O Limite da Guerra - Frente de Batalha
O Limite da Guerra
Frente de Batalha
Ano do nosso Senhor de 1568. Os Países Baixos pertenciam ao império espanhol, mas o Conselho de Regência de Filipe II rompeu com os nobres locais, que foram excluídos do governo. Altos impostos, desemprego e temores da perseguição católica contra os calvinistas criaram uma perigosa oposição. Os homens de confiança do rei foram chamados. O temível 3º Duque de Alba fora convocado para esmagar o levante. Guilherme I de Orange, o taciturno, governador das províncias da Holanda, Zelândia e Utrecht, tentou afastar o altamente impopular Duque de Alba de Bruxelas. Ele não via nisto um ato de traição para com Filipe II. Ambos os nobres acreditavam lutar pelo lado certo.
Porém, junto ao Duque de Alba, havia um oficial, um nobre, Dom João Afonso Esteves de Sevilha, juntamente com seu fiel amigo, mais que irmão, o soldado Victor Alonzo, e isso era um sinal de esperança. Pois, por mais que o Duque significasse a morte aos revoltosos, a presença de Esteves garantiria a certeza de justiça, pois ele estava começando a ser conhecido como “O Guerreiro Segundo o Coração de Deus”.
O lugar parecia o fim do mundo. O sol mostrava-se incapaz de esquentar ou secar aquela chuva que molhava a carne dos soldados de forma contínua. Guilherme estava quase derrotado, faltava pouco. E o duque de Alba havia incumbido ao jovem oficial Esteves, o grande arquiteto e estrategista de todas as investidas até então, para dar o golpe final, o que poderia significar que a vitória era certa, porém sem mortes desnecessárias.
A noite estava para se levantar, mas era certo que a lua, coberta pelas nuvens, mal daria a sua luz. O canhão explodia os seus últimos disparos do dia em direção às trincheiras espanholas, tentando destroçar as proteções de madeira. As colunas de fumaça levantavam-se de ambos os lados. Uma centena de feridos era retirada do campo. Já estava para se completar quase dois meses de batalha. Os mestres de campo, os soldados, arcabuzeiros, todos aguardavam qual seria a nova ação a ser tomada. O duque se mostrava satisfeito com o rápido desenrolar da batalha, a vitória estava se mostrando cada vez mais próxima e rápida.
Os canhões das trincheiras disparavam de volta ao forte de Bruxelas.
– Rápido! – gritavam eles enquanto recarregavam os canhões. – Vamos mostrar a eles que a noite será longa!
A chuva caía pesadamente naquela terra, imperando o seu som, tentando abafar a batalha. Explosões se escutavam por toda a parte.
Um grupo de soldados reuniu-se sob a pesada chuva, não parecendo se importar com a batalha ao seu redor. Esteves aproximou-se destes. Entre eles, encontrava-se Victor, o líder do grupo.
– Soldados, – começou a falar Esteves de forma firme, era a última cartada. – vocês foram selecionados para essa tarefa por serem os melhores, a elite. Todos sabem o que fazer. O sucesso dessa missão é a chave para uma vitória imediata. Quando estiverem em posição, dêem o sinal, então me juntarei a vocês.
Os soldados rapidamente entenderam, dispersando-se enquanto Esteves retornava para o seu posto de batalha.
– Separem o máximo possível de canhões sem deixar de oferecer uma ofensiva! – ordenou apontando para a porta de entrada do forte, fortemente cerrada, escorada por toras de madeira. – Quero sacas de óleo e pólvora penduradas naquele portão! Cubram os sentinelas de disparos de mosquete e flechas para que alguém possa chegar até lá!
Os disparos se estenderam. Esteves deu ordem para que os mosquetes mirassem em qualquer adversário que viesse a aparecer, também dando cobertura aos soldados de elite, caso fossem descobertos.
Os soldados se esgueiraram pela lama e a chuva soturnamente. Victor olhou pela escuridão que se iniciava, tentando evitar a cegueira noturna que sempre se impunha nesse horário. Estavam todos prontos. Fitaram o forte.
A água caía de forma abundante.
Os disparos deram uma rápida trégua, o início da escuridão se estabeleceu, nesse momento, tudo que podia se enxergar tornava-se confuso.
O silêncio imperou, rompido apenas pela chuva.
Victor ergueu o punho direito, apontando apenas com um gesto para que avançassem.
Todos partiram de imediato, Victor seguia à frente em total silêncio. As poças de lama tentavam denunciá-los, mas sequer eram percebidos. Os soldados do forte nada enxergaram, Bruxelas estava relativamente desprotegida. Os soldados espanhóis seguiram até os seus muros, encostando-se e mesclando-se à sua imagem da parede cinza. Logo os soldados seriam notados, precisavam ser rápidos. Correram pelo muro, tangenciando os seus limites. Havia uma brecha na muralha, estudada anteriormente. O primeiro soldado invadiu pela abertura, sendo seguida pelos demais, Victor foi o último. Do outro lado, cada soldado mantinha sua posição, apontando os seus mosquetes, cobrindo cada possível torre, esquina e janela que pudesse oferecer perigo.
Eles continuavam a invadir, seguindo para o alvo.
Dentro de uma casa, no alto de uma torre que possibilitava total visualização das muralhas e das trincheiras inimigas, alheio à eficiente invasão, ouvia-se apenas a respiração ofegante de um dos soldados do forte. Aquele silêncio após os primeiros minutos da noite sempre era ensurdecedor e abafado. Suas vistas procuravam pelo soldado inimigo, escondido entre as trincheiras, a chuva atrapalhava qualquer visualização, sua visão ainda não havia se acostumado com a noite que se iniciava, maldita cegueira noturna! Tudo era cinza! Foi quando ele percebeu alguns vultos correndo rapidamente. Não era possível! Ele fitou o olhar, fitou um grupo de soldados espanhóis que seguia para a casa de armas e pólvoras.
Sua respiração parou.
Um disparo cortou o ar. O grupo rapidamente se protegeu. Nova batalha se iniciou entre as trincheiras e o forte, com diversos disparos ao ermo, assustados com a retomada da batalha de forma tão repentina. Disparos de canhões foram retomados.
Um disparo do grupo de Victor partiu em direção ao sentinela, este caiu morto. Outro disparo se estendeu contra o grupo de invasores, os espanhóis se protegeram. Era mais um sentinela que havia percebido a ação e agora se mostrava tomado pela batidas do seu coração, seu peito parecia que ia explodir, haviam sido invadidos, estavam pertos da derrota. Apanhou outro mosquete, pronto a disparar.
Os tiros de canhões cortavam o céu entre o forte de Bruxelas e as trincheiras espanholas.
Um tracejo de fogo riscou o ar em direção ao grupo espanhol mais uma vez. Victor olhou para o seu grupo, ergueu o punho, apontando em seguida para o outro lado da rua. Um dos soldados rapidamente o atendeu. O único sentinela demoraria em fazer um novo disparo, e os outros soldados ainda não o haviam captado. Esgueirou-se rapidamente para o outro lado da rua.
Victor saltou de seu refúgio, o soldado do forte assustou-se, tentando fazer mira, adiantou-se à frente para melhor fazê-lo, expôs-se.
Recebeu um tiro em sua testa do soldado do outro lado da rua.
Os disparos de canhões ainda eram deflagrados. Alguns tiros de mosquete eram sentidos.
Os invasores continuaram, a cegueira noturna já havia terminado. Logo, mais alguns soldados perceberiam em quem aqueles homens estavam atirando. Cruzaram a rua, arrobaram uma casa, o depósito de pólvoras e armas estava próxima a essa moradia. Encontraram alguns habitantes dentro da residência, estes se encolheram de medo, os soldados passaram por eles em total indiferença.
– Fujam. – ordenou Victor, sendo atendido pela família de imediato.
Atravessaram a casa, traspassaram uma janela, fitaram a casa de armas e pólvora do outro lado da rua. Victor preparou a bomba e o pavio, atravessou a rua rapidamente. Um disparo cortou o ar, passando rente à sua cabeça, queimando o seu cabelo, ele ignorou o ocorrido. Os soldados espanhóis localizaram de onde havia vindo o disparo. Localizaram três soldados do forte correndo em desesperada carreira, vindo de encontro. O mais adiante recebeu um disparo no peito.
Victor ascendeu o pavio.
Os outros dois continuaram vindo em direção aos espanhóis, ignorando o amigo ferido, sabiam que explodiriam os seus armamentos, deixando-os indefesos. Dois disparos se seguiram, morreram, cada um com um buraco na testa, seus corpos caíram inertes.
Victor rapidamente recuou, os soldados espanhóis o acompanharam rapidamente, afastando-se do local da explosão.
Mais homens, soldados do forte, despontaram no final da rua, em total desespero, uns fugindo, outros tentando alcançar a bomba.
A explosão que se seguiu foi incomparável. Uma coluna de fogo se levantou ao céu, antecedido de um forte estampido, seco, um som ensurdecedor, seguido por um deslocamento de ar, jogando destroços da casa de armas e das casas vizinhas para todos os lados.
Por pouco, os soldados espanhóis não foram engolidos pelas chamas. A explosão foi ouvida por toda a cidade. Um fogo de grandes proporções se estabeleceu. Se não fosse a pesada chuva que caía, a cidade logo estaria coberta em chamas. O número de soldados feridos foi considerável. Gemidos de dor começaram a ser ouvidos.
– Eles estão em posição. – concluiu Esteves enquanto via uma nuvem de fogo levantando-se contra a precipitação. – Apontem os canhões para o portão!
Um relâmpago cortou o céu.
Os soldados do forte mostraram-se completamente desnorteados. Não havia mais defesa a ser imposta contra os espanhóis. Era impossível ignorar os gemidos dos soldados, amigos, feridos. Os disparos dos canhões foram imediatos. Ninguém revidou o ataque, não havia como. Foi quase quinze disparos em menos de meio minuto. Parte do portão foi lançado ao céu, a outra invadiu o forte. O tércio espanhol preparou a investida enquanto os sentinelas se mostravam ainda mais atordoados.
Dentro da sala de inteligência do forte de Bruxelas, Guilherme e seus companheiros, Conde de Egmont e o Conde de Horne, se digladiavam em desespero.
– Eles estão destruindo o forte! – gritou Guilherme observando o mapa do forte e da cidade. – Os espanhóis estão abrindo caminho!
A nuvem vermelha de fogo ainda tinha os seus resquícios. Foi quando se ouviu um novo tremor. Os soldados que serviriam de proteção para a cúpula deste governo mostravam-se sem qualquer orientação. O conde Egmont se adiantou.
– Estamos desnorteados, destruíram os nossos portões...
– O ataque, – era o Conde Horne, analisando o mapa de forma pesarosa. – o ataque deles foi muito bem premeditado. Com a explosão, nos deixaram indefesos e sem rumo, foi fácil atacar o portão.
– O que nós vamos fazer? – era Guilherme. – O que nós vamos fazer?!?
Foi quando fitou mais um homem adentrando calmamente à sala, Guilherme o apontou e permaneceu com o seu dedo em riste.
– Eu não sei por que o maldito Cardeal enviou vocês aqui! – disse com uma raiva descontrolada. – Só pode ter sido para ficar aqui sem fazer nada!
Guilherme mal percebeu quando o aço frio da espada daquele homem tocou o seu pescoço.
Guilherme silenciou.
O homem embainhou a sua espada e deu meia volta, foi então que uma dezena de guerreiros, além daqueles que estavam presentes para fazer a guarda da cúpula, camuflados entre as sombras, saltaram de seus esconderijos e seguiram o estranho cavaleiro.
O exército espanhol continuava avançando, ferindo os demais soldados. Esteves avançou rapidamente em direção ao posto de comando, deixando os seus demais comandados para trás. O forte e, consequentemente, a cidade havia sido invadida, agora o que importava era justo o falido soberano.
Ele atravessou as ruas, os habitantes mostravam-se em total desespero. Mas a ordem de Esteves era para que não tocassem qualquer cidadão que não portasse uma arma. Ele continuou correndo com a sua espada em punho, cortando os becos, até que fitou a casa do governo.
Os soldados de elite, liderados por Victor, o aguardavam.
– Estávamos lhe esperando. – adiantou Victor.
– Muito bem, – respondeu Esteves colocando a mão em seu ombro. – vamos terminar esta batalha, meu amigo.
Dentro da casa, Guilherme ainda olhava para o mapa. O som da invasão ainda estava distante, talvez ainda desse para fugir. Foi quando a porta se rompeu e foi possível apenas ver uma dezena de soldados sendo jogados pela passagem, era Esteves, Victor e seu grupo.
Os soldados do forte tentaram reagir, mas foram rapidamente derrotados. Esteves avançou contra os três arquitetos daquela conspiração, dominando-os em seguida.
– Piedade, – era Guilherme. – eu imploro! Eu estava certo em querer expulsar o duque de Alba e seu exército...
– Mas depende apenas de você, meu caro. – respondeu Esteves, agora com Victor entrelaçando as suas mãos para levá-lo como cativo. – Renda-se incondicionalmente...
Esteves sentiu algo de errado, puxando sua pistola e atirando contra o canto escuro da sala, um corpo caiu de súbito, surgindo de meio às sombras. Victor, acompanhados dos demais, sacou a sua espada, impressionado com a capacidade do inimigo em se camuflar. Diversos soldados saltaram no campo de batalha, inclusive o estranho homem ao qual Guilherme havia lhe cobrado uma atitude. O grupo de soldados espanhóis se viu cercado, reagiram imediatamente. Vários disparos foram deflagrados, sacando as suas espadas em seguida.
O estranho homem avançou contra Esteves, os demais avançaram contra Victor e os outros, ferindo alguns mortalmente. A batalha acirrou-se. O estranho sacou sua espada em uma velocidade surpreendente, Esteves defendeu-se, golpeando com a sua lâmina em seguida. O estranho ignorou o golpe, avançando novamente, Esteves se viu obrigado a se esquivar. Mais um golpe sobreveio contra o espanhol, o estranho era muito rápido, com uma técnica de golpes invejável. Esteves bloqueou o ataque, mas não impediu que recebesse um soco em rosto, desnorteando-o.
O nobre recobrou-se, se afastando rapidamente, o estranho veio sobre ele, sem dar tempo para respirar. Esteves reagiu, mais por instinto do que por técnica. A sua espada cravou-se na barriga do adversário. Por um momento, ele acreditou que havia decidido a batalha, mas qual não foi a surpresa ao ver o estranho gargalhar, dar-lhe outro soco e tentar atacá-lo com o seu sabre.
O jovem Esteves desviou a trajetória do ataque da a lâmina adversária, ainda não acreditando na resistência daquele “ser”, ficando a ponta da arma entre as frestas das pedras do chão. Uma nova sequência de socos partiu da “criatura”, arremessando o nobre ao chão.
O estranho sacou dois punhais, os arremessando em sua direção, Esteves se defendeu, ainda no chão, apanhando os punhais no ar e jogando-os de volta, cravando um deles no braço do adversário.
A “criatura” irritou-se, sacando uma bola de ferra presa à uma corrente, atacando em seguida. Esteves segurou o braço que empunhava a bola de ferro, sacando com a outra mão a espada presa à barriga do seu adversário. Novos ataques sobrevieram forçando Esteves a defender-se da bola de ferro com a lâmina de sua espada.
Por um segundo, o nobre espanhol percebeu uma falha nos elos da corrente que segurava a bola, atacou sem piedade, quebrando a arma inimiga. Esteves atacou com a sua espada em seguida, mas a surpresa em relação àquele “ser” não tinha limites. O estranho guerreiro defendeu cada golpe que recebia da espada de Esteves com os próprios braços, sem demonstrar dor ou ferimentos.
Uma sequência de ataques sobreveio contra o estranho guerreiro, partindo do nobre espanhol, incansável. Foi quando a sua lâmina golpeou a junta do braço direito, decepando-o. O estranho não demonstrou dor. O ataque seguinte de Esteves rasgou-lhe o peito, fazendo-o cair inerte no chão.
Esteves observou os demais soldados, já estavam derrotados quase todos os seguidores do estranho homem que acabara de vencer.
Victor o fitou.
– Acabou... – disse.
De súbito, o estranho homem surgiu às costas de Esteves, pronto a dar-lhe um novo golpe. Victor avançou em sua defesa. A criatura segurou a lâmina do soldado, sangue finalmente espargiu-se de sua mão, banhando o aço frio da espada. A “criatura” golpeou Victor em seguida, arremessando-o alguns metros para trás. Quando voltou para atacar Esteves, só foi capaz de sentir o fio da espada cortar o seu pescoço, decapitando -o.
A batalha havia terminado.
– Victor, você está bem?
– Sim, estou. Foi uma bela confusão.
– Sim, foi.
Esteves procurou com olhar por Guilherme, só então percebeu que ele havia escapado, porém os condes ainda estavam presentes.
– Muito bem, – começou Esteves. – onde estávamos?
O silêncio imperou.
– Ah, sim. Se não me engano, vocês estavam se rendendo...
Por fim, a batalha havia terminado com menos de dois meses de combate, o que prometia alcançar anos. Esteves ainda fez com o maior número de vidas inocentes fossem poupadas durante a batalha. Por fim, havia prometido que não haveria execuções, algo que cumpriu piamente. Não houve saques, roubos ou estupros. A cidade e seus habitantes seriam respeitados. Porém o 3º duque de Alba em nada pensava dessa forma, decapitando os duques algum tempo depois, ordenando a caça a Guilherme I e introduzindo impostos não aprovados para castigar o povo. Tal atitude que deixou Esteves deveras chateado, sua palavra de nada valia para o duque, por mais que o jovem nobre espanhol tenha lhe dado a vitória contra Guilherme em um bandeja. Esse foi um dos motivos que levou Dom Esteves a deixar as tropas anos mais tarde. Victor, por outro lado, ainda prestaria serviços aos tércios espanhóis esporadicamente, escolhendo sempre as missões que fossem comandas pelo nobre Esteves, o “Guerreiro Segundo o Coração de Deus”.
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Boa Leitura!
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"Contos da Era Heróica" são contos anteriores à trilogia "Os Confins da Terra", clareando dessa forma um pouco mais o contexto da história e onde cada personagem se encaixa.
Neste caso, veremos um pouco as aventuras de Dom Esteves e Victor em uma das diversas batalhas e guerras que participaram.
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