Mensagem

O velho abriu a porta de seu casebre e saiu para outra manhã fria de outubro na Lapônia sueca. Não vivia junto ao povoado. Aprendera que quanto menos fosse visto por aquela gente, melhor. Apanhou um balde junto a uma pilastra da varanda e caminhou durante longos minutos até a nascente de um rio sob o grasnar familiar dos corvos empoleirados em árvores desfolhadas. Curvou-se com a lentidão que a idade exigia para encher o recipiente e refez o caminho de volta para casa.
     
Com a porta fechada, acendeu o fogo à lenha. Enquanto a água esquentava, procurou entre os frascos de uma prateleira até encontrar o que desejava. Destampou-o. Um cheiro forte de ervas colhidas havia muito impregnou o ar no pequeno cômodo. Pegou um pouco da água com uma tigela e despejou nela toda a erva do frasco. Com um pilão, desmanchou as folhas até conseguir uma pasta esverdeada e consistente, aí voltou a sair do casebre.
     
Após certificar-se de não haver mesmo mais ninguém por perto, o vellho observou gravemente o céu, onde um bando de corvos voava em círculos. Com um silvo, chamou a atenção das aves e logo uma delas o atendia e pousava indócil em seu antebraço. O velho então sujou a mão com a pasta verde e espalhou-a sobre as penas do animal. Sussurrou alguma coisa e imediatamente o corvo alçou vôo para o sul.
     
A ave cruzou o céu, implacável. Sobrevoou vilas escandinavas onde, devido à sua presença, pessoas se acamaram com os males do frio do inverno que ainda se achegava. Febre e pneumonia se alastraram como a neve nos ventos polares.

Na Bretanha e na Irlanda as tempestades vieram mais cedo. O corvo precisou ser paciente, voar de uma ruína a outra, abrigando-se da chuva forte, e esperar pelos raros momentos de garoa para prosseguir sem que a mistura esverdeada fosse completamente lavada de suas penas.
     
Atravessar o Atlântico foi mais fácil. Livre de fome ou sede, o corvo avançou em linha reta em direção à costa nordeste do Brasil. Sabia que a vida marinha apodrecia sob as águas durante sua passagem, mas não teve chance de assistir ao espetáculo.
     
Sobre o sertão brasileiro a ausência de vida foi uma trégua momentânea. Apesar disso, os moradores das esparsas casas de pau-a-pique teriam colheitas ainda mais escassas naquele ano.
     
De diferentes maneiras, cada estado e cidade por onde o corvo passou foi amaldiçoado por sua presença.
     
São Paulo viveu um dia de caos. Não havia energia na cidade. Sem metrô ou semáforos, o número de acidentes nas avenidas sobrecarregadas tornou quase impossível ir de um lugar a outro sem ser engolido por algum congestionamento.

Ali, na metrópole, o corvo finalmente concluiu sua jornada. O mensageiro das terras do norte que atravessara o oceano envenenando tudo em seu caminho foi recebido por aquele a quem fora destinado: um sacerdote da velha ordem. Um pouco do ungüento seco grudado às suas penas seria suficiente para que o homem soubesse como impedir a praga profetizada de se propagar e apressar o fim de nossa era.
     
Com algumas de suas plumas arrancadas, o corvo se recolheu a um santuário construído discretamente entre as mansões de uma vizinhança nobre da cidade. Jamais voaria de volta para casa — bastavam a cada lugar as desgraças que conseguiam sem sua ajuda.
     
No entanto, as árvores dali o deprimiam. Havia folhas demais nelas. Atraía-o um totem de Odin, na forma de um corvo caolho, que à gente comum era nada além de um adorno exótico no telhado de uma casa. O olho faltando ao deus nórdico na estátua de pedra era uma cavidade profunda. O corvo sucumbiu à tentação de fazer dela seu túmulo.
Diógenes Daniel
Enviado por Diógenes Daniel em 21/09/2010
Reeditado em 28/06/2013
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