Missão de Guerra - Parte 01

Missão de Guerra

- Parte 01 -

A Chegada

Alto Mar, 1569, Oceano Atlântico. Estava amanhecendo devagar. O sol mostrava-se ainda muito tímido e fraco. A névoa cobria o horizonte com perfeição. Um navio francês, fortemente artilhado, atravessava o mar em direção às terras selvagens da América, especificamente, as terras denominadas, pelos portugueses, com o nome de Brasil.

O comandante da nave, capitão Jacques Luque D’Arc, comerciante famoso em seu país, começava a fazer préstimos militares à rainha-mãe, desde que fosse devidamente recompensado e patrocinado. Era um homem experimentado em navegação, porém pouco conhecedor no que tangia a batalhas marítimas, o que explicava a presença de um distinto cavalheiro, proveniente da Guarda de Elite do seu soberano francês. Seu nome era simples: Depardieu, um dos soldados de maior destaque de seu grupo. Mas Depardieu mostrava-se inconformado com a missão, observando os demais colegas, se debatia em pensamentos.

“Toda essa missão parece um tremendo desperdício. Tantos treinos e batalhas para ser retirado da tropa e encontrar a Rainha-mãe acompanhada de seus estúpidos conselheiros estratégicos de guerra. Deram-me a obrigação de liderar essa missão, assim como as informações de um povo rebelde francês, exilados em terras selvagens, que estava disposto a dominar um grande pedaço de território em uma das maiores colônias portuguesas e transformá-la em um Estado à parte das demais”.

– Que desperdício...

– Disse alguma coisa? – era o comandante da nave ao seu lado, observando o horizonte estranhamente enevoado, névoas não eram comuns naquelas águas.

– Não. – respondeu Depardieu. – Nada...

“É claro que a rainha deseja uma colônia nessas terras de ninguém, deseja explorá-la, mas acredita (e com razão) que os rebeldes franceses não se curvarão à coroa em terreno português. Mas a situação não é assim tão simples. Há relatos de que estes rebeldes, agora criminosos de guerra, são extremamente cruéis e perigosos, violentam mulheres e crianças das colônias portuguesas por puro prazer, e o fazem em nome do rei da França: Dom Carlos (o que vem trazendo sérios problemas). Os povoados nativos e fazendas portuguesas próximas foram dizimados por completo e os fortes de guerra foram destruídos. Soube que a nação portuguesa dispôs um de seus melhores homens para resolver este problema, porém foram aniquilados. No comando, estava o governador Dom Paulo Barros de Eurico, governante da maior cidade da Europa. Só não entendo o que a rainha encontrou de interessante nesses rebeldes. Apesar da força que possuem, são desordeiros e indesejáveis”.

– Que tipo de governante deseja aliar-se a essa corja?

– Senhor?... – era Jacques.

“Só posso entender que ela deseja mais poder, nem que, para isso, tenha que ‘rolar na lama’ com os seus súditos e rebeldes. Uma poderosa colônia francesa em terras selvagens, por menos mérito que possua, ela considera um ‘feito’. Sobrou justo para que eu fizesse as suas vontades, dominasse os rebeldes e os ajudassem a resistir à investida portuguesa (como se precisassem). Também me reportaram o medo de que esses rebeldes voltem as suas armas contra nós, contra a França, mesmo estando do outro lado do oceano. Dizem que eles possuem uma ‘arma secreta’ capaz de destruir qualquer força militar portuguesa, francesa ou espanhola, além de armas de fogo. E isso faz qualquer soberano tremer em seu interior, o que também me fez a ajudar a aceitar melhor essa ‘missão’. Aposto que os espanhóis já devem estar disponibilizando os seus homens e uma nave de guerra apenas para descobrir que poder de fogo é esse e trazer essa tecnologia para dentro de suas fronteiras. Gostaria de ter mais informações. Se eu pudesse encontrar esse tal de Dom Eurico”.

– Que tipo de nome é esse?

– Senhor?...

– Desculpe...

A estranha e indesejada névoa forte cobria a vastidão do mar.

“Então a missão é seguir para a colônia portuguesa: descobrir quem são esses loucos que agem em nome do rei e controlar, ou destruir, o inimigo. Meu Deus! Sempre que alguém coloca ‘missão’ e ‘rei’ na mesma frase, alguma coisa tem de ser destruída”...

Depardieu olhou para o convés do navio.

“Da última vez, foram os endemoninhados que desenvolveram hábitos vampirescos e, antes, aquele maldito mercenário”.

– Terra à vista! – gritou o olheiro do alto do mastro, observando algo em meio ao denso nevoeiro.

– Esse se mostra muito empolgado...

– Depardieu? – era o capitão Jacques mais uma vez.

– Desculpe-me, – respondeu. – estou apenas falando sozinho.

O capitão voltou-se aos demais.

– Recolham as velas principais, homens! – ordenou Jacques. – Não queremos descobrir da pior maneira se as águas são profundas ou não!

A ordem dada por seu capitão foi rapidamente atendida. Depardieu mantinha-se imóvel.

Jacques se aproximou, a névoa mal deixava que se enxergasse algo.

– Vejo a sua frustração em ter de vir a esta missão. – disse. – Mas respondemos ao nosso rei e este ficou receoso com tais rebeldes, a ponto de nos enviarem.

– Não tente me enganar escondendo a sua real motivação, capitão. – respondeu Depardieu. – Estou ciente dos seus ganhos com essa missão.

– Esse é um problema que precisava de minha ajuda...

Depardieu sorriu.

– Ainda assim, você recebe o que mais almeja...

– Esse lugar é estratégico para o domínio dos mares. – retrucou o capitão. – A matéria prima e especiarias que circulam no velho continente partem destas terras ou passam por ela, vindo das índias. Você não é um comerciante, por isso não teve essa visão, mas deveria ter observado. Se tivermos a possibilidade de efetivamente formar uma colônia nesta terra, devemos aproveitar.

– E, por fim, você aumentará ainda mais os seus ganhos. Nada sugere que esses exilados venham a se curvar à coroa, Jacques. Eles vão reagir. Possivelmente, essa missão fomentará que, no futuro, eles realmente venham contra a França.

– Por isso você está aqui. Já estamos na coordenadas dadas a nós. Domine esses homens e nos traga fortuna.

– Comandante! – gritou um dos tripulantes.

O capitão voltou-se rapidamente.

– Calma, homem! – respondeu. – Estou próximo o suficiente para não ter de agir nesse rompante!

– Não! – retrucou o tripulante apontando para o mar. – O que quero dizer é: “O que é aquilo”?!

Só foi possível ver uma bola de fogo cortando o ar atravessando o casco da nau como se fosse papel.

– De onde veio o disparo? – gritou o capitão enquanto a explosão acompanhava das chamas em ascensão, não se via barco algum. Alguns tripulantes foram arremessados ao mar.

Outra bola de fogo cortou o ar e destroçou mais uma parte do navio. Depardieu mantinha-se controlado.

– Estamos sendo atacados! – gritou outro tripulante antes de ver seu companheiro ser consumido pelas chamas e ter seu corpo dilacerado pela explosão.

“Eu estava certo em meu inconformismo”, pensou Depardieu.

Mais dois disparos, destruindo a proa.

– Depardieu! – gritou Jacques em desespero. Ele era apenas um comerciante.

Depardieu entendeu o apelo.

– Homens! – gritou ele. – Preparem os canhões!

– Mas não temos em que revidar fogo, senhor!

Depardieu passou o olhar rapidamente no horizonte.

– Estibordo! Em direção ao continente!

Os disparos do navio francês se seguiram, arrastando parte do nevoeiro, abrindo-a no meio. Não se ouviu o som como se acertasse algo, mas todos fixaram o olhar. Foi quando perceberam, ao ver a névoa enfraquecer, a sombra de um navio surgindo lentamente, no meio do percurso dos disparos. Só houve tempo de sentir a explosão de mais uma dezena de detonações vindas da nau de guerra misteriosa.

As bolas de fogo cortaram mais uma vez o navio francês, as madeiras do convés subiram, mais mortes foram sentidas.

– Atirem! – foi a ordem de Depardieu.

Mais disparos se deflagraram, dessa vez parecendo acertar o inimigo.

– Nova carga! – ordenou.

Mais disparos foram detonados. Foi possível ver algumas chamas levantando-se na névoa. Alguns tripulantes ficaram afoitos.

– Calma, homens! – ordenou mais uma vez.

Só se percebeu a fumaça do navio adversário alçando ao céu. Os tripulantes não se manifestaram, a conselho do guarda da elite francesa, mas haviam acertado o estoque de pólvora do navio. O silêncio e apreensão imperaram de sobremaneira.

– Preparem os canhões novamente! Quero homens a Bombordo e Estibordo. Timoneiro, eu quero...

Foi quando sentiram novas explosões, dessa vez à frente e à esquerda do navio. Depardieu teve apenas tempo de olhar para o seu timoneiro.

– Vire a Estibordo!

Mais disparos destruíram a proa do navio. A nau de guerra virou os seus canhões para o atacante.

– Fogo! – foi a ordem.

O inimigo foi golpeado, as chamas se levantaram. A nau francesa parecia agüentar bem. A nave inimiga não parecia possuir mais resistente.

– Nova carga!

Mais disparos se ouviram.

A névoa não era capaz de esconder o inimigo, as chamas se levantavam com decisão.

– Façam eles tremerem! – ordenou mais uma vez.

Mais disparos se seguiram, a embarcação inimiga foi fortemente golpeada, o jogo havia virado. A investida surpresa e covarde havia sido revertida. Logo a nau adversária começaria a afundar.

– Vamos nos aproximar, homens! Saquem as suas armas! Abordem com força e tragam a vitória para nós!

Mas viu-se que era impossível vencer, pois outro navio misterioso surgiu. “Está explicado motivo da missão portuguesa anterior ter falhado”. Agora, eram dois navios inimigos que disparavam naquele momento, mesmo que um estivesse à pique. Os disparos se seguiram destruindo o navio e a todos.

***

A Recepção

Depardieu acordou na praia, a armadilha havia funcionado perfeitamente. Ele olhou ao redor, procurando mais sobreviventes. Nada encontrou. Olhou para si, estava inteiro. “Deveria ter entendido antes que eram duas embarcações”, pensou, “O poder de fogo deles foi eficiente, porém derrubei um deles, à custa da minha embarcação,”. Começou a caminhar pela praia, sua pólvora não prestava mais, nenhuma arma de fogo, apanhou a sua espada. “Podia ser pior”, pensou, “e poderia ter sido melhor”. Olhou para o mar, percebeu destroços do seu navio à deriva. Fitou o horizonte, procurando pelo navio covarde restante, nada viu. “Permanecendo aqui”, pensou, “serei alvo fácil”. Adentrou a floresta.

A mata era densa, difícil de caminhar, mas ele a cortava mesmo assim.

“Como estará a tripulação? Espero que tenham sobrevivido. Não havíamos marcado um ponto de encontro, mas, se mais alguém sobreviveu e ainda não foi capturado, deve estar na praia ou à espreita como eu”.

De súbito, Depardieu ouviu um barulho na floresta. Levou a mão ao punho de sua arma. Manteve-se escondido. Percebeu um pequeno grupo de soldados franceses rebeldes, aqueles a quem ele deveria dominar. “Estão procurando por sobrevivente, mas eu começo a ter as minhas dúvidas”. Ele escutou um barulho à sua retaguarda, tentou virar-se, porém foi inútil. Um tipo de punhal afiado, feito de pedra, tocou o seu pescoço.

– Você fede como os demônios brancos franceses! – disse uma voz em português, porém com um estranho sotaque.

– Calma. – respondeu Depardieu na mesma língua com dificuldade, agora vendo a tropa rebelde francesa à uma distância segura.

À sua frente, surgiu uma mulher linda, porém completamente diferente de tudo o que ele já havia visto, era uma nativa da terra. Ela mal cobria o seu corpo. Seus braços e pernas denotavam a sua força, assim como o abdômen. Seu olhar, coberto por uma estranha pintura, o fitou.

– Você exige demais de nós. – respondeu ela, também falando em português. – Seu povo tem agredido e maltratado a todos que tem encontrado.

– Aquele não é o meu povo. – respondeu.

“Maravilha! Caí da panela para o fogo!”. A estranha faca coçou mais uma vez o seu pescoço. Depardieu observou a mulher e o guerreiro às suas costas. “Isso tem que mudar”. Depardieu rapidamente agarrou a mão de seu algoz, puxando-o para frente. O guerreiro indígena perdeu o equilíbrio, saindo de meio às folhagens, caindo sobre as costas do francês, alavancando-o em seguida para a sua frente, derrubando o selvagem de costas no chão, desarmando o seu “punhal” e mirando em sua face. Qual não foi a surpresa ao ver um punho feminino correr em direção à sua face, jogando-o para trás como se um boneco fosse. “Que força!”. Depardieu rapidamente levantou-se.

– Se você a considerou forte, – observou o selvagem, ainda falando em português, parecendo ler os seus pensamentos e levantando-se rapidamente, com um tacape preso à cintura. – Não gostaria de experimentar a minha força!

O selvagem parecia descomunalmente mais forte. “Bom”, pensou enquanto levava a mão à sua espada, “não vejo alternativa”. Sacou a sua arma. O indígena não esperou posição de combate, lançando-se sobre o francês. Depardieu mal conseguiu enxergar o momento em que o seu tacape fora sacado, partindo de baixo para cima, golpeando o seu queixo e jogando-o para trás. Depardieu quase perdeu os sentidos e mal teve tempo de ver que o selvagem já estava sobre ele, efetuando um novo ataque. Só houve um segundo para que se desviasse para o lado, nunca havia enfrentado um guerreiro tão rápido e forte. Afastou-se da maneira que lhe era possível, rolando no chão e ajoelhando em seguida, o selvagem não dava abertura, sequer para respirar. A espada de Depardieu cortou o ar com uma mescla de técnica e instinto, quase sem ver os movimentos do selvagem, sua espada rasgou o peito do guerreiro, emparelhando a luta e retendo o ataque.

O índio parou, raciocinou uma nova abertura para um novo ataque. Depardieu ergueu a sua lâmina. “Não foi para isso que eu vim”!

– Eu não estou aqui para lutar contigo! – gritou Depardieu em um português fraco, o indígena ignorou completamente a sua frase, avançou. O francês desviou-se do ataque, pronto para investir, porém o selvagem já atacava novamente, só houve tempo de bloqueá-lo.

– Seu povo tem atravessado as águas para oprimir minha nação! – gritou em sua língua nativa. – E você não fará o mesmo!

Depardieu observou à volta. A formosa mulher apenas observava. “Eles falaram em português, como eles sabem se expressar nessa língua?”. Depardieu segurou o tacape, ainda bloqueado por sua espada, desferindo um soco com o punho de sua lâmina, descendo o fio de seu aço em seguida, enquanto se afastava, cortando a face do adversário. Ambos se encararam.

– Estou impressionado que ainda esteja vivo após receber o meu primeiro golpe! – exclamou o selvagem na língua que o francês parecia entender. – Mostra-se um guerreiro resistente e habilidoso, diferente dos demais!

O queixo de Depardieu sangrava com força, rasgado pelo tacape. O selvagem tinha o seu peito e o seu rosto cortados. Ambos ofegavam. “Que tipo de guerreiro é esse? Ele é extremamente forte, disposto a entrar em um luta de vida ou morte como se nada fosse. Já enfrentei todo tipo de adversário, mas nada comparado a isso”.

De súbito, o selvagem pareceu sumir à sua frente. “Onde ele está?”. Sentiu uma sombra vinda de baixo. “Como pode se mover tão rápido?”, o golpe do selvagem veio de baixo para cima, Depardieu não conseguiu se defender, atacando também, por instinto, com uma possível joelhada. Ambos acertaram os seus golpes, jogando-os em direções opostas. O seu golpe acertou o selvagem na altura do queixo, enquanto o tacape veio com menos força contra a sua cabeça. A bela selvagem observava a luta, agora demonstrando surpresa com tamanha habilidade do guerreiro francês, diferente de todos os outros que já haviam enfrentado desde então.

Depardieu levantou-se tonto, quase perdendo os sentidos, seu queixo sangrava. O selvagem quase havia quebrado o pescoço com a joelhada, forçando a nuca para trás, levantou-se, agora demonstrando um pouco de fadiga. “Eu tenho que desarmá-lo de alguma forma”, pensou Depardieu. Ambos estavam ainda mais ofegantes. Então, lentamente, Depardieu controlou a sua respiração. O índio soltou mais um grito de guerra e avançou. Depardieu também seguiu em frente. O francês golpeou com toda a força que tinha, mirando o tacape. A arma indígena foi cortada ao meio, mas isso não impediu que sua espada se partisse. A ponta da lâmina caiu perto da mulher. Ela apenas observou, satisfeita com o combate que presenciava.

Os combatentes mais uma vez se fitaram. O selvagem soltou o seu tacape, Depardieu continuou com o pedaço de sua lâmina em riste. Novamente, um avançou contra o outro. Depardieu atacou com o pedaço de lâmina, a vantagem era dele. O selvagem defendeu-se com a palma da mão, cravando o fio da lâmina em sua carne, mas ele pareceu ignorar a dor, agarrando Depardieu entorno do seu tronco e os braços, levantando-o no ar e o esmagando com força, sem dar-lhe oportunidade para uma reação. Depardieu sentiu a forte pressão, parecendo quebrar os seus ossos. A luta parecia decidida. O selvagem quebraria alguns ossos do francês, o asfixiaria e o faria perder os sentidos, sua carne provavelmente alimentaria a sua tribo. Depardieu mal conseguia respirar, levou a mão à sua bainha de aço, desprendeu da cintura com os poucos movimentos que lhe eram possíveis fazer e, com extrema dificuldade, golpeou repetidas vezes o joelho e a perna do selvagem. Este acabou não agüentando, os pés de Depardieu tocaram o chão, foi o suficiente para um apoio. Ele golpeou com pernas até que pudesse se soltar e continuar atacando com a bainha. O selvagem o soltou e só foi capaz de ver a bainha de aço golpeando o seu rosto. Ambos se encaram uma derradeira vez. Naquela altura da luta, o próximo golpe seria o último. A formosa selvagem mantinha-se fria, confiante que o seu companheiro seria o vencedor. “Como eles são capazes de falar a língua dos portugueses?”, pensou uma última vez. Ambos avançaram para o último e derradeiro ataque.

– Vocês dois, – gritou outra voz, em português. – parem! Avaantã! Francês! Parem agora!

Tanto o francês como o selvagem seguraram o seu avanço. Depardieu nada entendeu. O silêncio prevaleceu. Japira, a formosa guerreira selvagem, fitou o homem que se pronunciava.

– Agora que a luta ia ser definida, você interrompe? – perguntou ela.

– Vocês perderam o juízo? – continuou o estranho homem. – Ele não faz parte do povo que nos afronta!

– Ele cheira ao povo francês, – era Avaantã. – está impregnado!

– Mas não possui a mesma conduta. – retrucou o homem, virando-se para Depardieu. – Vejo a cruz em seu peito, faz parte da Guarda de Elite de seu rei, estou correto?

Depardieu o olhou de volta, ainda ofegava. “Está explicado o porquê de dominarem a língua dos portugueses”.

– Quem é você? – perguntou Depardieu com dificuldade.

O homem fez uma leve reverência.

– Dom Paulo Barros Eurico, – começou ele, para o seu espanto. – governante da cidade de Eurico. Enviado a estas terras com a intenção de expulsar tamanhos invasores. Vi que derrubaste uma das naus do nosso inimigo e lhe sou grato por isso. Pena que a sua embarcação também tenha naufragado.

– Ele ainda fede ao povo que tem avançado impiedosamente contra o meu. – era Avaantã.

– Onde está a sua embarcação? – perguntou Depardieu.

– Destruída pelos mesmos inimigos, mais ao norte.

– Nossa aliança é tênue, se continuar conversando com o inimigo...

– Se acalme, Avaantã, ele é um aliado.

O selvagem encarou Depardieu com seriedade.

– Quando iria me contar que se aliaria a franceses? Não era regra caçar sobreviventes da nau inimiga e exterminá-los?

– Eu já lhe disse que este homem não é como os outros, estavam na embarcação que disputou batalha e naufragaram levando uma das naus inimigas. Não tínhamos como saber se era aliado ou não, acabei de descobrir.

– Quando ia me contar?

– Vou precisar falar em sua língua que “acabei de descobrir”?

– Ele – começou Japira na língua nativa. – “acabou de descobrir”.

Avaantã e Eurico a fitaram, Japira sorriu.

– Realmente achei necessário. – observou ela.

Depardieu levantou-se.

– Vocês são aliados contra o povo rebelde da minha nação. – disse. – Então, peço que ajudem a cumprir a missão que fui incumbido: derrotar esses franceses que não aceitam a autoridade de meu rei. Encontraram algum sobrevivente da minha tripulação?

– Você é o primeiro que encontramos da outra tripulação. – respondeu Eurico. – Do inimigo, encontramos apenas dois. Talvez apenas você tenha tido sorte.

“Isso é alentador”.

– Tenho que sair daqui, onde vocês se refugiam?

Avaantã se adiantou.

– De forma alguma, você chegará perto de minha tribo!

– Calma, Avaantã! – disse Eurico. – Ele é o representante direto do senhor do seu povo, assim como eu, e ele está propondo uma aliança com a sua nação.

O selvagem olhou para a sua esposa, também não fez objeção.

Virou para Depardieu.

– Sou líder do meu povo e sua proteção depende de minhas decisões. Portanto, se fizer algo que eu considere uma afronta, pagará com a sua existência.

“Esse homem não consegue dizer uma frase sem ameaçar a mim ou qualquer outro à suas volta?”.

– Está bem. – respondeu Depardieu.

***

A Tribo

O dia passava lentamente enquanto os quatro guerreiros cortavam a floresta. Depardieu observava os seus novos “companheiros”. A começar por Avaantã e sua esposa, Japira. Eles eram formidavelmente preparados fisicamente: possuíam grande força muscular, a par de resistência à fadiga, que lhes permitiam deslocarem-se velozmente a grandes distâncias em plena selva. Depardieu era um homem extremamente treinado e preparado para qualquer tipo de obstáculo, mas duvida que seria capaz de acompanhar esses guerreiros se não fosse seu treinamento. Sequer seria capaz de fazer frente à força e habilidade demonstrada por aquele casal. Foram capazes de distinguir pelo cheiro a sua “raça” de homem branco. E agora seguiam pela floresta rastros e indícios que sequer conseguia notar. Seriam todos os selvagens no mesmo nível de combate? Então, por que não haviam derrotado os rebeldes franceses de uma vez por todas?

– O povo rebelde francês possui armas poderosas, difícil de derrotá-los, ainda mais de rastreá-los. – disse Eurico enquanto cortavam a floresta, parecendo saber o que Depardieu pensava. – Bons homens meus deram a vida contra eles, morrendo em alto mar ou aqui em terra, porém restou apenas a mim para continuar o combate, foi quando Avaantã, o Chefe dos Chefes de sua Nação, ofereceu apoio contra o inimigo, pois estes também destruíam seu povo.

Depardieu também observava o senhor Eurico. Ele não possuía ares de um simples governador. Ele era um aventureiro! O que mais estaria fazendo tão longe de sua cidade para governar. Alias, sua condição física também era bastante exemplar e adaptada, capaz de acompanhar o casal de selvagens com certa facilidade.

– Minha preocupação era com os navios de guerra que derrubaram o meu. – continuou ele. – Mas, por sorte, você apareceu e derrubou uma das embarcações, facilitando o embate. Eu apenas não entendo o que você veio fazer aqui?

“O mesmo pergunto sobre você”.

– A rainha-mãe de meu país acha interessante dominá-los ou destrui-los, pois acredita que, por terem sido expulsos de sua terra natal, possam haver represálias em um futuro próximo.

– Entendo... É melhor que acabemos com toda essa bagunça.

De súbito, os quatro guerreiros irromperam em uma grande ocara, era a tribo de Avaantã. Depardieu observava a tudo. “Onde Estamos?”.

– Que lugar é esse?

– Esta é a minha terra. – respondeu Avaantã. – Faça algo além do permitido e será a última coisa que verá!

“Ele gosta de ameaçar”.

– Essa é a aldeia da tribo de Avaantã. – respondeu Eurico.

Depardieu observou o lugar. Todos eram muito parecidos, das crianças que brincavam aos velhos que aconselhavam. A aldeia era enorme. Avaantã e Japira seguiram o centro da taba, buscando a oca mais elevada. De dentro da casa, saiu uma criança.

– Yuatã! – disse Japira na língua nativa enquanto Avaantã o tomava no colo com amor. – Minha criança!

Parecia que os ferimentos que Depardieu havia causado no guerreiro selvagem já estavam sarados, ou ele ignorava muito bem, diferente dele, as dores o fustigavam insistentemente.

– Venha! – disse Eurico. – Quero lhe mostrar algo!

Depardieu o seguiu, partindo para outro ponto da grande Ocara.

– Como fará para retornar à sua terra? – perguntou.

Eurico sorriu.

– Eu tenho meus meios. – respondeu em meio ao sorriso enquanto entravam em uma oca. Eurico seguiu até o centro e apanhou uma espada, arremessando em seguida para Depardieu.

– Tome! – disse. – É aço espanhol, vai resistir às agruras que terá de enfrentar daqui para frente.

– Do que você está falando?

Eurico sorriu mais uma vez.

– Enviaram-no às cegas, não é mesmo? Você sequer sabe o que estão enfrentando.

“E parece que ninguém sabia”.

– Pelo resultado que vejo, – era Depardieu. – parece que não faria muita diferença saber...

Eurico sacou um calhamaço de anotações.

– Esses rebeldes franceses a que caçamos são muito diferentes do que você imagina.

– Do que está falando?

– Eles são difíceis de rastrear, até mesmo para os guerreiros selvagens que são capazes de seguir rastros de semanas atrás. Eles são mais velozes e fortes, perfeitamente discretos e estão se espalhando como uma praga nestas terras. Os únicos que foram capazes de segurá-los são exatamente os nativos daqui, os mais preparados para enfrentá-los. Já caçamos metade deles, mas isso me custou a maioria dos meus homens, tivemos que queimar os seus corpos. Os selvagens também tomam a mesma postura quanto aos seus.

– Do que você está falando?

– Leia! – disse. – Meu francês é fraco, mas consegui entender o que esses documentos diziam. Parece que a “arma secreta” se voltou contra os próprios franceses, por isso classificá-los de “rebeldes”. Isso foi tudo que consegui quando os enfrentei. A sua rainha tem total razão de temer e querer exterminá-los...

***

Os Documentos

Depardieu pôs-se a ler.

Primeiro Documento:

"Anotações do médico,

05 de setembro de 1568.

O corpo chegou esta manhã, tudo indica ser o filho bastardo da rainha-mãe. Havia o histórico que ele possuía costumes vampirescos, só podia entender tratar-se de um bruxo. A pessoa responsável por trazer o corpo do espécime observou que, apesar da perfuração profunda em seu abdômen, possivelmente provocada por golpe de espada, e ferimentos que consistem em lacerações graves por todo o corpo e queima de mais da metade de sua carne, ainda permanecia vivo. Porém parecia hibernar, sem precisar comer ou beber, algo completamente alheio a um ser-humano, nunca vi nada igual.

Disseram-me que ele tentou atacar o rei enquanto jazia em seu descanso, diretamente em seu aposento. Foi caçado sem trégua por sua guarda pessoal e morto por um dos seus homens de maior destaque.

‘Fui eu quem o matou’...

Tratamos de suas feridas, conforme ordens da rainha-mãe. Tenho esperança que, em uma semana, essa criatura já esteja em condições normais. Ao que parece, o homem que me entregou o corpo, o viu em ação e descreveu que tal ser é possuidor de uma doença rara: a ‘Zoantropia’. Ele acredita ser um animal, como todos os detentores de tal doença já registrados, porém este possui um diferencial, ele mantém a consciência humana. Vale ressaltar que sua força mostra-se notavelmente superior ao do ser-humano assim como a resistência, como é o caso do espécime aqui presente.

Anotações do médico,

07 de setembro de 1568.

O dia de ontem superou todas as expectativas. Sua febre baixou ao longo das horas e seus ferimentos, após receber o devido tratamento médico, cicatrizou em questão de um espaço de 24 horas. Ele demonstrou sinais satisfatórios de vida, porém não como o ‘milagre’ que esperava. Seu corpo estava bem, porém sua mente demonstrava total ignorância de onde se encontrava. Ele não se recorda de ser quem é, nem filho de quem é. Mas demonstrou, tragicamente, contra dois dos meus mais novos auxiliares, que ainda acreditava ser uma fera. Os atacou mordendo-os na altura do pescoço, e quebrou braços e costelas de ambos.

Ele manteve aquilo que já sabia: lutar, em particular; falar quatro idiomas; e outras. Mas não possui ideia de como adquiriu tais conhecimentos. Ele é quase uma tábula rasa, porém necessita ser mantido preso em cadeias. Os meus jovens auxiliares estão deveras doentes: febre alta e dores no corpo.

‘Ele foi muito difícil de matar’...

Anotações do médico,

21 de setembro de 1568

O espécime mantém perfeita saúde, sequer apresenta qualquer tipo de cicatriz. Não consigo explicar tal evento. Seu raciocínio humano é perfeito, porém frio, inteligente e cruel, não se reconhece um ser-humano neste ser, não recomendado a retornar para o povo francês. As recomendações, até segunda ordem advinda da Rainha-mãe, são para mantê-lo em cárcere. Meus dois jovens ajudantes morreram após dois dias de febre incessante e dores pelo corpo.

Anotações do médico,

30 de setembro de 1568

O espécime continua encarcerado e bem, mas não se alimenta. Após muita observação, percebo ser impossível descobrir a qual animal ele acredita ter se convertido, porém ainda continua sedento por sangue e extremamente forte. Notei que, mesmo após nove dias da morte de meus caros e jovens ajudantes, seus corpos não se decompuseram. Manifestei-me contra enterrá-los. Ao verificar seus dados vitais, percebeu-se alguns dados. Solicitei que os algemassem, por via das dúvidas.

Anotações do medico,

03 de outubro de 1568

Incrível, as duas vítimas do primeiro espécime despertaram há 24 horas e estão em plena atividade e bem. Diferente do primeiro espécime, eles sabem os seus nomes e quem são, guardando toda a memória que possuíam antes de seu ‘falecimento’. Demonstraram um acréscimo de força aos seus corpos e sede por sangue, porém pedem encarecidamente para que sejam libertos, estão comportados. Irei reportar todos esses acontecimentos à rainha. Notei que, à noite, ainda mais quando a lua está cheia, eles ficam mais ouriçados, porém nada comparado ao primeiro espécime.

Só posso supor que a doença foi passada através da saliva, pois o contato físico pareceu não transmitir a doença. Já observei todos os meus dados vitais e de meus ajudantes. As minhas ‘crianças’ parecem nervosas por não libertá-las do cativeiro que se encontram após o seu renascimento. Ordenei para mais homens, com mais armas, protejam os aposentos.

Anotações do médico,

10 de outubro de 1568

Recebi ordens do correspondente da rainha-mãe para que sejam enviados tais espécimes, juntamente com o seu filho bastardo, para as colônias portuguesas. Se possível, a maior delas. Demonstrei meu desconforto, porém o correspondente alega que tal medida contemplará vários objetivos. As minhas ‘crianças’ servirão de armas. Sou obrigado a descobrir um meio de controle de tais feras para efetuar dominação de uma nova terra no Novíssimo Mundo. Os dois rapazes estão deveras agressivos, porém se comportam em minha presença. Eles dizem entender que são considerados uma ameaça. O filho bastardo da rainha mantém-se em total silêncio, aceita animais vivos para que sirva de alimento e descarte as carcaças.

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Segundo Documento:

Diário de Bordo (apenas a parte relevante): Capitão Jean Luke D’Lion

Data: 15 de novembro de 1568

Estamos partindo para o novo mundo. A tripulação mostrou-se animada até a chegada dos espécimes, a nossa arma secreta. Eles realmente causam náuseas apenas de olhar. São criaturas que podem invadir pesadelos, os deixarei à ferros até o fim da viagem. Estamos com previsão de alcançar a costa marítima entorno de quarenta dias, seguindo discretamente. Estamos partindo em dois navios de guerra, fortemente armados.

Diário de Bordo (apenas a parte relevante): Capitão

Jean Luke D’Lion

Data: 30 de novembro de 1568

A viagem tem nos mostrado diversos percalços. O cheiro das carcaças deixadas por essas ‘armas’ mostra-se insuportável, estão atraindo doenças. Nosso objetivo é apenas levá-los até a colônia portuguesa, porém parece ser meio difícil, pois mal chegamos à metade da viagem e a tripulação está desejosa em jogá-los no mar e tomar a colônia com os próprios punhos. Essas ‘armas’ são deveras repugnantes. O mais velho é agressivo e frio, os outros dois são cordiais.

Diário de Bordo (apenas a parte relevante):

Capitão Jean Luke D´Lion

Data: 15 de dezembro de 1568

Ocorreu um incidente, um dos nossos tripulantes chegou perto demais de nossas ‘armas’ para retirar as carcaças e foi brutalmente agredido, seu sangue foi quase todo bebido. Há mordidas por todo o corpo. Alguns outros se feriram com esses monstros, tentando salvar o companheiro. O corpo do marujo morto será jogado no mar ao amanhecer. Os companheiros estão muito febris.

Diário de Bordo (apenas a parte relevante):

Capitão Jean Luke D´Lion

Data: 22 de dezembro de 1568

Mais homens de minha confiança morreram. Justos aqueles que tentaram ajudar o infeliz marujo. Como estamos perto do Natal e do fim da viagem, levaremos os seus corpos para terra.

Diário de Bordo (apenas a parte relevante):

Capitão Jean Luke D´Lion

Data: 30 de dezembro de 1568

Algo errado está acontecendo. Toda a minha tripulação está sumindo. Não encontramos rastros sequer. Os espécimes continuam em cativeiro. Estou redobrando a guarda do acampamento. Um dos meus imediatos chamou-me a atenção para os túmulos daqueles que enterramos nessas terras, foram revirados. Mas diferente do que podia parecer, parece que não foi escavado e sim como se algo saísse da cova. Começo a gelar o meu coração do que pode ter acontecido.

Diário de Bordo (apenas a parte relevante):

Capitão Jean Luke D´Lion

Data: 05 de janeiro de 1569

Tudo está um caos! Os espécimes foram libertados por antigos tripulantes meus, antes dados como morto; outros, desaparecidos. Sei que não tenho como escapar. Se alguém encontrar essas anotações, quero que utilize de referência para poder lutar contra ‘eles’. Essas criaturas são seres terrivelmente mais ferozes, fortes e astutos que d’antes de sua ‘passagem’. A praga que eles propagam em seu sangue é transmitida por intermédio dos ferimentos, contaminando a vítima por completo, tornando um antigo aliado em um potencial inimigo.

Todos os meus companheiros morto desde que foi descoberta tal praga, foram queimados para evitar a propagação. Tenho preocupação quanto aos navios, eles foram tomados por esses monstros. Eles são perfeitamente inteligentes e capazes de tripular aquelas embarcações, como o faziam antes de morrer. São extremamente cruéis, violentam mulheres e crianças dos povoados nativos e fazendas próximas. Não possuem limites para a maldade. Sequer lembram a moral que possuíam antes de morreram. Crianças foram transformadas. Matei todos que pude encontrar. Quando se cansarem daqui, é certo que partirão para outras terras. É certo que voltarão para a França, de uma maneira ou de outra. Sei que uma nova armada será enviada para exterminar com essa praga.

Ouço a respiração dos predadores à porta, fui encontrado”...

"Eu sabia que ia me dar mal".

Continua...

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Boa Leitura!

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"Contos da Era Heróica" são contos anteriores à trilogia "Os Confins da Terra", clareando dessa forma um pouco mais o contexto da história e onde cada personagem se encaixa.

Neste caso, veremos um pouco mais das aventuras vividas pelo senhor Depardieu, Eurico e Avaantã.

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J M Silveira
Enviado por J M Silveira em 01/10/2010
Reeditado em 01/10/2010
Código do texto: T2531604