, intrigante eram palavras que se encaixavam para descrever aquela situação, mas “divertido” era a última palavra que ele usaria. “Talvez ele seja maluco... Será que existem anjos loucos?”, não conseguia tirar da cabeça que aquele homem era um anjo, por mais estranho que ele fosse. Esboçou um sorriso em meio aos pensamentos sem perceber, também sem saber por que. Talvez achasse graça de ter conhecido um possível “anjo louco” apenas por seu pai ter sido o louco de ter colocado o nome de Judas nele. Graças à sua mãe ele também não havia ganhado o Iscariotes de brinde.
Resolveu ignorar aquilo tudo e ir direto ao assunto: - Então... Quando começa o julgamento?
- Já começou... Eu sou apenas o juiz, o juiz dá a palavra final, a sentença. Você é o advogado de acusação, de defesa o júri e o acusado. Você deve pensar e repensar sobre as situações que acha mais significativas na sua vida e na vida de outros. Deve descobrir se seus fins justificaram seus meios e se sua balança penderá para “culpado” ou “inocente”.
“Assim tão simples?”; Judas pensara. Praticamente possuía seu destino em suas mãos, nem precisava levar esse pseudo-julgamento tão a sério, mas foi quando já achava que seu destino estava traçado que as palavras do homem sorridente novamente incomodaram seus ouvidos: - Tome cuidado, eu também sou aquele que vai definir se seu julgamento foi sincero ou não. Se seu julgamento não for sincero, qualquer de seus atos bondosos em vida serão irrelevantes agora.
“Agora complicou...”; Judas repensara. E não teve que pensar em mais nada depois disso, aquele pequeno quarto que parecia um paraíso a princípio agora parecia uma prisão.
- Aposto como também não posso ficar enrolando aqui por muito tempo sem tomar uma decisão, certo? - a pergunta era retórica, Judas já sabia a resposta - Então, como eu faço para ter um julgamento totalmente sincero se existem coisas boas e ruins da minha vida que agora eu nem me lembro mais?
Caim sorrira com a pergunta: - Do outro lado desse quarto, onde fica o sofá, tem uma pequena mesa contra a parede, em cima dessa mesa tem um livro, lá está toda a informação sobre sua vida, até mesmo coisas que você nunca conseguiu entender direito, cortesia da casa. Vá até lá dar uma olhada e aproveite por que nem sempre esse recurso existiu.
Mais intrigado com o livro do que incomodado com o sorriso e atitudes do outro, ele foi até o outro lado do quarto. Mal saiu da pequena cozinha e ao chegar do outro lado viu que Caim já estava deitado no sofá. Parou por um segundo e olhou de novo para a cozinha por cima do muro e ele ainda parecia estar lá, tentou se afastar a ponto de ficar num ângulo onde pudesse ver os “dois Caim” para tentar entender o que era aquilo, mas o paradoxo permanecia. Quando olhava para um o outro parecia não existir e quando tentava ver ambos ao mesmo tempo os dois estavam lá. Ignorou-os e foi em direção ao livro de capa verde que estava em cima da mesa, também ignorando o sorriso (que já se tornava incômodo) no rosto daquele que estava no sofá.
O livro possuía capa verde dura e não parecia ter mais de duzentas páginas. A capa não possuía título, apenas uma espécie de desenho do seu rosto, na verdade parecia mais um esboço rascunhado, na verdade parecia mais uma caricatura medonha. Sabia que seus olhos eram um tanto esbugalhados, mas não tanto a ponto de parecerem querer pular das órbitas. Sabia que possuía bochechas secas por ser muito magro, mas não eram tão secas quanto as de um desnutrido. Sabia que tinha o péssimo hábito de ficar despenteado e que seu cabelo era um tanto ruim, mas não a ponto de parecer uma peruca de espantalho. Em suma, aquele não era ele, mas de alguma forma ele se familiarizava com aquele seu “outro eu” distorcido.
Deu uma breve folheada no livro e percebeu que estava realmente tudo ali, do primeiro passo às últimas palavras, do primeiro beijo ao último suspiro, do primeiro amor à última cantada. Tudo, sem exceções. Além disso, ao ser folheado o livro parecia possuir mais conteúdo do que podia comportar. Quando estava prestes a folhear algumas páginas que explicavam muitos dos inexplicáveis “por quês” de sua vida (justo na parte que uma grande amiga passou a tratá-lo com frieza e ele nunca soube com certeza se era por ela sentir algo além de amizade por ele) fechou o livro e devolveu-o à mesa.
Não entendia exatamente a causa de sua ação, sabia apenas que existia uma grande curiosidade sobre sua vida que ele não queria saciar. O fato é que ele tinha um grande gosto pela incompreensão e mistério. Gostava de finais abertos, sem verdadeiro fim. Gostava das perguntas sem respostas e sabia que quando uma resposta era encontrada para uma dessas perguntas ela apenas abria caminho para novas perguntas sem respostas. Não sabia por que gostava dessas coisas, mas isso apenas tornava seu gosto pelo incompreensível maior ainda.
Quando terminou seus pensamentos olhou para a poltrona e viu Caim deitado nela que mesmo de olhos fechados parecia estar olhando para algo no teto. Também estava com seu braço direito erguido e movendo o indicador como se tivesse escrevendo ou desenhando a esmo em pleno ar. Não compreendeu a situação e apenas a ignorou. Olhou para a porta que ficava ali perto do sofá, não era a porta por onde viera e não fazia idéia de para onde ela levava. Céu? Inferno? Purgatório? De volta para casa? Queria ele poder voltar para casa, fez uma promessa para alguém de que sempre a esperaria e não pretendia quebrar a promessa. Olhou para a porta por onde viera, talvez pudesse voltar para lá de alguma forma. Foi em direção a ela de imediato e com uma determinação enorme colocou a mão na maçaneta, pronto para abri-la.
- Eu não faria isso se fosse você. - a voz de Caim o interrompeu, Judas olhou para trás e viu ele com seu sorriso, recostado na parede - Poucos são aqueles que agüentam viver como uma alma solitária. Pense nas conseqüências, você irá revisitar lugares onde antes esteve, mas não poderá interagir neles. Verá familiares e entes queridos ainda vivos em momentos terríveis, mas não poderá fazer nada para ajudá-los ou consolá-los. Sentirá fome, sede e desejo, mas não conseguirá saciar nenhuma dessas necessidades. Confie em mim, não vá, é doloroso demais...
- Não existem outros que tomaram a mesma decisão que eu?
- Existem, mas são poucos. Alguns preferem o Inferno que isso. Na verdade quase todos que vivem hoje no Inferno preferem continuar lá que ficar vagando pelo mundo como um perdido. Mesmo que você encontre com outra alma solitária, nem sempre ela poderá te ver ou você a ela. Peço de novo para que não siga esse caminho...
- É uma pena, mas acho que escolhi isso antes mesmo de morrer. Eu e uma pessoa fizemos uma promessa de ficarmos juntos mesmo depois de mortos, não quero me desencontrar com ela. Sei que vou para o Céu, mas sei também que ela vai para o Inferno, a alternativa que resta está atrás dessa porta.
As palavras dele eram firmes e seu olhar demonstrava sua decisão, mas as palavras que se saíram da boca de Caim tinham ares de profecia: - E se ela não escolher o mesmo caminho que você?
- Esse é um risco que vou ter que correr... - e abriu a porta, mas não parecia haver nada do outro lado além de uma escuridão sem fim. Antes de atravessar a porta ele olhou uma última vez para Caim e perguntou: - Afinal que tipo de anjo você é?
- O anjo da morte. - e Caim sorriu, mas dessa vez seu sorriso demonstrava apenas amargura.
Judas retribuiu o sorriso com a mesma amargura e lhe estendeu a mão: - Então até algum dia Senhor Morte.
Ambos trocaram um último olhar e Judas atravessou a porta.