O Silêncio dos Pássaros

1º de janeiro, cidade de Porto Esperança.

No silêncio profundo do alvorecer, ela aguardava que esse dia trouxesse a paz tão almejada por todos. O sol, compartilhando seus anseios, matizou o céu e fez nascer um belo dia. Toda a natureza que a rodeava, vinha sendo alvo de predadores sociais: seus próprios habitantes. Na agitação frenética em busca de valores efêmeros, sacrificavam a tudo e a todos, num círculo vicioso altamente destrutivo.O sol brincou na face rosada de Carol, fazendo-a despertar. Abrindo seus lindos olhos e um doce sorriso para Tartine, seu cãozinho, levantou-se de um salto. O dia iniciava-se num curso de preguiça! Como a propósito, o feriado esticava suas horas ao máximo, para que as pessoas aproveitassem o céu azul, a praia e o saudável sol da manhã. Dia da Confraternização Universal; mas ninguém se lembrava do verdadeiro significado dessa data. Era apenas mais um feriado, frustrando assim, a expectativa do amanhecer. Só a natureza aguardava uma celebração, mas nada acontecia. Mãe zelosa, que se desdobrava para abrigar toda criação, sentia-se magoada ao ver recusados os presentes que ninguém conseguia enxergar. Homens insensíveis, visão seduzida pela banalização de princípios, confirmavam a cegueira ética, moral e social. Seria mais um dia como outro qualquer, não fosse por um fato que modificaria toda a sua rotina. De início, curioso, depois, intrigante, e por fim, assustador! Os pássaros, aos bandos e silentes, estavam abandonando a cidade! Um vôo determinado rumo à mata Atlântica, ao longo do litoral, sobras da ambição desmedida naquela região de exploração imobiliária. Não se via um só pássaro no céu, e aqueles que estavam aprisionados em gaiolas, viveiros, zoológico ou casas, tiveram que ser soltos. Agitados, quase intimando que se abrissem as portas dos cativeiros, já em liberdade, voavam para junto dos demais, a caminho da mata. A cidade parou, perplexa, pois nunca tinha visto nada igual. Ao final da tarde, via-se um ou outro pássaro retardatário a cruzar o céu, em silêncio total, como que convocados para uma reunião nas copas das poucas árvores que restaram na mata Atlântica.

Seguiram para lá também perus, patos, gansos, emas, galos, galinhas, araras vermelhas e azuis, e as clareiras, que eram muitas, ficaram repletas de aves aguardando o que estaria por acontecer.

Os noticiários especulativos, com hipóteses, uma mais absurda que a outra, provocavam sensacionalismo, aumentando a expectativa em toda a região. Por fim, entrevistaram em rede televisiva, os ornitólogos, que referiram-se à questões como o desmatamento, uso indiscriminado dos defensivos agrícolas, poluição do mar e dos rios, matando centenas de milhares de peixes, do ar, com emissão excessiva de gases, e com tudo isso, comprometendo o ecossistema e a vida do planeta. Responderam a tudo o que já sabemos teoricamente e não fazemos. Só não conseguiam entender a decisão dos pássaros de saírem da cidade, todos de uma só vez, deixando margens de dúvidas nos telespectadores, que esperavam curiosos e ansiosos por uma resposta. Não, não sabiam o motivo, mas iriam investigar esse assunto. A população foi dormir tarde nessa noite.

Madrugada do dia 2 de janeiro. Porto Esperança apressava-se em amanhecer, curiosa com a reação das pessoas. O prefeito, aproveitando a oportunidade, convocou uma reunião extraordinária com seus assessores, tentando encontrar uma resposta e ser o primeiro a dar explicações ao povo. Apenas iniciaram a discussão, e ouviu-se um alarido vindo da rua. Todos correram às janelas. Ficaram estarrecidos com o que viram: também os animais estavam abandonando a cidade! Se a saída dos pássaros e das outras aves foi assustadora, a dos animais de todas as espécies, que seguiam para a mesma mata, deixou a população boquiaberta. Os peixes afastaram-se para alto-mar, e nos rios, subiram para as nascentes. Até Tartine, o cãozinho de Carol, também se foi. Elefantes, camelos, girafas, tigres, leões... Aos poucos, o zoológico foi se tornando deserto com a saída pacífica e silenciosa dos animais cativos, como que orientados por uma força maior, sem oferecer risco a ninguém: apenas curiosidade e perplexidade! Lá se foram eles! Carol adoeceu, querendo seu cão de volta, e a população agora se perguntava:

— O que está acontecendo?

A cidade também estava silenciosa, pensativa, pálida de cantos e cores, e o temor já se fazia presente no coração das pessoas. Mais e mais crianças estavam adoecendo pela falta dos seus bichinhos. O pânico tomava conta de todos, que sentiam-se abandonados e entregues si mesmos. Do êxodo dos pássaros e animais, veio o medo de que algo trágico fosse acontecer. Essa hipótese era válida! Ao pressentirem algum perigo, os animais imediatamente procuram abrigo, pois toda fauna conhece bem o meio em que vive e pode traduzir sinais ameaçadores. Nós, seres humanos, já perdemos essa percepção, haja vista, a devastação a que estamos levando o planeta em que vivemos, desatentos ao perigo que isso representa. Agora, as notícias ultrapassavam fronteiras, levando curiosidade e incredulidade além dos limites de Porto Esperança. O mundo todo voltou sua atenção para esse local, antes desconhecido, aumentando ainda mais o pânico e a confusão. Repórteres vinham de vários países para dar cobertura ao assunto, que era inédito. Nunca se viu nada parecido. Mas o que iria acontecer, afinal? Um vulcão talvez, entraria em atividade? Não, os vulcanólogos descartaram definitivamente essa hipótese. Tsunami? Isso também estava fora de questão, afirmaram peritos no assunto. Nem furacões, nem tempestades, nem terremotos, nada ameaçava Porto Esperança. Até meteorologistas e também astrônomos, afirmavam que nenhum perigo havia sido detectado. Algo mais sério estava ocorrendo na cidade, e mesmo os químicos, físicos, e até os médicos veterinários estavam aturdidos e confusos com a situação. A cidade estava um caos. Parentes telefonando às suas famílias, desesperados pedindo que se retirassem dali o quanto antes. Comércio parado e fechando suas portas, bancos ameaçados de paralisação por falta de funcionários. A decisão era geral: evacuar a cidade! Algo de muito grave aconteceria ali, com certeza! Até as gaivotas se foram, deixando a dança dos mastros dos barcos atracados, sem música, inquietos. As autoridades não impediam que os habitantes fugissem, tendo inclusive retirado suas próprias famílias de Porto Esperança, temendo uma catástrofe. Somente organizavam a saída, procurando evitar confusão nas estradas, que a esta altura dos acontecimentos, já estavam superlotadas. Uns assustados, outros curiosos, alguns chorando e outros rezando, ou amparando os idosos. Carregavam as crianças, cobertores, alimentos, e sem saber o que teriam de enfrentar, seguiam sem rumo, em busca de lugar seguro. O exército foi convocado e cercou a cidade, assegurando que ninguém mais entraria, para não atrapalhar as investigações que continuavam com equipes especializadas. Vasculhando a cidade, um fato chamou a atenção das equipes : um homem havia permanecido em sua casa, alheio à tudo o que acontecia à sua volta! E foi para lá que se dirigiram, no intuito de retirá-lo, até que fosse desvendado aquele enigma. Depararam com uma figura simpática, fisionomia tranqüila, quase sorridente. A pergunta não poderia ser outra :

— Por que o senhor não abandonou a cidade? perguntou um deles. Antes que o velho respondesse, ficaram atônitos, ao verem uma pomba branca, graciosa e elegante, que num vôo rasante aninhou-se no galho de uma árvore em seu quintal, atenta àquela movimentação.

— Mas, não pode ser! Como? Todos perguntavam ao mesmo tempo, incrédulos. — Por que só ela permaneceu, se todos os outros pássaros se foram? — Calma, disse um deles. Uma pergunta de cada vez!

— Por que essa pomba que agora nos observa, está tão serena, tranqüila? perguntou um.

— O que está havendo? Por Deus, se souber, fale! disse outro.

— A cidade precisa voltar à normalidade. Está deserta, abandonada e as pessoas aflitas, as crianças adoecendo... emendou um terceiro.

— O que o senhor sabe, que nós não sabemos? Vamos, fale, homem! argumentou um outro

— Embora eu também nunca tenha visto coisa assim, respondeu o velho, o perigo que existe é de outra natureza, eu lhes garanto, e a pomba é o símbolo do que vou contar-lhes agora.

— Meu nome é Caiubi. Já estou com oitenta anos, e há quarenta moro aqui em Porto Esperança, e de fato nunca vi nada igual. Sabia que um dia, do jeito que a população desrespeita a tudo e à todos, aconteceria o fenômeno chamado “O Silêncio dos Pássaros”! Nesse momento, pediu que não fosse interrompido, e continuou:

— Sou descendente de uma tribo indígena, cujo nome também os brancos estão apagando da historia. Convivi na floresta com meus pais até mais ou menos vinte anos de idade. Eu era apenas um garoto, quando ouvi algo surpreendente. Contada pela anciã da tribo, uma lenda que me pareceu comum, mas não era como uma outra lenda qualquer.

— Lembro-me como se fosse hoje: lua cheia, ao redor de uma pequena fogueira, lá estava ela, cabeça branquinha do tempo e das baforadas de seu cachimbo, a contar estórias que encantavam a todos. Foi em um momento mágico como esse, olhos fixos no fogo, olhar perdido no tempo, que anunciou solenemente: —vou contar uma lenda! Ouvi quando era menina, também aconchegada junto à uma fogueira, e era o pajé quem contava: “— A floresta é mágica e tem vida. Todas as tribos que habitam as matas, são parte dela, assim como tudo o que ela abriga e cuida. Por ser mágica, tem mensageiros que não são visíveis para nós. Eles estão em toda parte, comunicando-se de várias maneiras. Vocês já ouviram o canto do uirapuru? Então, é ele, na ordem dos vigilantes, quem dá o alerta. Seu canto é belo, mas anuncia que algo ou alguém está tentando quebrar a harmonia e as leis naturais, a vida da floresta. Árvores que podem curar sendo derrubadas, animais sendo mortos apenas pelo prazer do esporte e não para consumo, peixes pescados com técnicas dos cipós, que matam em grande quantidade, muito mais do que a sobrevivência exige. Brigas entre as tribos por causa de terras, trazendo dor para as famílias Nada disso é imperioso, porque a floresta cuida de todos. É preciso respeitá-la, senão ela ordena: “O Silêncio dos pássaros”. É o sinal que provoca o fenômeno mais triste que já vi! completou. Os pássaros, mensageiros alados, chamam todo tipo de vida ao redor das tribos e ordenam que se afastem silenciosas, deixando-as em uma ilha de isolamento total. E aí é só tristeza, porque assim não há vida para nós. Nem a chuva vem nos fazer companhia, e choramos ao ver um arco-íris ao longe, muito longe... As crianças adoecem, os idosos, que têm doces recordações de cantos das matas, também adoecem. É uma angústia contagiante.”

— E o que é preciso para desfazer esse silêncio? perguntou um pesquisador, receoso, pois a lenda estava se repetindo.

— Só depois de algum tempo, quando os índios das tribos compreenderam profundamente, que a natureza é mãe fiel e justa, provendo os rios com peixes, as matas com plantas que são remédios, abundância nas chuvas, que a tudo vivifica, respondeu o velho Caiubi, reuniram as crianças de todas as tribos, que juntamente com os adultos assumiram o compromisso de respeitar para sempre todas as leis da floresta. O mensageiro levou a resposta do pacto, que imediatamente foi aceito pela floresta mágica. O velho Pajé contou que um pequeno pássaro, esteve o tempo todo ouvindo tudo, muito atento. Após a reunião das crianças, voou sumindo no céu, em direção à mata. E a anciã, com lágrimas nos olhos completou: As crianças ficaram curadas e os velhos receberam de volta os sons das músicas das matas. A chuva caiu mansamente, formando um lindo arco-íris. Os pássaros retornaram trazendo a alegria, acabando de vez com o triste castigo. O equilíbrio voltou a reinar, restabelecendo-se a paz.

— Então nossas crianças, que já adoeceram, também vão sarar rapidamente? questionaram assustados os pesquisadores, que a tudo ouviram.

— Sim, devido à sensibilidade que têm, manifestaram a doença, porém, estabelecendo-se o pacto, elas tornam-se saudáveis e alegres novamente! respondeu o ancião.

— Devemos fazer também o pacto? perguntou um deles.

O velho Caiubi apenas movimentou a cabeça, onde fios brancos demarcavam tempo e sabedoria, num solene sinal afirmativo!

A ave mensageira, que a tudo observava, ainda descansava tranquilamente no galho da árvore. Nesse instante, voou silenciosa para aninhar-se agora no ombro do índio.

— Céus, por que essa pomba voou justamente agora? Por que pousou em seu ombro? meio aturdidos, os pesquisadores perguntaram.

Com a mesma expressão de tranqüilidade e esboçando leve sorriso, Caiubi respondeu:

— Ela é a mensageira, e aguarda a decisão dos homens, para em seguida levar o sinal à mata . Assim, tudo retornará ao seu equilíbrio, tendo os homens uma nova consciência em relação à natureza e à vida.

Muito agitados, todos precipitaram-se para tomar decisões urgentes...

— Vamos reunir todas as crianças, que são muitas! Vamos! Imediatamente! Vamos, vamos buscá-las onde estiverem!

Então, chamaram de volta todas elas e os adultos também, reunindo-os no estádio esportivo da cidade. Compareceram mais de uma centena de crianças, que juntamente com toda população sentaram-se no gramado em total silêncio. O descendente indígena falava com as lembranças de um menino, a respeito de tudo o que ouviu na lenda da anciã.

— A partir disso, criando uma nova consciência ecológica, poderemos interagir em equilíbrio com a natureza. finalizou o índio.

— Crianças e adultos, vocês assumirão esse compromisso? Indagou Caiubi. Como se fosse combinado, uma só voz ecoou pelo estádio:

— SIM! Ainda ecoava o SIM, quando a linda pomba branca, elegante, num vôo rasante, veio anunciar que foi aceito o pacto. Trouxe com ela , em revoada, numa mistura de cantos e cores, pássaros lindos, que ficaram sobrevoando o estádio. Com olhos emocionados pela cena, todos gravaram profundamente a lição em seus corações. A chuva fina caía mansamente, e um lindo arco íris se formava. Os animais retornaram calmos, a não ser Tartine, que vinha em desabalada corrida ao encontro de Carol, que o esperava com os braços abertos, olhos úmidos e coração palpitante de felicidade!

Porto Esperança, marco de um novo paradigma.

FIM