Vida de Cachorro
VIDA DE CACHORRO
Foi por acaso que se encontraram no jardim, bem cuidado, que ficava em frente ao Condomínio, que era formado por três prédios grandes de apartamentos, onde só morava "gente bem", endinheirada, da alta, que eram comerciantes e executivos, uns até conhecidos na sociedade.
Damom, um fox-terrier, levava uma vida mansa, com todos os cuidados que um cão de raça necessita. Nada lhe faltava, como comentou com Jiló, um vira-lata, não tão bem cuidado, mas dono da rua, ou melhor, das ruas.
- Eu moro no 7º andar daquele edifício amarelo. Ta vendo lá? Indicou levantando o focinho.
- Tenho um quarto só pra mim, cheio de brinquedos. Acredita, cara?
- Pelo jeito, todo penteado e cheiroso com estás, não posso contestar. Claro que não estás mentindo. Respondeu Jiló na sua simplicidade de vira-lata.
- E tu, onde moras? Damom, curioso, quis saber.
- Eu? Ah, cara, é melhor você nem saber... Nem queira imaginar. Mas, como é teu desejo... Fez um pequena pausa e revelou que vivia solto, ao deus-dará, vagabundeando pelos becos e vielas da cidade, quando não acompanhava o velho Zé Raimundo.
- Aquele que está parado lá naquela esquina. Ta vendo? Ele é comprador de jornais velhos e garrafas vazias. Outras vezes, me desgarro dele e fico virando latas, atrás de restos de comidas, muitas vezes apodrecidos. A propósito, cara, mais de uma vez já passei mal pra burro da barriga. E aí me dano a comer um capim especial que tem lá perto da morada do Zé Raimundo, que me alivia a perturbação das tripas. Essa é a minha vida, quando não estou, com outros companheiros, querendo pegar uma cadelinha fogosa, quando aparece. Outras vezes, principalmente quando chove e já é noite, eu me escondo debaixo da ponte de ferro. Aquela ponte grande, em que o trem passa por cima.
- Já passaste por lá? Quis saber Jiló.
- Não. Nem sei pra que lado da cidade fica essa tal ponte. Eu, a bem da verdade, muito pouco ando por aí afora, a não ser quando a minha dona, por demais vaidosa, leva-me, na coleira. Veja bem, na coleira, para passear no calçadão da praia, quando aproveito para fazer as minhas necessidades fisiológicas na areia.
- O quê diabo é isso? Estranhou Jiló.
- Ah... deixa pra lá! Concluiu Damom. E continuou falando dos elogios que recebia das pessoas que olhavam admiradas para ele, soltando gracejos que lhe enchiam as medidas.
- É assim, amigo Jiló. Eu vivo mais por aqui mesmo. Nunca me afasto do Condomínio porque, na verdade, tenho medo e a minha dona mão me larga. Sempre firme no meu pé, ou melhor, no meu pescoço, com esta coleira bonita que uma sua amiga lhe trouxe de Nova York. Hoje estou aqui com aquela mulatinha sacana, que me deixou amarrado neste poste. Aquela ali papeando com aquele pipoqueiro. Levantou as narinas em direção do vendedor ambulante.
- Pô, meu chapa, que vida, hein? Boa pra cachorro! Rosnou Jiló com certo olhar entre piedoso e gozador.
Ficaram naquela bate-papo,descontraído, por quase meia hora, dando a impressão que já se conheciam de longo data. Não comparando bem, cachorros e crianças logo se entrosam ao primeiro contato.
Eram de origens diferentes. Damom tinha árvore genealógica. Descendia de alta linhagem. Dono de pedigree. Por sua vez, Jiló, naquela vidinha penosa de cão-de-pobre, pelo contrário, não tinha registro de nascimento, provando a sua origem de vira-lata rabugento, de rabo empinado, que, às vezes, acompanhava o seu "dono", o velhote que puxava a tosca carroça cheia de jornais velhos e garrafas vazias para vender no depósito receptor da Rua da Passagem.
Enquanto Damom, amarrado no poste, contava a boa-vida que levava no apartamento do vistoso edifício, Jiló, atento à palavra do amigo, mastigava algumas pipocas que caíam do saquinho na mão de um descuidado garoto. Ali, pela manhã, muitas crianças brincavam, acompanhadas de babás. Outras, apenas estavam à disposição de luluzinhos tosados e até vestidos de roupas exóticas, para proteção da friagem, e de cães de porte maior, todos encoleirados.
Damom falou para o amigo das exposições caninas, das medalhas e troféus que recebera e que sua dona colecionava. Todas penduradas na parede do seu requintado quarto. Não esqueceu, sequer, os cuidados que a sua proprietária dispensava ao seu pêlo, às suas unhas e até, por incrível que pareça, aos seus dentes. Damom, dispunha de um competente veterinário, que cobrava, como revelou ao amigo, uma "nota preta" pelas consultas mensais. E o pobre cão Jiló, admirado, embasbacado mesmo, com a língua pendente ao lado esquerdo da boca encharcada de saliva, provocando-lhe um babar contínuo, só escutava. Faltava-lhe assunto para argumentar. A sua vida, amarga como o próprio fruto do jiloeiro, pelo contrário, era como a de todos os cachorros comuns, que vagueiam pelas ruas, vulneráveis às determinações da Saúde Pública, que, vez por outra, os aprisiona nos canis da Prefeitura, sob a mira dos funcionários "carrascos" que os eliminam nas câmaras de gás, apropriadas. Esse assunto considerava deprimente. Preferiu não falar.
O homem simples, que se considerava dono de Jiló, percorria aquelas ruas do bairro nobre quase todos os dias, porque, ali, o lixo da gente rica oferecia grande quantidade de revistas e jornais velhos, garrafas e até restos aproveitáveis de comida. Naqueles dias, Jiló lhe servia de companhia, vindo lá das bandas do Lixão da Sapucaia, onde nada de bom podia oferecer ao animal, a não ser uma vasilha velha de plástico com água e umas poucas sobras da comida simples do seu trivial. Não permitia que Jiló dormisse no casebre. O espaço era mínimo. O seu cheiro intolerável de rabugem tornava-o indesejável dentro do cubículo fechado. A cobertura do pequeno cômodo, com pedaços de telhas de amianto, contribuía para aquilo. Sem opção, Jiló procurava abrigo, à noite, como disse a Damom, embaixo da ponte de ferro, onde dormia pessimamente, sob o tará-tará-tará estrondoso do trem da Central, no seu vai-e-vem, martelando os seus miolos.
Damom quase chegou às lágrimas, sensibilizado com a penúria do seu novo amigo. E insistiu para levá-lo onde vivia, no majestoso apartamento da sua dona, para passarem juntos o resto do dia. Mas Jiló o demoveu do honroso convite.
- Eu te agradeço, até comovido, porque prefiro é mesmo a liberdade que tenho de ir e vir pelas ruas, becos e vielas desta cidade.
Naquele momento, passava perto uma vira-lata jeitosinha, no cio, acompanhada de alguns cachorros, estimulando o apetite sexual de Jiló.
- Tchau, Damom, que também vou nessa...!
- Au! au! au! au! E sumiu na primeira esquina, com o rabinho empinado balançando, feliz da vida.
VIDA DE CACHORRO
Foi por acaso que se encontraram no jardim, bem cuidado, que ficava em frente ao Condomínio, que era formado por três prédios grandes de apartamentos, onde só morava "gente bem", endinheirada, da alta, que eram comerciantes e executivos, uns até conhecidos na sociedade.
Damom, um fox-terrier, levava uma vida mansa, com todos os cuidados que um cão de raça necessita. Nada lhe faltava, como comentou com Jiló, um vira-lata, não tão bem cuidado, mas dono da rua, ou melhor, das ruas.
- Eu moro no 7º andar daquele edifício amarelo. Ta vendo lá? Indicou levantando o focinho.
- Tenho um quarto só pra mim, cheio de brinquedos. Acredita, cara?
- Pelo jeito, todo penteado e cheiroso com estás, não posso contestar. Claro que não estás mentindo. Respondeu Jiló na sua simplicidade de vira-lata.
- E tu, onde moras? Damom, curioso, quis saber.
- Eu? Ah, cara, é melhor você nem saber... Nem queira imaginar. Mas, como é teu desejo... Fez um pequena pausa e revelou que vivia solto, ao deus-dará, vagabundeando pelos becos e vielas da cidade, quando não acompanhava o velho Zé Raimundo.
- Aquele que está parado lá naquela esquina. Ta vendo? Ele é comprador de jornais velhos e garrafas vazias. Outras vezes, me desgarro dele e fico virando latas, atrás de restos de comidas, muitas vezes apodrecidos. A propósito, cara, mais de uma vez já passei mal pra burro da barriga. E aí me dano a comer um capim especial que tem lá perto da morada do Zé Raimundo, que me alivia a perturbação das tripas. Essa é a minha vida, quando não estou, com outros companheiros, querendo pegar uma cadelinha fogosa, quando aparece. Outras vezes, principalmente quando chove e já é noite, eu me escondo debaixo da ponte de ferro. Aquela ponte grande, em que o trem passa por cima.
- Já passaste por lá? Quis saber Jiló.
- Não. Nem sei pra que lado da cidade fica essa tal ponte. Eu, a bem da verdade, muito pouco ando por aí afora, a não ser quando a minha dona, por demais vaidosa, leva-me, na coleira. Veja bem, na coleira, para passear no calçadão da praia, quando aproveito para fazer as minhas necessidades fisiológicas na areia.
- O quê diabo é isso? Estranhou Jiló.
- Ah... deixa pra lá! Concluiu Damom. E continuou falando dos elogios que recebia das pessoas que olhavam admiradas para ele, soltando gracejos que lhe enchiam as medidas.
- É assim, amigo Jiló. Eu vivo mais por aqui mesmo. Nunca me afasto do Condomínio porque, na verdade, tenho medo e a minha dona mão me larga. Sempre firme no meu pé, ou melhor, no meu pescoço, com esta coleira bonita que uma sua amiga lhe trouxe de Nova York. Hoje estou aqui com aquela mulatinha sacana, que me deixou amarrado neste poste. Aquela ali papeando com aquele pipoqueiro. Levantou as narinas em direção do vendedor ambulante.
- Pô, meu chapa, que vida, hein? Boa pra cachorro! Rosnou Jiló com certo olhar entre piedoso e gozador.
Ficaram naquela bate-papo,descontraído, por quase meia hora, dando a impressão que já se conheciam de longo data. Não comparando bem, cachorros e crianças logo se entrosam ao primeiro contato.
Eram de origens diferentes. Damom tinha árvore genealógica. Descendia de alta linhagem. Dono de pedigree. Por sua vez, Jiló, naquela vidinha penosa de cão-de-pobre, pelo contrário, não tinha registro de nascimento, provando a sua origem de vira-lata rabugento, de rabo empinado, que, às vezes, acompanhava o seu "dono", o velhote que puxava a tosca carroça cheia de jornais velhos e garrafas vazias para vender no depósito receptor da Rua da Passagem.
Enquanto Damom, amarrado no poste, contava a boa-vida que levava no apartamento do vistoso edifício, Jiló, atento à palavra do amigo, mastigava algumas pipocas que caíam do saquinho na mão de um descuidado garoto. Ali, pela manhã, muitas crianças brincavam, acompanhadas de babás. Outras, apenas estavam à disposição de luluzinhos tosados e até vestidos de roupas exóticas, para proteção da friagem, e de cães de porte maior, todos encoleirados.
Damom falou para o amigo das exposições caninas, das medalhas e troféus que recebera e que sua dona colecionava. Todas penduradas na parede do seu requintado quarto. Não esqueceu, sequer, os cuidados que a sua proprietária dispensava ao seu pêlo, às suas unhas e até, por incrível que pareça, aos seus dentes. Damom, dispunha de um competente veterinário, que cobrava, como revelou ao amigo, uma "nota preta" pelas consultas mensais. E o pobre cão Jiló, admirado, embasbacado mesmo, com a língua pendente ao lado esquerdo da boca encharcada de saliva, provocando-lhe um babar contínuo, só escutava. Faltava-lhe assunto para argumentar. A sua vida, amarga como o próprio fruto do jiloeiro, pelo contrário, era como a de todos os cachorros comuns, que vagueiam pelas ruas, vulneráveis às determinações da Saúde Pública, que, vez por outra, os aprisiona nos canis da Prefeitura, sob a mira dos funcionários "carrascos" que os eliminam nas câmaras de gás, apropriadas. Esse assunto considerava deprimente. Preferiu não falar.
O homem simples, que se considerava dono de Jiló, percorria aquelas ruas do bairro nobre quase todos os dias, porque, ali, o lixo da gente rica oferecia grande quantidade de revistas e jornais velhos, garrafas e até restos aproveitáveis de comida. Naqueles dias, Jiló lhe servia de companhia, vindo lá das bandas do Lixão da Sapucaia, onde nada de bom podia oferecer ao animal, a não ser uma vasilha velha de plástico com água e umas poucas sobras da comida simples do seu trivial. Não permitia que Jiló dormisse no casebre. O espaço era mínimo. O seu cheiro intolerável de rabugem tornava-o indesejável dentro do cubículo fechado. A cobertura do pequeno cômodo, com pedaços de telhas de amianto, contribuía para aquilo. Sem opção, Jiló procurava abrigo, à noite, como disse a Damom, embaixo da ponte de ferro, onde dormia pessimamente, sob o tará-tará-tará estrondoso do trem da Central, no seu vai-e-vem, martelando os seus miolos.
Damom quase chegou às lágrimas, sensibilizado com a penúria do seu novo amigo. E insistiu para levá-lo onde vivia, no majestoso apartamento da sua dona, para passarem juntos o resto do dia. Mas Jiló o demoveu do honroso convite.
- Eu te agradeço, até comovido, porque prefiro é mesmo a liberdade que tenho de ir e vir pelas ruas, becos e vielas desta cidade.
Naquele momento, passava perto uma vira-lata jeitosinha, no cio, acompanhada de alguns cachorros, estimulando o apetite sexual de Jiló.
- Tchau, Damom, que também vou nessa...!
- Au! au! au! au! E sumiu na primeira esquina, com o rabinho empinado balançando, feliz da vida.