Pudim de chocolate ou Liquido lunar
'Acorda guri, vamos!'
'Hum ah... Tá bem, não precisa derrubar a porta!'
'Que bagunça, que frio!'
O moço levantou com o corpo quente, suado, apesar da temperatura baixa. Esfregou os olhos tentando recordar o que vivera:
Sentado em uma pedra, próximo a uma floresta, ele esperava. Lia, um livro de capa verde. O quê estaria esperando?
'Bom dia bela adormecida! Achei que não fosses mais levantar... Isso, segure a xícara'.
A manhã estava gelada. Mesmo assim os pássaros cantavam com alegria. Com alegria? Sempre gostara de pássaros. O padrasto, notando isso, certa vez dera-lhe um canário azul, em uma gaiola. Preso em uma gaiola cheia de grades. Ele soltou o bichinho, que sem saber para onde voar, foi parar dentro da boca do cachorro do vizinho. Restaram algumas penas. Apesar disso, continuou a gostar de aves, todavia passou a odiar seu padrasto.
'Ficas lendo teus livros até tarde, depois não há sono suficiente. Tens o dia todo para ler! Isso... vais rindo'.
Ela não entendia. Não entendia que à noite tudo era diferente. A noite chama, e seu convite é a lua. De noite é possível ver o que ao dia não dá para enxergar. A noite mostra tudo. Ela revela segredos.
'Eu gosto da noite'.
'Então procure um trabalho em que fique acordado de noite, isso!'.
Enquanto esperava na pedra, a tarde se despedia, lentamente, como se fosse sentir saudade. A floresta ia ficando mais sombria. Não havia lua. A lua desaparecera do seu lugar...
Já era noite e a lua fugira.
'Vou tomar banho'.
'Isso vais. Depois seque o piso do banheiro, ta? Não esqueça, não esqueça.'
Tudo estava diferente, novo. Diferentemente novo. O mundo tinha recém nascido. Viscoso e quente. O rapaz nem se reconhecia neste mundo.
A água escorria pelo corpo, quente. Água estranhamente viva, brilhante. A noite havia mudado tudo. O quê pode fazer uma noite sem lua?
Ele aguardava receoso, alguma coisa aconteceria. Algo muito importante. Ele tinha medo, mas no fundo sabia que tudo correria bem, como se já tivesse vivido aquilo.
Vestiu um agasalho grosso e abriu a porta da frente, dirigindo-se ao super-mercado. Deveria comprar o jornal do dia. Por quê não fazem também o jornal da noite? Provavelmente porque aumentariam mais os gastos, as pessoas que desejam estar bem informadas teriam que comprar dois jornais por dia, ao invés de um. Assim a noite permanece um mistério. Todos dormem e ignoram o que se passa durante a noite. Todos dormem.
A moça entregou-lhe o troco: o contato de sua mão com as moedas frias, despertou-lhe para o momento. Um momento cheio de si. Transbordando em dentes brancos, do sorriso da caixa
operadora, tão frio quanto as moedas.
Saiu caminhando, ao dobrar a rua quase esqueceu para onde deveria ir. Talvez fosse melhor esquecer.
Seco e macio era o jornal que o jovem carregava: mortes, acidentes, artistas de cinema, corrupção, escolas, talvez até um concerto no final de semana. O mundo era igual. Seria bom não lembrar.
Esfregou os olhos tentando recordar. Só sabia que o livro tinha capa verde e sentia a cada instante, o perigo a rondar-lhe o olhar . Algo iria acontecer. O ar se exaltava, como quando a bailarina se prepara para o grande e difícil salto.
'Finalmente chegaste! Isso, me passe o caderno de receitas, ah!'.
Precisava concluir um trabalho, mas como, com essa dúvida enrolada em seu pensamento?
Largou as moedas no armário, como se desvencilhasse de um enorme peso.
'Que bom que iniciarás as atividades semana que vem! Isso mesmo, este emprego te revitalizará!'
As pobres flores já não aguentavam a vida dentro do vaso. Entre as folhas vi-se uma escuridão só. A morte aguardava-as, nas folhas mais baixas.
'Estou contente também'.
A floresta silenciou. A leitura se prologava, mas não o absolvia completamente. O vento deslizava pela grama, como que avisando. Devia ser meia-noite passada e a lua sumira. Ele olhava para os lados, atento.
A escuridão crescente, parecia engolir tudo, quanto mais densa se tornava.
Ficou frio, muito frio...
A sensação de perigo cresceu a ponto de se tornar uma certeza. O rapaz olhou para frente, e num grito desesperado, saltou para longe de onde estava. Olha para trás e vê uma uma enorme serpente, aninhada atrás da pedra. Negra, horrivelmente negra, com um círculo claro nas escamas, ela
projetou-se em um bote mortal. De longe ele podia sentir ainda o frio que emanava da víbora. Saiu correndo para casa e no meio da angústia, percebeu que deixara o livro na pedra.
'Tudo vai dar certo, não se preocupe, és um menino tão esperto, aprendes rápido!
Meu filhinho querido!'.
A noite estava sem lua, tão escura! O círculo claro parecia brilhar, nas escamas da cobra: a lua estava na serpente! Ela era a serpente, sim!
A lua era a cobra, e ela vinha para abrir os portais da noite. Ela o iniciaria à noite. Isso era o que ele esperava, sentado na pedra. A lua descera em forma de cobra. No último instante, porém, o menino ficou com medo e fugiu. Fugiu da noite. Refugiou-se na luz, onde ele sabia quem ele era: não aceitou a transformação. O veneno seria doce como pudim, já estava quase a sentir o sabor. Ele adorava pudim, mas rejeitou o líquido lunar.
Correu velozmente, tão rápido que despertou suado. Iluminado pelo dia. Dia claro repleto de seiva, molhado e vivo.
'Olhe, a receita deste domingo é de pudim de chocolate!'.
Deixou-se deitar em um divã. Abandonou-se.
Como se sentia uma bailarina, após a grande apresentação?
Lá ficara o livro, a lua jamais voltará...
Sentindo a saliva na boca, respirando insistentemente, pensava: 'seria bom não lembrar'.
'Gosto de pudim', respondeu à mãe.
'Que bom! A vida é gostosa como pudim he, he, he! Farei um para aproveitarmos, isso mesmo!'.
Jamais voltará...