O caminho do Suicida

É uma dor sem nome. Não há denominativo ou quaisquer classificações. É uma angustia sem volta, egoísmo dormente, vontade que tudo acabe.

Quantos eu já levei pela mão?

Quantos para trás eu tive de deixar?

Através das eras desse mundo, eu tenho andado ao lado de espíritos humanos, ao deixarem e voltarem para a carne. Essa sou eu, a Guia entre mundos, Aquela que Conhece todos os Caminhos.

Há seis dias acompanho minha próxima encarregada. É engraçado. Já cheguei a passar mais de um ano acompanhando um homem a beira do desencarne, contudo, os suicidas são, como eu gosto de chamar, tarefas de última hora.

A criação não arranjou essas mortes, então, é apenas a decisão inabalável de um suicida que nos convoca. A maioria é bem sucedida, e se não é, muitos tentam até conseguirem.

E lá esta, a próxima alma que eu irei guiar.

Sentada no alto de um prédio, enquanto aqui em baixo, alheios a dor dela, outros humanos transitam. Ela não espera que eles a percebam, pois aguardou o momento certo. Por seis dias ela tentou esvaziar sua casa, ter certeza de que ninguém estaria presente. É uma tentativa vã de eliminar a dor de seus familiares. A impotência que guarda a ausência e uma longa carta.

Mas eles vão se culpar. Eles sempre se culpam.

Se ela não for rápida, seus pais vão chegar. Eu sei que ela vai saltar assim que ouvir a porta. Mas apenas se ela demorar.

Pois ela esta analisando a rua, talvez pensando em todos os seus problemas, se convencendo mais uma que essa é a saída. Tudo certo ahn?

Suspiro. Alguém olhou para cima e viu. Vejo o terror e a curiosidade tomar conta da pessoa que ficou ali, parada na faixa de pedestres, a despeito do semáforo ter anunciado livre passagem para os carros. Ela não vai morrer atropelada, eu sei. Se fosse essa a hora dela, haveria mais um guia aqui. E então a moça grita.

E lá de cima a minha garota a percebe. Ela não escuta, mas procurava atentamente entre a multidão desconhecida por alguém que a notasse. Mas a comoção que começa a tomar as pessoas na rua é em vão.

Porque ela não vai desistir. Quer tenham pessoas olhando ou não.

É... Eu acho que vou perguntar. É, eu vou perguntar por que ela demorou tanto. Muitos simplesmente saltam. Alias, porque será que ela escolheu essa maneira? A maioria, alguns segundos depois de morrerem, simplesmente não sabe precisar porque - porque escolheram aquele modo. Outros têm explicações bem elaboradas.

Na janela, lá no alto, ela se levanta.

Espero, realmente espero que ela caia de pé.

Recordo-me da vez que deveria encaminhar uma senhora que colocou fogo na própria casa a espera da morte. Em seus primeiros momentos pós desencarne ela não conseguia falar, mal conseguia andar, e tive de deixá-la para trás - uma tarefa não concluída - porque não pude convencê-la a me acompanhar e horas depois do ocorrido, ao perceber que continua a ser ela mesma, e seus familiares souberam do acontecido, ela quis voltar. De todas as maneiras. Enlouquecida.

Sabe, é com pesar que admiro minhas falhas, não por mim, mas pelo sofrimento daquele que fica. E pelo que sei, aquela senhora ainda é uma forma carbonizada, ignorante, a vagar invisível pela dimensão dos vivos. Ansiando pelo que não pode mais ser.

Tenho esperança de que com essa seja diferente. Para mim, nada mais triste que um espírito humano preso aos farrapos de sua vida passada. Há dor, apenas dor, e para os suicidas o sofrimento não conhece limites.

Talvez por isso algumas religiões ensinem que o inferno é o destino de quem arranca a própria vida. Não há remédio para a culpa, o arrependimento, a agonia... E para o suicida sua consciência é seu torturador, suas ações seu flagelo. É curioso como a maioria deles são pessoas sensiveis. Mas é um mistério... quando a morte começa a seduzi-los? Quando a vida para de fazer para a jovem na janela?

Um último fôlego. Ela fecha os olhos.

Aqui em baixo, há gritos, chamados para a polícia, para os bombeiros. Alguns homens avisaram o porteiro do prédio dela, seis pessoas se encaminham para o décimo terceiro andar.

Lá, lá em cima, há apenas uma certeza.

Gritos fazem coro. Por um breve momento uníssonos. Para mim e minha encarregada é como se o momento durasse uma eternidade. Mas ele não dura nada. É rápido em sua lentidão interminável. Há congestionamento neste cruzamento agora, pessoas espalhadas por toda a rua gritando, motoristas deixando seus veículos, trabalhadores do comercio deixando seus postos.

E agora sangue.

Horror e sangue. O mundo a minha volta estremece pela dor dos espectadores, cheio de gritos e angustia. O dela também. Mas ela não reage ao sofrimento solidário da multidão de espectadores. Há apenas o seu sofrimento, e ao olhar pra mim ela acredita que não morreu – para muitos deles a morte é um abraço negro, um ponto final. O fim.

Sorrio. Jogada no chão, cercada pelos vultos desesperados dos vivos, ela crê que esta viva... E que Deus me ajude. Para ela eu estendo a minha mão.

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