Mágoas Precoces

MÁGOAS PRECOCES

Se a alegria é cercada de luz prateada e azuis lilases, como é que a tristeza invade essa fortaleza? Quem fornece a senha?

Rua Guararapes, bairro de Santa Helena, casa sem número. Rua sem asfalto, sem esgoto, iluminação fraca, quase amarela, pegajosa, daquela que gruda no coração da gente e ilumina tristezas. No interior da casa, os Silveira simplesmente viviam.

Viviam devagar, apenas com a expectativa daquele dia, porque a pobreza paralisa não só as emoções, mas também os sonhos e a saúde. Lúcia, marcada pelo sofrimento, não só do viver mas também da coragem de cuidar do marido, atormentado pelo alcoolismo que o consumia dia a dia, fazendo do lar um lugar bem distante do paraíso, há muito tempo. A única luz de aparência saudável, alegre de nascença, vinha da alma, do coração de Ferdinando.

Filho único, olhar brilhando sempre, agora com dezesseis anos, embora marcado desde a infância pelas situações constrangedoras criadas pelo seu pai, que embriagado às vezes lhe batia gerando mágoas precoces, era o ponto de equilíbrio daquela família. As paredes daquela casa eram testemunhas dos sofrimentos e das dificuldades para Ferdinando prosseguir os estudos, e ainda trabalhar como engraxate, a percorrer toda a cidade com sua caixa dependurada, ora num ombro, ora noutro, prova da sua dedicação sincera colaborando com a mãe que ganhava pouco, prestando serviços domésticos. Por sua maneira de ser, conquistava facilmente a amizade de seus clientes, porque apesar da história da família, era jovial, sorriso franco, com imenso senso altruístico, presença agradável em qualquer lugar. Esse perfil comunicativo chamou a atenção do dono de uma engraxataria que o convidou para trabalhar com ele. Lugar fixo, salário fixo mais gorjetas. Era de tal modo contagiante sua maneira de ser, que tornou-se cadeira preferida dos clientes, muitos clientes. Dava suporte aos seus pais, não só monetário, mas também muito amor e compreensão. No local do seu trabalho ficou mais conversador ainda, porque cada cliente abordava um tipo de assunto, e ele foi ficando expert em futebol, economia, política, meteorologia, etc... Também costumava ler enquanto engraxava, quando o freguês abria um jornal, assim, ficando em dia com os mais diversos assuntos, e até arriscava opiniões de cunho humanitário, pois aprendeu a observar e sentir o interior das pessoas ouvindo-as atentamente, virtude que ninguém mais tem . O assunto mais ouvido, depois do futebol, era a reclamação do tempo que chovia demais, quando chovia, do calor insuportável quando não chovia. Ninguém deixava o tempo fazer seu tempo, interferindo em tudo. Já completava o terceiro ano nesse emprego, e sua clientela havia triplicado, tão cuidadoso que era no trato dos calçados e das pessoas, sempre tendo uma palavra para elevar a auto-estima .

Em sua casa a vida continuava na mesma. Após o jantar, ia para a escola; roupas humildes, calçados simples mas brilhantes, claro, e muita alegria no coração e em seu olhar. A escola dava a ele o suporte do conhecimento, do saber, da disciplina, mais amigos, uma convivência saudável. Foi em uma comemoração à Semana do Circo, que sua vida iria tornar-se ainda mais rica. A cada dia em homenagem ao circo, havia uma apresentação diferente no pátio da escola. Palhaços, malabaristas, contorcionistas, trapezistas, ilusionistas, um mundo de novidades. Mas o que realmente o encantou, foi a apresentação de um homem com um boneco no colo fazia rir à toda criançada, porque era realmente muito engraçado. O boneco falava, retrucava, contava piadas, uma festa. Embora o trapézio fizesse o seu olhar voar pelos ares em cambalhotas e piruetas, era aquele boneco falante e divertido que gravou no seu coração. Quero ser como aquele homem e seu boneco! pensou. Após o término do espetáculo ficou sabendo que o homem era um ventríloquo e decidiu conversar com ele.

— Olá, senhor! Gostaria de aprender a falar como o senhor faz. Como posso aprender?

— Nós temos uma escolinha que ensina tudo o que você viu nesta semana dedicada ao circo, respondeu o senhor. As aulas são aos domingos e feriados, que é para ninguém faltar do colégio. Ainda temos vagas, mas vá depressa fazer a inscrição, pois depois dessas apresentações a escolinha ficará cheia de novatos.

Ferdinando ficou interessadíssimo e radiante, pois a primeira aula seria no próximo domingo, e já era sexta-feira.

Ao chegar em casa contou aos pais, que não opinaram nem favorável nem desfavoravelmente, pois parece que a alegria dele não cabia naquele lar. Contou ao seu patrão logo no dia seguinte, assim que chegou, às oito horas para trabalhar.

— Como se faz isso, Ferdinando? Como se chama a pessoa que trabalha com esse tal boneco falante? perguntou o Sr.Luís.

— Ah, é ventríloquo, que modifica sua voz sem mexer muito a boca, parecendo que é outra pessoa falando. Mas irei aprender tudo o que o circo ensina. O dia ficou mais excitante, mais alegre ainda. O tão esperado domingo chegou. Acordou cedo demais, pois não dormira bem, na expectativa do aprendizado. Saiu de casa e num instante estava em frente ao circo, analisando tudo. O formato da lona, os mastros, trapézios bem quietinhos ainda, tudo muito bem arrumado. Pouco a pouco foram chegando todas as outras crianças, aumentando a euforia do início das aulas. Quando foi entrevistado, após fornecer seus dados e os documentos, afirmou que queria, como prioridade, ser ventríloquo. Adorava a idéia. Um instrutor reuniu a criançada e falou a eles coisas bonitas sobre a arte circense e da sua finalidade junto à sociedade, de maneira geral, de levar alegria às pessoas, sempre com uma mensagem sutil de esperança de uma vida melhor, mais feliz.

Cumpriu todas as etapas do curso com muita disposição e alegria; agora se dedicava a ser ventríloquo. Foram três meses de curso. Já estava, como sempre, indo bem e o instrutor nunca tivera um aluno tão aplicado. Em casa, seus pais pela primeira vez riram muito ao ver o filho fazendo coisas das quais nunca tinham sequer ouvido falar. Era a primeira vez que a família ria unida. No trabalho então, nem se fala. Quando estava com um freguês na cadeira distraído, Ferdinando começava a falar com ele enquanto trabalhava, alterando a voz e era só risadas...

Seu patrão, o Sr. Luís, assistia a tudo rindo muito do assombro do cliente. Era uma farra; se já era querido, agora o era muito mais. Resolveu pedir ao seu instrutor do circo que o ajudasse a fazer um boneco de pano, aquele com a boca articulada, que em pouco tempo ficou pronto. Agora a festa era total. Arrumou uma alça, com a qual segurava o boneco ao seu lado, fazendo-o falar. Terminado o curso despediu-se dos colegas e agradeceu profundamente seu instrutor, agora seu amigo. Ferdinando passou a visitar instituições de caridade como creches, orfanatos, abrigo para idosos, sempre distribuindo alegria por onde passava. Realmente é um espetáculo muito divertido, inocente, consolador, até. Não escolhia lugar para se apresentar, mas era nos hospitais que fazia números mais direcionados àquelas crianças em tratamentos mais sérios. Ao seu boneco, as crianças resolveram dar o nome de Zico, no que concordou plenamente, batizando-o de Boneco Zico. Nos orfanatos, as crianças adoraram o nome, gravando-o também no coração, um amigo para sempre. O tempo passou rapidamente e Ferdinando estudava com mais afinco, pois tentava uma vaga na Universidade

Ainda continuava engraxando e encantando cada vez mais pessoas. Era feliz, apesar de reconhecer que bem lá no fundinho do seu coração, bem embrulhadinha, existia uma sementinha de mágoa do pai que insistia em brotar e florescer, porque foi plantada em terreno fértil, próprio dos corações infantis; esse sentimento, senha que embaçava por dentro a luz da alegria prateada cercada de lilases. Então passava por momentos difíceis, que com ninguém comentava, embora consciente de que era necessário buscar ajuda, mas de quem?

Foi naquela noite, que com o coração apertado deitou-se para dormir, deixando, como de costume, o boneco Zico em uma cadeira, bem à sua frente. Não sabe dizer se estava quase acordado ou quase dormindo quando ouviu uma voz chamando por ele, mas não teve forças para levantar-se, talvez pela grande tristeza, que o deixou largado na cama; podia ser sua mãe pedindo ajuda outra vez, e a voz repetia:

— Ferdinando, sou eu, o Zico!

— Ah, não, só me faltava essa agora! Levantou levemente a cabeça e pode ver, com a ajuda do clarão prateado da lua, seu boneco inerte, com a boca entreaberta. Soltou o corpo na cama, suspirando bem fundo. Foi quando ouviu, bem no fundo, no começo do sonho, outra vez :

— Ferdinando, acorde!

Desta vez, ficou assustado porque conhecia bem aquela voz. Resolveu levantar um pouco mais a cabeça, e o boneco, iluminado, falou com ele:

— Sim, sou eu mesmo, o Zico! Preciso lhe falar algumas coisas, por isso preste bem atenção!

— Desde quando você fala sozinho?

— Estou sempre ao seu lado já há quatro anos, e conheço muito bem seu coração. Faz tanto bem à todo mundo, às crianças que te adoram, inclusive àquela menina triste e doentia, que logo se recuperou, contagiada pela alegria implantada no seu coração; sem falar dos adultos, aos quais levou conforto e palavras alegres de esperanças e vontade de viver. E conhecendo seu interior, sei que está triste, muito triste, principalmente hoje, por isso atenção no que vou falar. Seu pai o ama tanto quanto sua mãe. O problema dele é considerado pela medicina, uma doença que necessita tratamento específico; muitos desconhecem isso e maltratam o portador, que não tem culpa, e tentam, de maneira incorreta, até com a intenção de ajudar, a falar, brigar, sem sucesso. Leve seu pai até o AA ( alcoólicos anônimos ) e receberão orientações preciosas! Vamos, faça isso amanhã mesmo!

Ferdinando não acreditava no que estava vendo e ouvindo, porque até agora era ele quem animava o boneco, e agora ele fala sozinho! Devo estar dentro de um sonho, pensava, mas a voz é bastante conhecida.

— Perdoe de verdade seu pai, Ferdinando, e verá que a luz de sua alma brilhará intensamente.

Ao acordar pela manhã, riu do sonho que teve, mas ao relembrá-lo, começou a achar que realmente o boneco Zico havia falado com ele. Ponderou o recado e resolveu que faria isso mesmo. Logo após o café, falou com sua mãe, explicando o que pretendia fazer. Ela ficou feliz com essa possibilidade, porque estava desgastada pelo tempo, e a desesperança dominava seu coração. Amava o marido, mas às vezes pensamentos até de separação rondavam a sua mente, o que seria um desastre para todos; abraçou chorando o filho abençoando-o por mais esse ato de amor, que sempre demonstrava por eles.

Ferdinando levou seu pai naquele mesmo dia, ao local indicado. Lá chegando, agora sem seu boneco mas com uma pessoa que tanto amava, foi acolhido entre abraços cheios de alegrias, pois todos conheciam o seu trabalho.Observou que seu pai chorava discretamente, emocionado com a recepção.Esperou a consulta, e agora seu pai faria um tratamento, incluindo a participação da família.

Certa vez, seu pai foi até o hospital onde, há muito tempo Ferdinando levava alegria a tantas crianças, e assistindo o contato de se filho, com o seu boneco, junto a elas, ficou muito emocionado. Desta vez, chorou de verdade, de alegria, agradecendo o filho maravilhoso que o ajudou, esperando uma oportunidade para pedir-lhe perdão por algumas coisas do passado. Voltaram para casa, felizes da vida, alegres, conversadores em todo caminho. Ao chegar em casa, Ferdinando foi direto ao seu quarto, jogou-se na cama a sonhar de contentamento, e quando olhou, agradecido para o boneco Zico, teve a nítida impressão de que ele ria com a boca entreaberta e os olhos, um bem aberto e outro fechado. Uma piscadela?

FIM