Tanha

Tanha sempre foi tolerante com os defeitos de seus dois irmãos: o mais velho, Tenho, e a do meio, Tinha. Tinha já estava com 28 anos, Tenho com 30 e Tanha fez 18 na semana passada. Seu pai parecia estar obcecado pelo verbo ter, quando eles nasceram, mas por algum motivo muito estranho, como se o da obsessão já não bastasse, deu a ela um nome, digamos, inesperado. Mas Tanha não o abominava. Até gostava dele, principalmente quando, ainda moleca, ouviu uma tia comentar que ela se chamaria Tivesse, mas algo fez o pai mudar de idéia na última hora. Dizem que a mãe, Dna. Nula, não decidia nada em casa, muito menos os nomes dos filhos. Que era uma mulher completa e absolutamente submissa às vontades do marido, o Senhor Sido.

Em momento algum de sua vida, Tanha foi envolvida em brincadeiras que debochassem de seu nome ou dos irmãos. Aliás, nem Tenho, nem Tinha, passaram por tal situação. Os nomes dos três soavam como apelidos e, há muito, foram amplamente absorvidos pela comunidade. O mesmo não poderia ser dito sobre Dna. Nula, que tal qual seu nome, não exercia influência alguma nos moradores.

Entre as ruas, esquinas e bares do bairro, no entanto, às vezes comentavam sobre os prováveis motivos que teriam levado o Senhor Sido a dar aqueles nomes aos filhos. Vale dizer, entretanto, que os comentários nunca eram jocosos, muito pelo contrário. Vinham à tona até com certo ar de erudição. Talvez influenciados pela própria imagem solene, educada e respeitosa que o pai de Tanha possuía junto a todos que o conheciam ou com ele, de algum modo, haviam estado. Um antigo professor de português da escola local chegou a conjecturar, anos atrás, que talvez o motivo dos nomes dos filhos tivesse um cunho filosófico. Algo assim relacionado à postura de ter ou ser diante da vida. Baseava sua teoria no simples fato de ser o Sr. Sido um homem sabidamente culto, altruísta, dotado de bom juízo entre o bem e o mal, bem como dos meandros que intermediavam ambos. Dono de clara visão, segundo o professor, das reais causas que se escondem por trás dos desejos humanos, não teria ele posto aqueles nomes nos seus por mero acaso. Afinal, pessoas cultas não aceitam impunemente o acaso, sem antes brincar um pouco com ele. Pessoas mais esclarecidas do lugar costumavam lhe prestar apoio nessas suposições, de tal modo que o assunto passou a ser exótico e, revestido de uma aura de intelectualidade, chegou a desafiar as mentes mais curiosas, nos moldes de um velho romance policial. Todos sabiam ser o professor um bom observador. Devia conhecer, portanto, o assunto. No entanto, quando tais idéias eram solicitadas, entre um e outro copo de cerveja, deixava sempre claro que eram apenas idéias, pois nunca o Sr. Sido havia lhe confidenciado algo a respeito dos reais motivos.

Há cerca de um ano, o professor, passando como quem não quer nada pela casa de Tanha, indagou-lhe sobre sua mãe. Se estava bem de saúde, como passava e, sendo possível, se podia ceder uns dedinhos de prosa. Tanha sabia, embora fingisse que não, das intenções veladas do mestre: queria checar os fundamentos de algumas dessas suas idéias. A jovem, divertindo-se com a situação e simulando ingenuidade, ia chamar a mãe. O professor tentava, mas no fundo intuía que as possibilidades de retorno de uma senhora de nome Nula quanto a este assunto e, vale dizer, praticamente qualquer outro, bem ...eram nulas. Porém, determinado, vez por outra ele tentava.

Quem não conhecesse de fato Dna. Nula talvez a julgasse muda, surda ou portadora de algum outro tipo de deficiência. Ela parecia não interagir com seu meio ambiente. As coisas que vinham a ela não entravam. Simplesmente transpassavam-lhe o corpo sem tangenciá-lo, já que uma eventual tangência sugeriria mudança de rota conseqüente a algum conteúdo seu. Parecia, enfim, ser uma mulher vazia e deprimida, guardando algum tipo muito especial de dor, dessas que não oferecem qualquer perspectiva de saneamento. Contudo, só a viam dessa forma doente e acabada, aqueles que não participavam de seu ínfimo e seleto grupo de confidentes. O professor, infelizmente, não fazia parte desse grupo, mas como disse, vez por outra, tentava. Chegou a imaginar que o estado daquela mãe talvez fosse fruto do desapontamento crescente com o caráter e estilo de vida de dois de seus filhos. Tenho era um rapaz extremamente materialista, destituído de qualquer sensibilidade social. Não costumava enxergar muitos palmos além de seu próprio nariz, pois detestava perder-se de foco. Aproximava-se dos outros sempre com segundas intenções utilitaristas. Era ardiloso, dissimulado, enfim, um mau caráter. Tinha era, aos olhos do professor e, muito provavelmente, aos da maioria dos amigos da família, um verdadeiro poço de futilidades. Quase nada de seu mereceria algum comentário positivo. Tal qual o irmão interessava-se apenas por si mesma, exercendo, como ele, os mesmos jogos de conquista. Além do sexo e da idade, talvez a única diferença entre ambos fosse o tipo de arma utilizada nos referidos jogos. Enquanto Tenho usava seus cargos e posses, Tinha fazia o tipo lânguido-sedutor, já que seu corpo atraia os homens com eficiência quase infalível. O professor, aliás, foi uma de suas primeiras vítimas, em troca de um voluntário esquecimento de sua repetência em português naquele ano. Soube também, mais tarde, ter ela praticado o mesmo delito com os professores de física e matemática. Ousou também igual método com a professora de química que quase teve um enfarte com a proposta. Seria ela capaz de ir até o fim com todos?-pensou o professor. Bem, capaz ou não, eles nunca iriam saber, pois depois de velados comentários entre os mestres considerados e a diretoria, o colégio deu um jeito de não aceitar sua matrícula no ano seguinte. Dna. Nula, desgostosa, teve que mudar a filha de escola. Hoje, com o filho na política ligado a casos de corrupção e falta de decoro parlamentar, e a filha, esposa de um rico empresário, flagrada em relações extraconjugais, talvez Dna. Nula tivesse simplesmente desistido da prole, deixando os dissabores passar por ela sem turbulências, tal qual o vento que, por mais forte que seja se não for contido, prossegue sem destruir nada além de si mesmo.

E o pai? – pensava o professor com seus botões. Como teria conseguido, com tanta altivez, resistir aos tropeços dos seus? Seu Sido teria sido um homem mais feliz, caso não tivesse tido Tenho e Tinha? Seria ele refratário a esse ponto? Teria ele sido melhor do que já é? Será que algumas pessoas, independentemente do meio que as cerca, são o que são e ponto final? Ou será que, como disse Krishnamurt, “o homem modifica o meio e o meio modifica apenas a parte do homem que modificou o meio”. Teria o Sr. Sido, sido tão humilde e altruísta quanto sempre provou ser? O professor ficou obcecado com o assunto: meio ambiente e comportamento. Até que ponto os dois eram cúmplices? Comprou vários livros, Lorenz, Tinbergen, Montagu, Darwin, Wilson... Cercou-se com a nata da Etologia, Sociobiologia e afins, seguindo por um bom tempo com o interesse pela saga daquela família. Achava ele, em vários comentários feitos a mim, o dono da livraria ao lado da escola, que Sido devia ter herdado do pai um apreço especial pelo escritor Erich Fromm, autor da famosa obra “Ter ou Ser”. Talvez o pai de Sido, padecido que estava com os desvarios consumistas da sociedade da época, tenha lhe imposto esse nome, o particípio do verbo ser, para estimulá-lo nesse ato: o de ser. “Para que ele completasse sua vida tendo sido e não tendo tido. Entendeu?” – reforçou o mestre. “Isso porque nosso nome, sem que percebamos, tem forte influência em nosso comportamento”. – prosseguiu. “Após vários desapontamentos com a conduta da maioria da sociedade, extremamente competitiva, seu Sido resolveu ironizar, dando aos filhos o nome Tenho e Tinha.” “Sei, sei.”.. – disse-me olhando nos olhos. “Você deve estar se perguntando: mas e a Tanha? Ora! Tanha é o escárnio, o cinismo, o deboche final para com a imposição do pai ou, talvez mesmo, com as próprias idéias do escritor”.

Creio que na época em que o pai de Sido era vivo, “Ter ou Ser” ainda não existia. Mas, próximo ou não da verdade, o professor não teria como comprovar sua teoria. A família Freitas mudou-se do bairro. Sou um dos poucos que sabem para onde foram, pois além de continuar a oferecer descontos nos vários livros que me pedem, faço parte do tal ínfimo e seleto grupo de Dna. Nula. O que nos uniu? Uma certa mediunidade, eu diria, de pronto reconhecida no primeiro olhar que trocamos. Luna Nula Toledo Freitas. Esse é o seu nome completo. Filha de um marinheiro espanhol veio ao mundo num quarto-minguante. Grande e valorosa mulher. Fez o que pode a respeito da má índole de alguns dos seus. Ela, sim, escolheu Tanha como o nome da caçula. Queria fugir de alguma provável maldição provocada pela mania do marido envolver os seus naquilo que lia. Algumas palavras seriam fortes demais, talvez, para espíritos ainda em formação.

Desde que se mudou para cá com a família, Sido e eu, secretamente, trocamos vários interesses comuns. Emprestar ao dia a dia fragmentos do que líamos, era uma de nossas brincadeiras preferidas. Talvez tenha exagerado em nomear os filhos com flexões do verbo ter mas daí a imaginá-lo um pai mal intencionado não, isso não. Mas, verdade seja dita, Tenho é até hoje um rapaz mesquinho. Convidou Tinha para morar consigo, pois passou a se sentir muito só. Ela aceitou de pronto, pois padecia do mesmo problema, desmascarada que foi pelo marido rico.

Após todos esses eventos, Sido não ousa mais envolver os seus naquilo que lê, mesmo que isso traduza o respeito que costuma ter pelo que é lido. Aliás, respeito é o mínimo que pode ser dito sobre os seus hábitos de leitura. Quando lê, meu amigo transcende as palavras. Com facilidade, consegue captar a alma do autor e, a partir dela, sensibiliza a sua.

Pediu à esposa para usar apenas seu primeiro nome, Luna, ou mesmo adotar Lu como apelido, afastando ainda mais a pecha de mulher submissa.

Ele, Sido, também adotou o primeiro nome, Renam, deixando companheiros de trabalho brincarem no uso dos dois ao chamá-lo. Afinal, Renam Sido, dito rapidamente, sugere um recomeço, que era tudo o que ele queria.

Só conseguiram deletar afetivamente os dois filhos mais velhos de suas vidas, após extensos períodos de sessões terapêuticas, nas quais finalmente se convenceram da ridicularidade da culpa carregada. Chegaram a se constranger de fato com o próprio comportamento ilógico, posto que fossem pessoas cultas e sensatas. Seus filhos, Tenho e Tinha, eram intoleráveis e ponto. Eles que brigassem com seus próprios genes, se fosse o caso.

Tanha passou a ser, mais do que nunca, a esperança da continuidade dos bons valores morais na família, principalmente após seu casamento com Amon, um filho de árabe. Juntos, Amon e Tanha fazem um belíssimo casal. Parecem estar elevados sobre os demais, sugerindo muita força e solidez. Claro que Renam e Lu, orgulhosos, notaram isso. Quem não notaria? Agora daí a dizer que os dois vissem uma suposta força das palavras alimentando o carisma daqueles jovens ...ora, nesse caso, que mal faria?

Dassault Breguet
Enviado por Dassault Breguet em 13/09/2010
Reeditado em 24/09/2010
Código do texto: T2495821