Coração Irrompível

Agachou-se devagar, recolhendo a volta as migalhas de metal que, espalhadas, faziam o chão faiscar ao luar. O metal amarelo, preciso, refulgia sob a lua cheia, principalmente aqueles olhos acostumados às sombras.

Victor, como era conhecido, tinha uma existência estranha e sombria, restrita a penumbra e ao breu. Apaixonado pelo sol imaginava que o brilho do ouro imitasse um pouco aquela luz que tanto amava - e que mal podia suportar. Ajudou um homem e duas meninas que o acompanhavam a levantar, e em seguida verificou se cada um deles estava bem. A menos estava cortada, por isso choramingava.

- Você é muito corajosa. - Ele disse ao verificar a profundidade do corte. Não era. Mas o espetáculo sangrento que presenciara a fizera esquecer-se do braço. A caravana toda estava morta ou perdida na floresta e os seis assaltantes jaziam ao chão. Mercadores costumavam pagar bem por uma escolta, mas Victor se considerava afortunado quando sequer permitiam que acompanhasse qualquer grupo de viagem. Uma ou outra alma justa o recompensava, mas em geral as pessoas suportavam sua companhia em troca de pagamento.

O pai agarrou a criança, querendo protegê-la do quase-homem que os havia salvado. Mas não repreendeu verbalmente Victor, que se afastou, terminando de recolher o ouro do mineiro, que agora estava morto. A maioria ali estava se dirigindo para a cidade mais próxima, pois ali ele poderia pesar o ouro e pedir para que fossem cunhadas moedas. Colocou um punhado generoso na mão do homem então, e olhou em volta.

- Não creio que os demais voltem para cá... hoje. - Avisou Victor a família. Ele sabia que alguns regressariam aquele local em busca de suas coisas. - Então vamos andando. - concluiu.

Em sua maioria eram homens. Houveram apenas três mulheres naquela caravana quando começaram a viagem, e uma estava morta. Os homens que fugiram teriam de se virar. Apanhou o que poderia ser carregado dos mortos e acomodou nos alforjes de um dos cavalos remanescentes - que somavam dois animais. O outro levaria a garotinha machucada.

Em outra ocasião o homem reclamaria, diria que era errado Victor ficar com aquele ouro, e o rapazinho sabia. Mas dividir - e dar a maior parte ao pai da família - garantia que ele não iria incomodá-lo.

- Não vamos esperar pelos outros? - perguntou o homem.

- Sua filha precisa de um curandeiro. - explicou. O cheiro no ferimento era fresco, mas ela estava suja. Ainda que tivesse apenas 11 anos, Victor sabia que não tardaria para o machucado começar a feder, se ela não fosse tratada. Inflamação. Quando mais novo, para ele era um mistério a ignorância dos demais, mas a quando descobriu que seus sentidos eram mais aguçados que a maioria, compreendeu certas coisas.

- Mas os outros estão por ai.

- Eles sabem se cuidar, e talvez tenha se perdido.

- Pra que você presta? Vá encontrá-los.

O menino suspirou.

- Não. - O pequeno tinha boa vontade, mas a vida de maus tratos haviam lhe dado senso prático. Ademais, odiava covardia.

- Eu estou mandando. - Desafiou o homem.

- Pode ir então. Eu as levo.

- Jamais deixarei minhas filhas com um filho do diabo! - Respondeu o pai, quase rosnando.

- Então pode levá-las junto com você pela floresta. Desejo-lhes sorte.

O homem segurou a respiração e a língua. Ele não se atreveria naquela floresta, com a possibilidade de haver mais ladrões por ali. Não fora ele que acabara com os bandidos, fora o garotinho, do alto de seu metro-e-meio. Possuía dentes, garras e um corpo esguio que desprezava a fraqueza. O moleque sozinho era capaz de erguer um cavalo. Precisava dele, ainda que tivesse medo. Em nenhum momento o menino havia sido descortês, mas o homem nutria um medo quase visceral por aquela criaturinha feia, escura e baixa.

***

Ao meio dia entrou em casa, coberto por um gibão que lhe escondia todo o corpo, o capuz todo puxado por cima da cabeça. Mal ousava erguer os olhos, e estava quase cego.

- Mamãe! Cheguei!

Uma idosa veio até a sala, apoiada em uma bengala, observando o filho depositar aquela quantidade imensa de ouro sobre a mesa. As janelas ficavam fechadas para ele, cobertas por grossas capaz de tecido grosso. O interior daquele casebre era iluminado por velas.

Onde conseguiu tudo isso, filho? - perguntou à senhora, examinando o rosto queimado de sua criança quanto ela se desfazia do grosso protetor de tecido. - Sabe que não deve viajar durante o dia. Esta todo queimado!

- Vai passar mamãe. - respondeu resignado.

Mais tarde, a velha o levaria para a igreja, onde todos deveriam ser recebidos sem exceção. Os sacerdotes não gostavam muito de Victor, mas quase todo o dinheiro que a velha e o menino conseguiam pagavam a tolerância dos homens, que dessa vez receberiam uma gorda doação. Ana se preocupava com a alma de seu filho adotivo. Ele era uma criança, só uma criança, e se fosse bem educado, talvez fosse recebido no paraíso. Ela acreditava piamente nisso.

***

Aos trinta e dois anos, ao passar pelo menos lugar de trinta e dois anos atrás, recordou-se do ouro que levou para casa, e que aquilo custara à vida de sua mãe. Ela seria assaltada, por homens que buscavam mais, sem saber que ela havia retirado uma pequena parte para si, o suficiente para duas semanas de sustento apenas. Os padres alardearam a doação, e por isso, a anos não punha os pés naquela região.

Poucos o reconheceriam, ainda que muitas historias sobre a criança-demonio fossem contatas, ainda, na redondeza. Sobre como ele havia atraiçoado a própria mãe. Sobre as maldades que fizera contos para impor obediência a crianças, que supostamente seriam levadas pela cria do diabo se não fossem obedientes.

Entrou na igreja, alardeando sua passagem com um som metálico incessante, ainda que não intenciona e sentou-se ao lado de uma moça – que teve de ir um pouco pro lado para dar espaço para os quase dois metros enfiados numa aço. O homem armadurado sentia as placas de metal grudarem na pele queimada por baixo, mas não se queixava. Ao fim do dia, depois de passar horas rezando sob o olhar curioso dos padres, ergue-se e foi falar com um deles. Era noite então, e o mais velho ali o recebeu. Quase desmaiou ao reconhecer o rosto, que o homem acabara de livrar-se do elmo.

- Você! - Disse, e a voz sumiu em sua garganta. Havia um pecado muito feio em sua alma. Ter acobertado o irmão ladrão e permitido que aquele menino fosse acusado do assassinato de sua mãe. Homens de bom senso duvidaram da historia na época, mas a maioria dos habitantes da cidade não fora contra essa teoria. Por um tempo, Victor pensou, eles o acusariam mesmo que não estivessem na cidade. E a ignorância daquela gente havia dado força a ele.

- Vim aqui, em nome do seu Deus, para dizer que você é chamado a Seu serviço.

- Você! Como tem coragem... - mas a mão coberta por uma manopla de metal muito bem polida foi erguida, exigindo silencio. O homem engoliu a própria língua, receando uma represália física.

- Aqui esta a carta. Partimos amanhã ao entardecer. - Entregou a ele um grosso envelope selado por um lacre conhecido. Era verdade o que dizia o homem. Victor afastou-se, mas voltou-se no meio do corredor que levava do altar a porta:

- Mais uma coisa. Sinto muito por seu irmão.

O Padre gelou aquelas palavras. O ladrão, cúmplice da morte da mãe de Victor havia sido enforcado a sete anos por ter sido pego furtando a casa do governante da cidade. O padre não saberia compreender, mas o meio-humano realmente sentia muito pelo caminho que aquele homem havia escolhido.

Deixou o padre pra trás a remoer àquelas palavras, que ele tomou por insulto e ameaça, e seguiu para o cemitério. Ali, ao encontrar a cova rasa da mãe, limpou a grama, sentindo-se grato por aquela mulher te-lo criado. Sabia que sua alma estava junto de seu Deus, e que ela deveria estar orgulhosa. A Ignorância matara sua mãe e quase tomará a bondade que Deus havia posto em seu coração. Agora Deus tinha-o encarregado de zelar por Sua palavra, representá-Lo diante dos homens.

No dia seguinte, acordou, pensando na tarefa a seguir. Agradeceu por todas as dificuldades, pois elas continuavam a forjar dentro de si um homem melhor, e pediu por paciência, luz e sabedoria. Sentia que se, um dia, a luz de Deus enchesse sua alma, então se livraria do estigma importo por seu pai em seu nascimento. E quem sabe então poderia se deixar banhar pela amada luz do sol.