Pecados na Balança
As tais trombetas de Jericó tocaram um heavy metal no meu ouvido.
Virei pro lado, resmungando:
– Só mais cinco minutinhos... Tá escuro ainda!
Uma voz de trovão anunciou:
– E nunca mais vai clarear! Hoje é o dia do Juízo Final!
– Ufa! Ainda bem! Pensei que ia ter que trabalhar! – e voltei a dormir.
– ACORDA! – a voz gritou. – Você já dormiu três mil anos!
Sentei. Três mil anos?? A última coisa de que me lembro bem foi dizer: “só mais um super-mega-híper-sundae-monstro-com-cobertura-extra não vai fazer mal ao meu diabetes”.
– Quer dizer que eu morri? – perguntei.
– Aqui, não usamos esta expressão. Dizemos que você “dormiu o sono eterno”.
– Se é eterno, pra que diabos você está me acordando, pô? – voltei a deitar.
– ACORDA! – novamente, a voz irritante.
Pulei da cama contrariada. Não sei pra quê a pressa. Se a justiça celestial tiver a agilidade da justiça brasileira, esse dia do Juízo vai levar mais de século... Isso, se, como acreditam os espíritas, as almas forem recicláveis... Senão, bota século nisso.
Acendi a luz. Foi quando vi o querubim, paradinho ali, me olhando. Não resisti:
– Coisinha mais lindinha! – falei, apertando a bochechinha rosadinha dele.
– Ó a esculhambação! – ele respondeu, furioso, um vozeirão de derrubar parede.
Levei um susto. Então o bebê Jonhson de auréola e asinhas era o dono da voz?
– Vê se te avia que o dia vai ser longo – disse ele, antes de voar pela janela.
Fiquei ali, abestalhada olhando enquanto ele se afastava. Calado, ele é lindinho demais... Olha essa bundinh...
– TE AVIA! – um novo berro dele me acordou de vez.
Fui procurar o que vestir no armário e só achei uma bata branca.
Vesti aquela coisa e fui olhar no espelho. Depois de dormir 3000 anos, preferia uma burca. Minha cara estava toda inchada, umas olheiras enormes. Pensei em procurar um kit de maquiagem... Mas, “peraí”! Vaidade não é pecado? É! Mas, pecado maior é ir pra rua com essa cara... Joguei pelo menos uma água gelada nos olhos, pra ver se a pele alisava um pouco.
Saí. “Pelamordedeus”, “oquequiéraquilo”?? Parecia saldão dos quebrados das Casas Bahia! Nunca vi tanta gente junta na minha vida!
Dei um jeito de furar a fila, mas, ainda assim, tinha era chão pra eu andar...
Para passar o tempo, resolvi fazer um balanço dos meus pecadinhos. Comecei pelos capitais. As aulas de catecismo finalmente teriam alguma utilidade na minha vida, isto é, na minha morte. Foi fácil lembrar: além da vaidade, tem gula, preguiça, inveja, ira, avareza e luxúria.
Ih! Eu tô é lascada! Morri por gula. Dormi três milênios e acordei cansada. Morro de inveja de quem consegue passar pela vida sem ser mesquinho ou zangado. Já a luxúria, nem sei porque é pecado. Até o Boston Medical Group dizia: “Sexo é vida”! Tudo bem que às vezes eu exagerava... Aquela noite com os stripers, por exemplo... Ui!
Decidi conferir os mandamentos, achei que me sairia melhor com eles...
Amar a Deus sobre todas as coisas, eu amo. Pelo menos, a parte da imagem e semelhança dEle que há em mim.
Não uso o nome de Deus em vão. Ele é testemunha!
Adoro os sábados. Muito mais do que as segundas-feiras, por exemplo...
Sempre honrei meus pais. Inclusive, o asilo para onde mandei a velha era ótimo!
Não matarás. Fácil! Pra quem não tem TPM, né?
Pulei pro próximo... Adultério... Será que o Serginho conta? Mas, o Serginho é ex! Ex tem certas prerrogativas... E, se pensar bem, ele foi corno primeiro! Alardeia-se tanto a justiça social, digamos que foi só uma distribuição mais igualitária de chifres.
Uma coisa é certa: nunca desejei a mulher do próximo! Ah! Não, mesmo! Meu negócio é homem. O marido da Cornélia, por exemplo... Que homem, meu Deus! O que é que eu não fazia com um homem daqueles?...
Outra coisa certa: eu não cobiçava as coisas alheias, nem jamais fui capaz de roubar. Verdade!! A regra é clara: coi-sas a-lhei-as!!! Quando corrupta, eu só lesei o erário! É coisa pública, é de todos. O que é de todos, não é de ninguém. Não é roubo, ué!!!
Vendo assim, não estou tão mal. Tem gente muito pior. Tenho dossiês que provam, com reportagens completas da Caras e da Contigo. Fora as estórias cabulosas que recebia – e repassava – por e-mail.
Tsc, tsc, tsc! A quem eu penso que engano? Deus é onisciente, onipresente... E, pelos meus cálculos, não faltou um pecadinho sequer. Pratiquei todos, com fervor. A esta altura, minha suíte nas profundezas já deve estar reservada.
Triste e contrita segui o resto do tempo. Se arrependimento matasse... não ia fazer a menor diferença: já bati a cachuleta mesmo!
Finalmente, chegou a minha vez. Cabisbaixa, entrei na sala. O Todo Poderoso em pessoa me aguardava. Sorriu:
– Então, vejamos sua história... – disse Ele, abrindo uma gaveta.
Folheou a papelada em seu interior... Abriu outra. Conferiu uns papéis que havia sobre a mesa.
– Quem mexeu nos meus arquivos? – gritou.
– Anh?! – perguntou um pobre diabo, levantando a cabeça das pilhas de papel que o cercavam por todos os lados.
– Quem mexeu nos meus... Ah! Talvez você esteja neste aqui! – lembrou Ele, dirigindo-se para um arquivo horroroso, com uns “choros e rangeres de dentes” desenhados na lateral.
Arrepiei. Eu já sabia o resultado desta busca... Minha sina estava traçada.
Depois de procurar um pouco ele voltou, desanimado. Vencido, me despachou pro céu.
E essa foi a minha sorte: Deus é mesmo brasileiro!!
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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 5.
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